Como Nós Somos (As One Is) – J. Krishnamurti

Como Nós Somos
Libertar a Mente de todos os Condicionamentos
J. Krishnamurti

Palestras públicas em Ojai – 1955 – © 2007, KFA (Krishnamurti Foundation of America)

Tradução de Arnaldo Bassoli – revisão de Maria Carolina Dias
Diagramação: Constantino K. Riemma

Referencias ao livro em Inglês:

As One Is: To Free the Mind from All Conditioning

Copyright © 2007, KFA (Krishnamurti Foundation of America)
AS ONE IS  –  TO FREE THE MIND –  from ALL CONDITIONING

KRISHNAMURTI – Ojai Public Talks, 1955

 

 

“Se quisermos descobrir o que é a verdade, devemos estar totalmente livres de todas as religiões, de todos os condicionamentos, de todos os dogmas, de todas as crenças, de toda autoridade que faça com que nos conformemos, o que significa, essencialmente, estar completamente sozinho, e isso é muito árduo…”

 

PREFÁCIO

Estar sozinho é ser incorrupto, inocente, livre de toda tradição, de dogma, de opinião, daquilo que o outro diz, e assim por diante. Uma mente assim não busca, porque não há nada para buscar; uma mente assim, sendo livre, é completamente calma e imóvel, sem nenhum desejo, sem movimento. Mas este estado não pode ser conquistado; não é uma coisa que você adquire com disciplina; não vem a existir pela abstinência de sexo ou pela prática de certo tipo de ioga. Ele só vem a existir quando há a compreensão daquilo que é o self[1], o ‘eu’, que se mostra por meio da mente consciente na atividade cotidiana, e também no inconsciente. O que importa é compreender por nós mesmos, não por meio da direção dada pelos outros, o conteúdo total da consciência, que é condicionado, que é o resultado da sociedade, da religião, de vários impactos, impressões, memórias — compreender todo esse condicionamento e livrar-se dele. Mas não há um “como” ser livre. Se você pergunta como ser livre, não está ouvindo.

Estas palavras desafiam o movimento da consciência humana tradicionalmente condicionado para aceitar a ideia de progresso espiritual, de realização ao longo do tempo, e de métodos para chegar lá. Elas desafiam o profundo condicionamento do como se relacionar com a vida interior e consequentemente com a autoridade espiritual, a crença, a conformidade, a ideia de buscar a si mesmo. Estas conferências apontam para compreender como nós somos, apenas como nós somos, nos momentos vivos da nossa vida diária — não como deveríamos ser, segundo a definição dos valores culturais, ideais religiosos e futuros projetados por nós próprios. Tais descobertas nos pedem para ser compreendidas, e não que aceitemos este texto como verdade. Na última destas conferências uma pessoa que chegou a um impasse pergunta: E agora? Embarcando num mar assim tão inexplorado, surge esta resposta para contemplar:

Você está fazendo experiências com os meus ensinamentos, ou fazendo experiências consigo mesmo? Espero que você veja a diferença. Se você está fazendo experiências com o que estou dizendo, então deve chegar a este “E agora?” por que está tentando buscar um resultado que pensa que eu tenho. Você pensa que eu tenho algo que você não tem, e que se você fizer experiências com aquilo que eu estou dizendo, vai obtê-lo — isso é o que a maioria de nós faz. Aproximamo-nos dessas coisas com uma mentalidade comercial — farei isto para obter aquilo. Vou venerar, endeusar, meditar, sacrificar-me para obter alguma coisa.

Mas você não está praticando os meus ensinamentos. Não tenho nada a dizer. Ou melhor, tudo o que estou dizendo é: observe a sua própria mente, veja que profundidades ela consegue atingir; assim, o importante é você, não os ensinamentos. É importante que você descubra sua própria maneira de pensar e no que este pensar implica, como tentei indicar esta manhã. E se você realmente estiver observando o seu próprio pensamento, se estiver olhando, experimentando, descobrindo, desapegando-se, morrendo a cada dia para tudo aquilo que acumulou antes, então nunca fará esta pergunta: “E agora?”

Estas oito conferências foram proferidas no verão de 1955, no Vale de Ojai, na Califórnia – sem anotações, ex tempore, à sombra de um bosque de carvalhos, para uma audiência de talvez várias centenas de pessoas. A primeira vez que Krishnamurti visitou o Vale foi em 1922; desde então, passou a viver lá, quando não em viagem para fazer conferências em outro lugar, até a sua morte, em 1986. Morreu aos 91 anos em Pine Cottage, que hoje fica ao lado do Krishnamurti Archives, em Ojai, aos pés das montanhas Topa Topa. Criou diversas fundações no mundo todo para preservar e manter disponíveis suas conferências, escritos e diálogos. Até a data desta edição, mais informações, bem como o áudio, vídeo e texto estão disponíveis em www.jkrishnamurti.org.

 

CONFERÊNCIA 1

“Quando a mente está livre de todo condicionamento, então você descobrirá que surge a criatividade da realidade, de Deus, ou do que quiser chamar, e só essa mente que constantemente experiencia essa criatividade é capaz de criar uma perspectiva diferente, valores diferentes, um mundo diferente”.

PRIMEIRA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  6 de agosto de 1955

No mundo todo temos muitos problemas graves, e mesmo que sejam criadas políticas sociais e assistenciais, e que os políticos construam uma coexistência superficialmente pacífica — com a prosperidade econômica em um país como este, em que há uma produção enorme e a promessa de um futuro feliz — eu não penso que os nossos problemas possam ser resolvidos tão facilmente. Nós queremos que eles sejam resolvidos e, para que isso aconteça, procuramos a solução n os outros — nos professores da religião, nos analistas, nos líderes — ou então nos- apoiamos na tradição, no respaldo de livros e filosofias. E eu presumo que esse é o motivo que os traz aqui — querem que alguém lhes diga o que fazer. Ou esperam que, ouvindo as explanações, compreendam os problemas que cada um de nós enfrenta. Mas eu penso que estarão cometendo um grave erro se esperam que, ouvindo casualmente a uma ou duas conferências, sem prestar muita atenção, serão guiados à compreensão dos muitos problemas que temos. Não é minha intenção, de modo algum, meramente explicar verbal ou intelectualmente os problemas com que nos confrontamos; ao contrário, o que tentaremos fazer durante estas conferências é ir muito mais fundo na questão fundamental que torna todos esses problemas tão complicados, tão infinitamente tristes e dolorosos.

Por favor, tenham a paciência de ouvir sem serem emocionalmente levados ou desviados pelas palavras, e sem objetar a uma ou duas frases ou ideias. Precisamos ter uma imensa paciência para descobrir o que é verdadeiro. A maioria de nós está impaciente para progredir, conseguir um resultado, obter sucesso, atingir uma meta, um certo estado de felicidade, ou experienciar algo a que a mente possa se agarrar. Mas o que é necessário, penso, é uma paciência e uma perseverança em buscar sem visar um fim. A maioria de nós está buscando; é por isso que estamos aqui. Mas em nossa busca queremos obter alguma coisa, um resultado, uma meta, um estado de ser em que possamos ser felizes, pacíficos; assim, a nossa busca já está determinada, não está? Quando buscamos, buscamos algo que queremos, e dessa maneira a nossa busca já está estabelecida, predeterminada e, portanto, já não é mais uma busca. Penso que é muito importante compreender isto. Quando a mente busca um determinado estado, uma solução para um problema, quando busca Deus, a verdade, ou deseja determinada experiência, seja mística ou de qualquer outro tipo, já concebeu aquilo que quer; e porque já concebeu aquilo que quer a sua busca é infinitamente em vão. E uma das coisas mais difíceis é libertar a mente desse desejo de obter um resultado.

Parece-me que os nossos inúmeros problemas não podem ser resolvidos a não ser por meio de uma revolução fundamental da mente, porque só uma revolução assim pode trazer a compreensão daquilo que é a verdade. Assim, é importante compreender o modo como opera a nossa própria mente – compreender não por meio da autoanálise ou da introspecção, mas estando atento[2] ao seu processo total; e é isso o que eu gostaria de tratar durante estas conferências. Se não nos vemos como somos, se não compreendemos o pensador — a entidade que busca, que está perpetuamente demandando, questionando, tentando descobrir, a entidade que está criando o problema, o “Eu”, o self[3], o ego — então o nosso pensamento, a nossa busca, não terá sentido. Enquanto o nosso próprio instrumento de pensar não está claro, está pervertido, condicionado, o que quer que pensemos está fadado a ser limitado, estreito.

Então o nosso problema é como libertar a mente de todo condicionamento, não como condicioná-la melhor. Vocês compreendem? A maioria de nós está buscando um condicionamento melhor. Os comunistas, os católicos, os protestantes e as várias outras seitas do mundo todo, inclusive os hindus e budistas, todos estão buscando condicionar a mente de acordo com um padrão mais virtuoso, não-egoísta ou religioso. Todos nós, no mundo inteiro, certamente tentamos condicionar a mente de um jeito melhor, e nunca surge a questão sobre como libertar a mente de todo o condicionamento. Mas para mim, que até que a mente esteja livre de todo o condicionamento, enquanto estiver condicionada como cristã, budista, hindu, comunista, ou o que seja, haverá problemas.

Seguramente só é possível descobrir o que é real, ou se existe algo como Deus, quando a mente está livre de todo condicionamento. A mera ocupação de uma mente condicionada com Deus, com a verdade, com o amor, não tem sentido algum, pois uma mente assim só pode funcionar dentro do campo do seu condicionamento. O comunista que não crê em Deus pensa de um modo, e o homem que acredita em Deus, que se ocupa com um dogma, pensa de outro; mas a mente de ambos é condicionada, e assim nenhum deles pode pensar livremente, e todos os seus protestos, teorias e crenças têm muito pouco significado. Afinal, religião não é uma questão de ir à igreja, de ter certas crenças e dogmas. A religião pode ser uma coisa inteiramente diferente; pode ser a libertação total da mente de toda essa tradição de séculos, porque só uma mente livre pode encontrar a verdade, a realidade, aquilo que está além das projeções da mente.

Isso não é uma teoria particular minha, como podemos ver pelo que está acontecendo no mundo. Os comunistas querem resolver os problemas da vida de uma certa maneira, os hindus de outra, e os cristãos ainda de outra; portanto, as mentes deles são condicionadas. Sua mente é condicionada como cristã, saiba você disso ou não. Você pode romper superficialmente com a tradição do cristianismo, mas as camadas profundas do inconsciente estão preenchidas com essa tradição; estão condicionadas por séculos de educação conforme um determinado padrão; e, seguramente, a mente que poderia encontrar algo além, se é que há algo assim, deve primeiro estar livre de todo condicionamento.

Durante estas conferências, então, não estamos de modo algum falando sobre autoaperfeiçoamento, e também não estamos preocupados com o aperfeiçoamento do padrão; não estamos buscando condicionar a mente com um padrão mais nobre, ou um padrão de significado social mais amplo. Ao contrário, estamos tentando descobrir como libertar a mente, a consciência total, de todo condicionamento, pois a não ser que isso aconteça não pode haver nenhuma experiência da realidade. Você pode falar sobre a realidade, pode ler incontáveis volumes sobre ela, ler todos os livros sagrados do oriente e do ocidente, mas até que a mente esteja consciente[4] do seu próprio processo, até que veja a si mesma funcionando conforme certo padrão e consiga se libertar desse condicionamento, obviamente toda busca será em vão.

Assim, parece-me da maior importância começar por nós mesmos, estarmos conscientes[5] do nosso próprio condicionamento, perceber o nosso próprio condicionamento. E como é extraordinariamente difícil nos darmos conta que somos condicionados! Nos níveis mais superficiais da mente, podemos perceber[6] que somos condicionados; podemos romper com um padrão e assumir outro, abandonar o cristianismo e nos tornarmos comunistas, deixar o catolicismo e entrar para algum outro grupo tão tirânico quanto, acreditando que estamos evoluindo, caminhando em direção à realidade. Ao contrário, estamos meramente trocando de prisão.

E, ainda assim, é o que a maioria de nós quer — encontrar segurança no nosso modo de pensar. Queremos seguir um padrão estabelecido e não ser perturbados nos nossos pensamentos, nas nossas ações. Mas só a mente capaz de pacientemente observar o seu próprio condicionamento e libertar-se livre dele — só uma mente assim é capaz de ter uma revolução, uma transformação radical, e assim descobrir aquilo que está infinitamente além da mente, além de todos os nossos desejos, das nossas vaidades e procuras. Sem autoconhecimento, sem nos conhecermos como realmente somos — não como gostaríamos de ser, o que é somente ilusão, uma fuga idealista — sem conhecer os caminhos do nosso pensamento, todos os nossos motivos, as nossas inumeráveis respostas, não é possível compreender e ir além de todo esse processo de pensamento.

Você[7] teve muitos problemas para vir até aqui, numa noite quente como esta, para ouvir a conferência. E eu me pergunto se você está realmente ouvindo alguma coisa. O que é ouvir? Penso que é importante entrar um pouco nisto, se vocês não se importarem. Você realmente está ouvindo, ou está interpretando o que está sendo dito em termos da sua própria compreensão? Você é capaz de ouvir alguém? Ou o que acontece é que no processo de escutar surgem vários pensamentos e opiniões, e o seu conhecimento e experiência intervêm entre o que está sendo dito e a sua compreensão sobre isso?

Penso que é importante compreender a diferença entre atenção e concentração. A concentração implica em escolha, não é? Você está tentando se concentrar naquilo que estou dizendo, a sua mente então está focada, tornou-se estreita, e outros pensamentos intervêm; assim, não há uma escuta real, mas sim uma batalha na mente, um conflito entre o que você está escutando e o desejo que tem de traduzir isso, de aplicar o que estou falando, e assim por diante. Ao passo que a atenção é algo inteiramente indiferente. Na atenção não há focalização, não há escolha; há atenção plena[8] sem qualquer interpretação. E se pudermos ouvir com tal atenção, ouvir completamente aquilo que está sendo dito, então essa própria atenção trará à tona o milagre da mudança na mente.

Estamos falando aqui de algo de imensa importância, porque a não ser que haja uma revolução fundamental em cada um de nós, não vejo como poderemos realizar uma mudança ampla e radical no mundo. E essa mudança radical, seguramente, é essencial. A mera revolução econômica, seja comunista ou socialista, não tem importância alguma. A única revolução possível é a revolução religiosa, e ela não pode ocorrer se a mente estiver apenas se conformando ao padrão de um condicionamento prévio. Enquanto formos cristãos ou hindus, não haverá revolução fundamental alguma, não no verdadeiro sentido da palavra ‘religiosa’. E nós realmente precisamos de uma revolução assim. Quando a mente está livre de todo condicionamento, então você descobrirá que surge a criatividade da realidade, de Deus, ou do que quiser chamar, e só essa mente que constantemente experiencia essa criatividade é capaz de criar uma perspectiva diferente, valores diferentes, um mundo diferente.

Assim, é importante compreender a si mesmo, não é? Autoconhecimento é o começo da sabedoria. Autoconhecimento não é seguir o livro de algum psicólogo ou filósofo, mas é conhecer a si mesmo como se é, de momento a momento. Você compreende? Conhecer a si mesmo é observar o que você pensa, como se sente, não apenas superficialmente, mas ser profundamente consciente[9], perceber profundamente aquilo que é sem condenação, sem julgamento, sem avaliação ou comparação. Tente e você verá como é extraordinariamente difícil para uma mente que foi treinada por séculos a comparar, condenar, julgar, avaliar, parar todo esse processo, e simplesmente observar aquilo que é; mas a não ser que isso aconteça, não só no nível superficial, mas atravessando todo o conteúdo da consciência, não pode haver uma real investigação das profundezas da mente.

Por favor, se você realmente está aqui para compreender o que está sendo dito, é nisso que estamos interessados e em nada mais. Nosso problema não é a que sociedades você deveria pertencer, que tipo de atividades deveria dar-se ao luxo de realizar, que livros deveria ler, todo esse negócio superficial, mas como libertar a mente do condicionamento. A mente não é apenas a consciência desperta que está ocupada com as atividades diárias, mas também as camadas profundas do inconsciente em que há todo o resíduo do passado, da tradição, dos instintos raciais. Tudo isso é a mente, e a não ser que essa consciência total esteja totalmente livre, nossa busca, nossa indagação, nossa descoberta será limitada, estreita, insignificante.

A mente está totalmente condicionada; não há nenhuma parte da mente que não esteja condicionada, e assim o nosso problema é: uma mente assim pode libertar a si mesma? E quem é a entidade que pode libertá-la? Você compreende qual é o problema? A mente é a consciência total, com todas as suas diferentes camadas de conhecimento, aquisição, tradição, instintos raciais, memória; e uma mente assim pode libertar a si mesma? Ou a mente só pode ser livre quando ela vê que é condicionada e que cada movimento desse condicionamento é ainda outra forma de condicionamento? Espero que estejam seguindo tudo isso. Se não, examinaremos essas coisas nos próximos dias.

A mente é completamente condicionada — o que, se você parar para pensar, é um fato óbvio. Não estou inventando isso. É um fato. Pertencemos a uma determinada sociedade; crescemos de acordo com uma determinada ideologia, com certos dogmas, tradições; e a vasta influência da cultura, da sociedade, está continuamente condicionando a mente. Como uma mente assim pode ser livre, se todos os seus movimentos, cada um deles, é resultado do seu condicionamento e, portanto, causam mais condicionamento? Só há uma resposta. A mente só pode ser livre quando estiver completamente imóvel.[10] Ainda que tenha problemas, incontáveis desejos, conflitos, ambições, se — por meio do autoconhecimento, observando a si mesma sem aceitação ou condenação — a mente está incondicionalmente atenta[11] ao seu próprio processo, então dessa atenção surge um silêncio surpreendente, uma quietude da mente em que não há qualquer tipo de movimento. Só então a mente está livre, porque já não deseja nada; não busca mais; não persegue mais nenhuma meta ou ideal — que são projeções de uma mente condicionada. E caso consiga compreender isso, uma compreensão em que não pode haver autoengano — descobrirá que pode surgir essa coisa extraordinária que se chama criatividade. Somente então a mente pode compreender aquilo que não tem medida, que pode ser chamado de Deus, verdade, ou o que se queira — a palavra tem muito pouco significado. Você pode ser socialmente próspero, pode ter posses incontáveis, carros, casas, refrigeradores, paz superficial, mas a não ser que venha a existir aquilo que está para além de qualquer medida, sempre haverá dor. Libertar a mente do condicionamento é o fim da dor.

Há muitas questões aqui, e qual é a função de perguntar e receber uma resposta? Resolvemos algum problema fazendo uma pergunta? O que é um problema? Por favor, acompanhem isto, pensem comigo. O que é um problema? Somente surge um problema quando a mente está ocupada com alguma coisa, não é? O que significa ter um problema? Digamos que a minha mente esteja ocupada da manhã à noite com inveja, ciúme, sexo, ou o que for. É a ocupação da mente com um objeto que cria o problema. A inveja pode ser um fato, mas é a ocupação da mente com o fato que cria o problema, o conflito. Não é assim?

Digamos que eu seja invejoso, ou tenha um anseio violento, de um tipo ou de outro. A inveja se expressa; há conflito, e então minha mente fica ocupada com o conflito — como se libertar dele, como resolvê-lo, o que fazer a respeito. É o fato de a mente ficar ocupada com a inveja que cria o problema, não a inveja em si — e já já vamos entrar nisso, o significado completo da inveja. O nosso problema, então, não é o fato, mas ocuparmo-nos com o fato. E a mente pode ficar livre de todo esse ocupar-se? A mente é capaz de lidar com o fato sem se ocupar com ele? Vamos examinar essa questão de a mente se ocupar com algo à medida que formos seguindo. É realmente muito interessante observar a nossa mente em operação.

Assim, considerando essas questões aqui juntos, estamos tentando libertar a mente desse ocupar-se com, o que significa olhar para o fato sem se ocupar com ele. Ou seja, se eu tenho uma determinada compulsão, posso olhar para ela sem ficar ocupado com ela? Por favor, veja a sua própria e peculiar compulsão de irritabilidade ou o que for. Consegue olhar para ela sem que a mente fique ocupada por ela, sem que se ocupe dela? Ocupar-se com implica no esforço para resolver essa compulsão, não é? Você a condena, compara-a com alguma outra coisa, tenta alterá-la, superá-la. Em outras palavras, tentar fazer alguma coisa com a sua compulsão é ocupação, não é? Mas você consegue olhar para o fato de que tem uma determinada compulsão, um desejo, um anseio, percebê-los sem comparar, sem julgar, e assim não deflagrar todo o processo de ficar ocupado?

Psicologicamente é muito interessante observar isto — como a mente é incapaz de olhar para um fato como a inveja sem trazer à cena o vasto complexo de opiniões, julgamentos, avaliações com a qual essa mente está ocupada — e assim nunca resolvemos o fato porque multiplicamos os problemas. Espero estar sendo claro. E penso que é importante para nós compreender este processo de ocupar-se com porque há um fator muito mais profundo por trás dele, que é o medo de não estar ocupado com alguma coisa. Esteja a mente ocupada com Deus, com a verdade, com sexo, ou com bebida, a sua qualidade é essencialmente a mesma. O homem que pensa em Deus e se torna um ermitão pode ser socialmente mais significativo; ele pode ter mais valor para a sociedade do que o bêbado, mas ambos estão ocupados, e uma mente que está ocupada nunca está livre para descobrir o que é verdade. Por favor, não rejeite ou aceite o que estou dizendo; olhe para isso, averigue, investigue. Se cada um de nós realmente puder atentar para isto, der a nossa completa atenção para todo o processo da ocupação da mente com um problema qualquer sem tentar libertar a mente da ocupação, o que é meramente outra maneira de mantê-la ocupada — se conseguimos entender esse processo completamente, totalmente, então penso que o problema em si se tornará irrelevante. Quando a mente está livre de ficar ocupada com o problema, livre para observar, para estar consciente[12] de toda a questão, então o problema em si pode ser resolvido de forma relativamente mais fácil.

Pergunta: Todos os nossos problemas parecem vir do desejo; mas poderemos alguma vez estar livres do desejo? O desejo é inerente em nós, ou é um produto da mente?

Krishnamurti: O que é o desejo? E por que separamos o desejo da mente? E quem é a entidade que diz “Desejo cria problemas; assim, devo me libertar do desejo”? Entende? Temos que compreender o que o desejo é, não ficarmos perguntando como nos livrar dele porque ele cria problemas, ou se é um produto da mente. Primeiro precisamos saber o que o desejo é, e então podemos ir mais profundamente nisso. O que é o desejo? Como surge o desejo? Vou explicar e você verá, mas não fique só ouvindo as minhas palavras. Experiencie realmente aquilo sobre que estivermos falando à medida que seguimos, e então isso terá significado.

Como surge o desejo? Certamente ele surge por meio da percepção, ou visão, contato, sensação, e então desejo. Não é assim? Primeiro você vê um carro, e então há um contato, uma sensação, e finalmente o desejo de possuir o carro, de dirigi-lo. Por favor, acompanhem isto com calma, pacientemente. Então, ao tentar obter esse carro, que é desejo, há conflito. Assim, na própria realização do desejo há conflito, há dor, sofrimento, alegria, e você quer ficar com o prazer e descartar a dor. Isso é o que na verdade acontece em cada um de nós. A entidade criada pelo desejo, a entidade que se identifica com o prazer, diz: “Preciso me livrar daquilo que não é prazeroso, daquilo que é doloroso.” Nunca dizemos “Quero me ver livre da dor e do prazer”. Queremos ficar com o prazer e descartar a dor, não é? O desejo, que vem à tona por meio da percepção, contato e sensação, é identificado com o ‘eu’ que quer agarrar-se àquilo que é prazeroso e descartar o que é doloroso. Mas o prazeroso e o doloroso são igualmente resultados do desejo, que é parte da mente — não está fora da mente — e enquanto houver uma entidade que diz “quero ficar com isto e descartar aquilo” haverá forçosamente conflito. E pelo fato de querermos nos livrar dos desejos dolorosos e nos agarramos aos que são primariamente prazerosos, que valem a pena, nunca consideramos o todo do problema do desejo. E quando dizemos: “Devo me livrar do desejo,” quem é a entidade que tenta se livrar de alguma coisa? Não é essa entidade também resultado do desejo? Você compreende tudo isto?

Por favor – como eu disse no começo da conferência, você precisa ter uma paciência infinita para compreender estas coisas. Para as questões fundamentais, não há resposta absoluta de sim ou não. O importante é propor-se uma questão fundamental, e não encontrar a resposta; e se formos capazes de olhar para essa questão fundamental sem buscar uma resposta, então essa observação daquilo que é fundamental traz com ela a compreensão.

Assim, nosso problema não é como nos livrarmos dos desejos dolorosos ao mesmo tempo em que nos agarramos aos que trazem prazer, mas compreender toda a natureza do desejo. Isso traz a questão: o que é conflito? E quem é a entidade que está sempre escolhendo entre o prazeroso e o doloroso? A entidade a quem chamamos de ‘eu’, o self, o ego, a mente, que diz “Isto é prazer, isto é dor; vou me agarrar ao que é prazeroso e rejeitar o doloroso” — essa entidade não é, ainda, desejo? Mas se formos capazes de olhar para todo o campo do desejo, e não em termos que manter ou livrar-nos de algo, descobriremos que o desejo tem um significado bem diferente.

O desejo cria contradição, e a mente que está completamente alerta não gosta de viver em contradição; assim, ela tenta se livrar do desejo. Mas se a mente puder compreender o desejo sem tentar jogá-lo para longe, sem dizer “Este desejo é melhor e aquele é pior; vou ficar com este e jogar fora o outro”; se ela puder estar consciente[13] do campo total do desejo sem rejeitar, sem escolher, sem condenar, então você verá que a mente é desejo; ela não é separada do desejo. Se você realmente compreender isso, a mente ficará muito calma e quieta; os desejos vêm, mas não têm mais impacto; eles não têm maior significado; eles não fincam raízes na mente e criam problemas. A mente reage; de outra maneira, não estaria viva; mas a reação é superficial e não cria raízes. Eis porque é importante compreender todo esse processo do desejo em que a maioria de nós está presa. Estando presos, sentimos a contradição, a dor infinita que há nisso, e então lutamos contra esse desejo – e é essa que cria dualidade. Ao passo que se pudermos olhar para o desejo sem julgamento, sem avaliação ou condenação, descobriremos que ele não se enraiza mais. A mente que nutre problemas nunca poderá descobrir aquilo que é real. Assim, o assunto não é como resolver o desejo, mas compreendê-lo, e só podemos compreendê-lo quando não existe condenação dele. Só a mente que não está ocupada com o desejo pode compreender o desejo.

 

CONFERÊNCIA 2

“Em todo lugar, a sociedade condiciona o indivíduo, e esse condicionamento toma a forma de autoaperfeiçoamento, que é na realidade a perpetuação do ‘eu’, do ego, em diferentes formas. O autoaperfeiçoamento pode ser grosseiro, ou pode ser muito, muito refinado – ao tornar-se prática da virtude, da bondade, do assim chamado amor ao próximo, mas é essencialmente a continuação do ‘eu’, que é um produto das influências condicionadoras da sociedade. Todo o nosso empenho se dirige a nos tornarmos algo, seja neste mundo, se você conseguir, ou no outro; mas é o mesmo anseio, o mesmo impulso de manter e continuar o self.”

SEGUNDA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  7 de agosto de 1955

Talvez valha a pena, antes de tudo, examinarmos juntos o que queremos dizer quando falamos em ouvir. Aparentemente você está aqui para ouvir e para compreender o que está sendo dito, e eu acho que é importante descobrir como ouvimos, porque a compreensão depende do modo como ouvimos. Enquanto ouvimos ficamos discutindo conosco mesmos o que está sendo dito, interpretando de acordo com as nossas opiniões particulares, nosso conhecimento e nossas idiossincrasias, ou ouvimos de maneira realmente atenta e sem qualquer tipo de interpretação? E o que significa prestar atenção? Parece-me muito importante diferenciar atenção de concentração. Somos capazes de ouvir com uma atenção sem interpretação, sem oposição ou aceitação, de maneira a entendermos totalmente o que está sendo dito? É bem óbvio, penso eu, que se conseguimos ouvir com atenção plena, essa atenção por si mesma gera um efeito extraordinário.

Certamente, há dois modos de ouvir. Podemos acompanhar superficialmente as palavras, o significado delas, e ficar meramente mera busca do significado aparente, exterior, da descrição; ou podemos ouvir a descrição, as afirmações verbais, e segui-las internamente — quer dizer, ficarmos atentos[14] ao que está sendo dito como algo que estamos experienciando diretamente em nós mesmos. Se pudermos fazer deste segundo modo — ou seja, se por meio da descrição pudermos experienciar diretamente aquilo que está sendo dito — penso que então tudo terá grande significado. Talvez vocês queiram experimentar isto à medida que ouvem.

No mundo há grande pobreza, como na Ásia, e grande riqueza, como neste país; há crueldade, sofrimento, injustiça, um modo de viver em que não há amor. Vendo tudo isso, o que fazer? Qual é a abordagem verdadeira para todos estes incontáveis problemas? Em todo lugar, as religiões vêm enfatizando o autoaperfeiçoamento, o cultivo da virtude, a aceitação da autoridade, seguir certos dogmas e crenças, realizar grandes esforços para estar em conformidade. Não apenas na religião, mas também social e politicamente, somos constantemente incitados ao autoaperfeiçoamento. Devo ser mais nobre, mais gentil, mais atencioso, menos violento. A sociedade, com a ajuda da religião, trouxe uma cultura de autoaperfeiçoamento no sentido mais amplo da palavra. E isso é o que cada um de nós tenta fazer o tempo todo — tentamos melhorar a nós mesmos, o que implica esforço, disciplina, conformidade, competição, aceitação da autoridade, um sentimento de segurança, a justificação da ambição. E o autoaperfeiçoamento produz mesmo alguns resultados óbvios; ele nos torna mais inclinados à sociedade; tem significado social e nada mais, porque o autoaperfeiçoamento não revela a realidade suprema. Penso que é muito importante compreender isto.

As religiões que temos não nos ajudam a compreender aquilo que é real porque elas essencialmente se baseiam não no desapegar-se do ‘eu’, mas na melhoria, no refinamento desse ‘eu’, o que é, de diversas formas, a continuidade dele. São muito poucos os que rompem com a sociedade, não com as suas armadilhas aparentes, mas com todas as implicações de uma sociedade que é baseada na ganância[15], na inveja, na comparação, competição. Essa sociedade condiciona a mente a um padrão particular de pensamento, o padrão do autoaperfeiçoamento, do autoajustamento, do auto-sacrifício, e só aqueles que são capazes de romper com todo condicionamento podem descobrir aquilo que não é mensurável pela mente.

Agora: o que queremos dizer com esforço? Estamos todos nos esforçando; nosso padrão social está baseado no esforço de adquirir, de compreender mais, de ter mais conhecimento, e de agir tendo como pano-de-fundo esse conhecimento. Há sempre um esforço de autoaperfeiçoamento, de autoajustamento, de correção, essa necessidade de preencher, com suas frustrações, medos e misérias. Conforme esse padrão, que todos nós conhecemos e do qual todos somos parte, é perfeitamente justificável ser ambicioso, competir, ter inveja, buscar um determinado resultado; e a nossa sociedade, seja na América, na Europa ou na Índia, está essencialmente baseada nisso.

Então: a nossa sociedade, a nossa cultura em seu sentido mais amplo, ajudam o indivíduo a encontrar a verdade? Ou ela é prejudicial ao homem, impedindo-o de descobrir aquilo que é a verdade? A sociedade como nós a conhecemos, essa cultura em que vivemos e funcionamos, certamente ajuda o homem a se conformar com um determinado padrão, a ser respeitável, e é produto de muitas vontades. Nós criamos esta sociedade; ela não surgiu por si mesma. E esta sociedade ajuda o indivíduo a encontrar a verdade, Deus — use o nome que quiser, as palavras não importam — ou o indivíduo deve deixar totalmente de lado a cultura, os valores da sociedade, para descobrir o que é a verdade? O que não significa — por favor, lembremo-nos disso muito claramente — que ele se torna antissocial, ou faça aquilo que quer. Ao contrário.

A presente estrutura social está baseada na inveja, na ganância, que implica a conformidade, a aceitação da autoridade, a perpétua realização da ambição, que é essencialmente a luta do self, do ‘eu’, para tornar-se alguma coisa. De tudo isso é feita a sociedade, e a sua cultura — o prazeroso e o desprazeroso, o feio e o bonito, o campo inteiro do empenho social — condiciona a mente. Você é o resultado da sociedade. Se tivesse nascido e sido treinado na Rússia, por meio da sua forma particular de educação, negaria a Deus, aceitaria certos padrões, como aqui você aceita outros padrões determinados. Aqui você acredita em Deus; ficaria horrorizado se assim não o fizesse; não seria respeitável.

Assim, em todo lugar, a sociedade condiciona o indivíduo, e esse condicionamento toma a forma de autoaperfeiçoamento, que é na realidade a perpetuação do ‘eu’, do ego, em diferentes formas. O autoaperfeiçoamento pode ser grosseiro, ou pode ser muito, muito refinado – ao tornar-se prática da virtude, da bondade, do assim chamado amor ao próximo, mas é essencialmente a continuação do ‘eu’, que é um produto das influências condicionadoras da sociedade. Todo o nosso empenho se dirige a nos tornarmos algo, seja neste mundo, se você conseguir, ou no outro; mas é o mesmo anseio, a mesmo impulso de manter e continuar o self.

Quando a gente vê tudo isso — e eu não estou necessariamente entrando em todos os detalhes — inevitavelmente se pergunta: a sociedade ou a cultura existem para ajudar o homem a descobrir aquilo que pode ser chamado de verdade ou de Deus? Seguramente o que importa é descobrir, experienciar verdadeiramente algo que está muito além da mente, e não só ter uma crença, que não tem significado algum. E as assim chamadas religiões, seguir vários mestres, disciplinas, pertencer a seitas, cultos, que estão todos, se você observar, dentro do campo da respeitabilidade social — alguma dessas coisas ajuda a você a descobrir aquilo que é a bem-aventurança atemporal[16], sem começo e sem fim, a realidade atemporal? Se você não ficar só ouvindo aquilo que está sendo dito, concordando ou discordando, mas perguntar a si mesmo se a sociedade ajuda você, não no sentido superficial de alimentá-lo, fornecer-lhe roupas, dar-lhe abrigo, mas fundamentalmente — se você de verdade colocar essa questão diretamente a si mesmo, o que significa aplicar o que está sendo dito a si mesmo de maneira que isso se torne uma experiência direta, e não meramente uma repetição daquilo que escutou ou aprendeu, então verá que o esforço só pode existir no campo do autoaperfeiçoamento. E o esforço é basicamente parte da sociedade, que condiciona a mente em conformidade a um padrão em que esforçar-se é considerado essencial.

É assim. Se eu sou um cientista, devo estudar, devo saber matemática, devo saber tudo o que foi dito antes, devo possuir uma imensa acumulação de conhecimento. Minha memória deve ser exaltada, fortalecida e ampliada. Mas na realidade essa memória, esse conhecimento, impedem que aconteçam mais descobertas. Só quando eu esquecer a aquisição total de conhecimento, varrer para longe toda informação que adquiri, que pode ser usada depois — somente então posso encontrar algo novo. Não posso encontrar nada novo com o peso do passado, com o peso do conhecimento, que é, de novo, um fato psicológico óbvio. E estou dizendo isso porque nós nos aproximamos da realidade, daquele extraordinário estado de criatividade, com todo o peso da sociedade, com o condicionamento de uma dada cultura, e assim nunca descobriremos nada novo. Seguramente aquilo que é o sublime, o eterno[17], deve sempre ser novo, atemporal, e para que o novo aconteça, não pode haver nenhum empenho no campo em que o esforço é exercitado como autoaperfeiçoamento ou autorrealização. Só quando esse esforço cessa totalmente é que o novo é possível.

Por favor, isto é realmente muito importante. Não é uma questão de olhar para o seu umbigo e entrar em alguma espécie de ilusão, mas de compreender o processo inteiro do esforço na sociedade — esta sociedade de que você é produto, que você construiu, e na qual o esforço é essencial, porque de outro modo você está perdido. Se você não é ambicioso, é destruído; se você não é ganancioso, pisam em cima de você; se você não é invejoso, não pode ser um executivo ou um grande sucesso. Assim você está constantemente fazendo esforço para ser ou não ser, para tornar-se alguma coisa, para ter sucesso, realizar a sua ambição; e com essa mentalidade, que é o produto da sociedade, fica tentando encontrar algo que não é parte da sociedade.

Agora, se queremos descobrir o que é a verdade, devemos estar totalmente livres de todas as religiões, de todos os condicionamentos, de todos os dogmas, de todas as crenças, de toda autoridade que nos peça conformidade, o que significa, essencialmente, estar completamente sozinho, e isso é extremamente árduo; não é um hobby de domingo de manhã, em que você sai para dar um passeio agradável, sentar-se sob as árvores e ouvir alguma bobagem. Descobrir o que é a verdade requer imensa paciência, gentileza, delicadeza. Só estudar os livros não tem valor algum; mas se você ouvir com atenção completa, verá que essa própria atenção o liberta do esforço, de modo que sem realizar nenhum movimento em direção alguma, a mente é capaz de receber algo que é extraordinariamente belo e criativo, que não pode ser medido pelo conhecimento, pelo passado. Só uma pessoa assim é realmente religiosa e revolucionária, porque não é mais parte da sociedade. Enquanto formos ambiciosos, invejosos, gananciosos, competitivos, somos a sociedade. Com essa mentalidade, de que é extraordinariamente difícil libertar-se, buscamos a Deus; mas essa busca não tem sentido algum, porque não passa de outro esforço para nos tornarmos alguma coisa, ganhar alguma coisa. Eis porque é muito importante compreendermos a nossa relação com a sociedade, estarmos conscientes e percebermos[18] todas as crenças, dogmas, pressupostos, doutrinas e superstições que adquirimos, e jogar tudo isso fora — não com esforço, porque assim você novamente seria pego por eles, mas apenas vendo essas coisas pelo que elas realmente são e desapegando-se delas, como as folhas outonais que secam e são levadas pelo vento, deixando a árvore nua. Só uma mente assim pode receber alguma coisa que traga felicidade imensurável à vida.

Ao examinar com vocês algumas destas questões, obviamente eu não as estou respondendo, porque estamos tentando descobrir juntos a significância que têm. Se você só estiver ouvindo para encontrar uma resposta para a questão, receio que ficará desapontado, porque então não está interessado no problema, mas só preocupado com a resposta — como a maioria de nós está. Sinto que é muito importante fazer perguntas fundamentais, e continuar fazendo-as sem tentar buscar uma resposta, porque quanto mais você persistir fazendo essas perguntas fundamentais, buscando-as, investigando-as, mais inteligente e esperta a mente se tornará. Então quais são as questões fundamentais? Alguém pode dizer a você quais elas são, ou você mesmo precisa buscá-las? Se você puder descobrir por si mesmo quais são as questões fundamentais, a sua mente já se alterou; ela se tornou muito mais significativa do que quando faz uma pergunta insignificante e encontra uma resposta insignificante.

Pergunta: A delinquência juvenil neste país está aumentando em proporção alarmante. Como poderá ser resolvido esse problema que não para de crescer?

Krishnamurti: Obviamente há revolta, há indignação dentro do padrão da sociedade. Algumas revoltas são respeitáveis, outras não, mas elas estão sempre dentro do campo da sociedade, dentro dos limites do cercado social. E seguramente uma sociedade que se baseia na inveja, na ambição, na crueldade, na guerra, deve esperar que haja revolta dentro de si. Afinal de contas, quando você vai ao cinema e vê muita violência. Houve duas enormes guerras mundiais, retratando a violência total. Uma nação que mantém forças armadas deve ser destrutiva para com seus próprios cidadãos. Por favor, escutem tudo isto. Nenhuma nação será pacífica enquanto possuir forças armadas, sejam elas defensivas ou ofensivas. Uma força armada é ao mesmo tempo ofensiva e defensiva; ela não traz paz alguma. No momento em que uma cultura cria e mantém uma força armada, está destruindo a si mesma. Isto é historicamente um fato. E por todo lado somos encorajados a ser competitivos, a ser ambiciosos, a ter sucesso. Competição, ambição e sucesso são os deuses de uma sociedade particularmente próspera como esta, e o que você espera? Você quer que a delinquência juvenil se torne respeitável, e só. Você não entra na raiz do problema, que é cessar todo esse processo da guerra, de manter forças armadas, de ser ambicioso, de encorajar a competição. Essas coisas, que estão enraizadas nos nossos corações, são as cercas de uma sociedade dentro da qual a revolta acontece o tempo todo, tanto da parte dos jovens quanto dos velhos. O problema não é só da delinquência juvenil; ele envolve toda a nossa estrutura social, e não existe resposta para ele enquanto você e eu não dermos um passo totalmente para fora da sociedade — sociedade aqui representando a ambição, a crueldade, o desejo de ter sucesso, de se tornar alguém, de estar no topo. Esse processo todo é essencialmente uma busca egocêntrica de preenchimento que foi tornada respeitável. Como vocês adoram um homem de sucesso! Como vocês condecoram um homem que mata milhares de outros! E há todas as divisões trazidas pelas crenças, pelos dogmas — os cristãos e os hindus, os budistas e os muçulmanos. São estas as coisas que estão produzindo conflito; e quando você se empenha em lidar com a delinquência juvenil meramente mantendo os jovens em casa, ou disciplinando-os, ou mandando-os para o exército, ou recorrendo às várias soluções oferecidas pelos psicólogos e reformadores sociais, está certamente lidando muito superficialmente com uma questão fundamental. Mas temos medo de abordar questões fundamentais porque nos tornaríamos muito impopulares, seríamos chamados de comunistas ou Deus sabe do que mais, e para a maioria de nós os rótulos parecem ter uma importância extraordinária. Seja na Rússia, na Índia, ou aqui, o problema é essencialmente o mesmo, e só quando compreendermos toda esta estrutura social descobriremos uma abordagem inteiramente diferente para o problema, estabelecendo assim, talvez, paz real, não esta falsa paz dos políticos.

Pergunta: Em minha procura, fui de mestre em mestre, e agora chego a você nesse mesmo espírito de busca. Você é diferente de todos os outros em alguma coisa, e como poderei ter certeza disso?

Krishnamurti: Bem, você realmente está buscando, e o que quer dizer buscar? Você compreende a questão? Obviamente você está buscando algo, mas o quê? Essencialmente você busca um estado mental que nunca será perturbado, e que você chama de paz, Deus, amor, ou o que seja. Não é isso? Nossa vida é perturbada, ansiosa, cheia de medo, escuridão, cheia de reviravoltas, confusão, e queremos escapar de tudo isso; mas quando um homem confuso busca, a sua busca é baseada na confusão e, portanto, só o que encontra é mais confusão. Você está acompanhando isto?

Sendo assim, primeiramente precisamos investigar por que buscamos e o que estamos buscando. Você pode ir de mestre em mestre, cada professor oferecendo-lhe um método, disciplina ou meditação diferente, alguns pura bobagem; então o que importa, certamente, não é o professor e o que ele oferece, mas aquilo que você está buscando. Se você conseguir ter uma grande clareza sobre o que está buscando, encontrará um professor que lhe oferecerá isso. Mas aquilo que você busca pode não ser verdadeiro. Você entende? Eu posso querer a felicidade suprema, o que significa um estado mental não-perturbado em que haverá completa quietude, sem conflito, sem dor, sem investigação, sem dúvida; então pratico uma disciplina que algum professor ofereça, e é provável que exatamente essa disciplina produza um resultado, que eu chame de paz. Posso também tomar alguma pílula, alguma droga, que terá o mesmo efeito — só que não será respeitável, enquanto o outro sim. [Risadas] Por favor, não é um assunto para rir; isso é o que realmente estamos fazendo.

Então, obviamente, aquilo que você busca é o que irá encontrar, se estiver disposto a pagar por isso. Se você se colocar nas mãos de outra pessoa, se seguir alguma autoridade ou disciplina, se controlar a si mesmo, encontrará o que busca, o que quer dizer que na verdade o seu desejo está ditando a sua busca; mas você não está nada consciente da motivação[19] da sua busca… e então você me pergunta sobre a minha posição, e sobre como irá saber se o que estou dizendo é falso ou verdadeiro. Tendo procurado vários professores, e ficado enrolado com isso, agora quer tentar aqui. Mas eu não estou lhe dizendo nada; na verdade eu não estou lhe dizendo absolutamente nada. Tudo o que estou dizendo é: conheça a si mesmo, cada vez mais profundamente, veja você como realmente é, coisa que ninguém pode ensiná-lo; e você não pode ver a si mesmo como realmente é se estiver limitado por crenças, por dogmas, por superstições, por medos.

Senhores, para uma mente que não pode ficar sozinha, a busca não terá sentido algum. Ficar sozinho significa ser desprovido de corrupção, ser inocente, livre de toda tradição, dogma, opinião, livre daquilo que o outro fala, e assim por diante. Uma mente assim não busca porque não há nada para buscar; essa mente, sendo livre, é completamente imóvel, sem nenhum desejo ou movimento. Mas este estado não pode ser conquistado; não é uma coisa que se compre pela disciplina; não acontece por desistirmos do sexo, ou praticarmos certo tipo de ioga. Ele só acontece quando há compreensão sobre o self, o ‘eu’, que se mostra pela mente consciente na atividade diária, e também no inconsciente. O que importa é compreender por si mesmo, não por meio da direção dos outros, o conteúdo total da consciência, que é condicionado, que é resultado da sociedade, da religião, dos vários impactos, impressões, memórias — compreender todo esse condicionamento e livrar-se dele. Mas não existe “como” ser livre. Se você pergunta como ser livre, não está ouvindo.

Digamos, por exemplo, que eu esteja dizendo a você que a mente deve ser totalmente incondicionada. Agora: como você ouve uma afirmação desse tipo? Com que atenção você a ouve? Se você está observando a sua própria mente, o que eu espero que esteja fazendo, verá que está dizendo internamente: “Isso é totalmente impossível”, ou “Não dá para fazer isso”, ou “O condicionamento só pode no máximo ser modificado”, e assim por diante. Em outras palavras, você não está ouvindo atentamente a afirmação, mas sim se opondo a ela com as suas próprias opiniões, com suas próprias conclusões, com seu próprio conhecimento; logo, não existe atenção.

O fato é que a mente é condicionada, seja como um comunista, como um católico, como um protestante, como um hindu, ou o que for, e ou estamos desapercebidos, inconscientes desse condicionamento, ou tentamos aceitá-lo, ou tentamos modificá-lo, enobrecê-lo, mudá-lo; mas nunca colocamos a questão: pode a mente ficar totalmente livre do condicionamento? Antes que você possa realmente colocar com atenção essa questão para si mesmo, deve primeiro perceber, estar consciente[20] de que a sua mente é condicionada, o que ela obviamente é. Você entende o que eu quero dizer com condicionamento? Não é o condicionamento superficial da linguagem, dos gestos, do costume e todo o resto, mas um condicionamento muito mais profundo, mais fundamental. A mente é condicionada quando é ambiciosa, não só neste mundo, mas ambiciosa de tornar-se algo espiritual. Todo este empenho de autoaperfeiçoamento é resultado do condicionamento – e pode a mente ficar totalmente livre desse condicionamento? Se você se colocar realmente essa questão, com atenção, sem buscar uma resposta, então encontrará a resposta certa, que não é sobre ser possível ou impossível, mas algo totalmente diferente acontece.

Então é importante descobrir o modo como prestamos atenção a estas conferências. Se você não presta atenção, asseguro-lhe que é uma perda de tempo vir aqui todo final de semana. Pode ser agradável dirigir até Ojai, mas faz muito calor. Ao passo que, se você puder prestar atenção direta ao que está sendo dito, o que não quer dizer lembrar algo que leu ou opor opinião com opinião, ou fazer anotações e dizer “Vou pensar sobre isto mais tarde”, mas de fato colocar para si mesmo a questão dada imediatamente, enquanto você escuta, então essa própria realidade da atenção traz a resposta certa.

Pergunta: Hoje é um fato bem estabelecido que muitas das nossas doenças são psicossomáticas, causadas por profundas frustrações interiores e conflitos, de muitos dos quais estamos inconscientes[21]. Deveríamos recorrer aos psiquiatras como recorremos aos médicos, ou há uma maneira do homem libertar a si próprio desse tumulto interior?

Krishnamurti: O que levanta a questão: qual é a posição dos psicanalistas? E qual é a posição daqueles de nós que têm algum tipo de enfermidade ou doença? A doença é causada pelas nossas perturbações emocionais, ou não tem nenhum significado emocional? A maioria de nós está perturbada. A maioria está confusa, em turbilhão, mesmo os muito prósperos que têm refrigeradores, carros, e o resto todo; e como não sabemos lidar com a perturbação, inevitavelmente ela atua no físico e produz uma doença, o que é bem óbvio. E a questão é: devemos correr para os psiquiatras para que eles nos ajudem a recuperar a saúde, ou é possível descobrirmos por nós mesmos como não ficarmos perturbados, como não entrarmos nesse turbilhão, nessas ansiedades, nesse medo?

Por que estamos perturbados, se estamos? O que é perturbação? Quero alguma coisa, mas não consigo obtê-la, e então fico alterado. Quero me realizar através dos meus filhos, da minha mulher, da minha propriedade, através da minha posição, do meu sucesso, e tudo o mais, mas estou bloqueado, o que significa que estou perturbado. Sou ambicioso, mas outro me atropela e chega à minha frente; de novo estou no caos, no turbilhão, e isso produz a reação física correspondente.

Agora, podemos você e eu nos libertar de todo esse turbilhão, de toda essa confusão? O que é confusão? Você compreende? O que é confusão? A confusão só aparece quando existe o fato mais aquilo que eu penso sobre o fato: a minha opinião sobre o fato, o meu desprezo quanto a esse fato, minha fuga desse fato, minha avaliação sobre esse fato, e assim por diante. Se eu puder olhar para o fato sem essa qualidade aditiva, cumulativa, não há confusão. Se reconheço o fato de que certa estrada leva até Ventura, não há confusão. A confusão só surge quando eu penso ou insisto que a estrada leva a outro lugar — e este é realmente o estado em que a maioria de nós está. Nossas opiniões, nossas crenças, nossos desejos, ambições, são tão fortes, estamos tão curvados ao peso deles, que ficamos incapazes de olhar para o fato.

Assim, o fato mais a opinião, o julgamento, a avaliação, a ambição, e tudo o mais, gera a confusão. E podemos você e eu, estando confusos, não agir? Seguramente toda ação que nasce da confusão deve levar a uma confusão ainda maior, mais turbilhão, e tudo isso age sobre o corpo, sobre o sistema nervoso, e produz enfermidades. Estando confuso, reconhecer que está confuso não requer coragem, mas certa clareza de pensamento, clareza de percepção. A maioria de nós tem medo de reconhecer que estamos confusos, e de dentro dessa confusão escolhemos líderes, professores, políticos; e quando escolhemos a partir da nossa confusão, esta escolha há de ser confusa, e o líder por sua vez também.

É possível, então, estar consciente[22] da nossa confusão, saber a causa dessa confusão, e não agir? Quando uma mente confusa age, só pode produzir ainda mais confusão; mas uma mente que percebe que está confusa e compreende todo esse processo de confusão precisa não agir, porque essa própria clareza já é a sua ação. Penso que para a maioria das pessoas isso é muito difícil de entender porque estamos muito acostumados com o agir, com o fazer; mas se conseguirmos olhar para a ação, ver quais são os seus resultados, observar o que acontece no mundo politicamente e por todo lado, então ficará razoavelmente óbvio que a assim chamada ação reformista só produz mais confusão, mais caos, e mais reformas.

Assim, podemos ficar conscientes, perceber[23] a nossa própria confusão, o nosso próprio turbilhão, e viver com ele, compreendê-lo, sem querermos nos livrar dele, afastá-lo, ou fugir dele? Enquanto o estivermos chutando, condenando, fugindo dele, esse é o processo de confusão. E eu não penso que qualquer analista possa resolver esse problema. Ele pode ajudar você temporariamente a se conformar com um certo padrão da sociedade que ele chama de existência normal, mas o problema é muito mais profundo do que isso, e ninguém pode solucioná-lo a não ser você mesmo. Você e eu fizemos esta sociedade; ela é o resultado das nossas ações, dos nossos pensamentos, do nosso próprio ser, e enquanto estivermos meramente tentando reformar o produto sem compreender a entidade que o produziu, teremos mais doenças, mais caos, mais delinquência. A compreensão do eu traz a sabedoria e a ação correta.

 

CONFERÊNCIA 3

“Nosso problema é como sermos bons sem tentarmos ser bons. Penso que há uma grande diferença entre os dois… Uma pessoa que tenta ser humilde obviamente não tem a menor compreensão do que é humildade. É possível sentir humildade sem cultivar a humildade?”

TERCEIRA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  13 de agosto de 1955

Para mim, uma das nossas maiores dificuldades é a comunicação. Quero dizer alguma coisa, com a intenção de que vocês compreendam, naturalmente, mas cada um de nós interpreta as palavras que ouve conforme seu pano-de-fundo peculiar, e assim, com uma audiência grande como esta, é extremamente difícil transmitir exatamente o que a gente pretende.

Gostaria de discutir esta noite algo que considero muito importante, que é todo o problema do cultivo da virtude. Podemos ver que sem virtude a mente é muito caótica, contraditória, e sem uma mente calma, em ordem, sem uma mente em que não há conflito, obviamente não podemos ir muito longe. Mas a virtude não é um fim em si mesma. O cultivo da virtude nos leva para uma direção, e ser virtuoso leva para outra. A maioria de nós se preocupa com o cultivo da virtude porque, ainda que apenas superficialmente, a virtude realmente nos dá uma certa pose, uma certa quietude da mente em que não existe esse incessante conflito entre desejos contraditórios. Mas parece-me mais ou menos óbvio que só o cultivo da virtude nunca poderá trazer a liberdade, levando apenas a uma tranquilidade respeitável, a um senso de ordem e de controle, que surge por moldar a mente de modo a que ela se conforme com um certo padrão social que é chamado de virtude.

Assim, o nosso problema é como sermos bons sem tentarmos ser bons. Penso que há uma enorme diferença entre os dois. Ser bom é um estado em que não há esforço, mas não estamos nesse estado. Somos invejosos, ambiciosos, fofoqueiros, cruéis, estreitos, com uma mente mesquinha, presa em várias formas de estupidez, o que não é bom; e sendo isso tudo, como podemos chegar a um estado da mente que seja bom sem se esforçar para ser bom? Certamente o homem que faz esforço para ser virtuoso não é virtuoso, é? Uma pessoa que tenta ser humilde obviamente não tem a menor compreensão do que é a humildade. E não sendo humilde, é possível sentir humildade sem cultivar a humildade?

Eu não sei se você já pensou um pouco sobre este problema. Podemos ver muito bem que deve haver virtude. É como manter a sala limpa e arrumada; mas ter uma sala arrumada não é uma coisa importante em si mesma. Fazer da virtude um fim em si mesma obviamente traz benefícios sociais; ajuda você a ser um assim chamado cidadão decente, que vive de acordo com um certo padrão, seja aqui, na Índia ou na Rússia. Mas não é de extrema importância que a mente esteja em ordem sem que seja necessário esforço, disciplina, esquecendo esse assunto de modo que não fique a todo minuto controlada, disciplinada, cultivando a conformidade?

Afinal de contas, o que é que estamos buscando? O que é que cada um de nós busca, não na teoria, no abstrato, mas realmente? E há alguma diferença entre a busca do homem que está querendo satisfação por meio do conhecimento, por meio de Deus, e a do homem que busca ser rico, que busca realizar sua ambição, ou que tenta satisfazer-se bebendo? Socialmente, há uma diferença. O homem que busca satisfação bebendo é obviamente um ser antissocial, ao passo que o homem que busca satisfação entrando para uma ordem religiosa, tornando-se um eremita, e assim por diante, é socialmente benéfico — mas é só isso.

Assim, aquilo que estamos buscando traz de fato contentamento, por mais sérios que sejamos na nossa busca? E somos sérios, não somos? O eremita, o monge, o homem que busca diversas formas de prazer, cada um deles, a seu modo, é muito sério. E isso é seriedade[24]? Há seriedade quando existe a busca para adquirir alguma coisa? Vocês entendem a minha pergunta? Ou só há seriedade quando não existe busca por um fim?

Afinal, vocês que estão aqui devem ser pelo menos um pouco sério; de outro modo, não teriam se dado ao trabalho de vir. Agora, pergunto a mim mesmo, e espero que estejam se perguntando também, o que significa ser sério, porque penso que o que vou explicar daqui a pouco depende disso. Se você está aqui buscando contentamento, ou buscando compreender alguma experiência passada, ou tentando cultivar um certo estado mental que você pensa que lhe dará tranquilidade, paz, ou experienciar aquilo que chama de realidade, Deus, talvez esteja sendo muito sério; mas você não deveria questionar essa seriedade? É seriedade quando você está buscando alguma coisa que lhe dará prazer ou tranquilidade?

Se pudermos realmente compreender todo esse processo de busca, compreender por que buscamos e o que buscamos — e esse processo só pode ser compreendido pelo autoconhecimento, pela percepção, consciência[25] do movimento do nosso próprio pensamento, das nossas próprias reações e respostas, dos nossos desejos — talvez então descobriremos o que é ser virtuoso sem nos disciplinarmos para sermos virtuosos. Eu penso que enquanto a mente estiver sendo mantida em conflito, ainda que possamos suprimi-lo, ainda que tentemos fugir dele, discipliná-lo, controlá-lo, moldá-lo conforme vários padrões, esse conflito permanece latente na mente, e uma mente assim nunca poderá estar realmente calma. E é essencial, me parece, ter uma mente calma porque a mente é o nosso único instrumento de compreensão, de percepção, de comunicação, e enquanto esse instrumento não está completamente limpo e apto para a percepção, capaz de buscar sem um fim, não pode existir liberdade, nem tranquilidade e, portanto, também não pode haver nenhuma descoberta de algo novo.

Sendo assim, é possível viver neste mundo — em que há tanto tumulto, ansiedade, insegurança — sem esforço? Para mim essa é uma questão muito importante, porque a criatividade é algo que só aparece quando a mente está em um estado em que não há esforço. Não estou usando a palavra “criatividade” no sentido acadêmico de aprender a escrita criativa, a interpretação artística criativa, o pensamento criativo, e todas essas coisas; eu a estou usando em um sentido inteiramente diferente. Quando a mente está em um estado em que o passado, com o seu cultivo da virtude por meio da disciplina, cessou completamente — só então há uma criatividade atemporal[26], que pode ser chamada de Deus, de verdade ou daquilo que você quiser. Então, como a mente pode ficar nesse estado de criatividade constante?

Quando você está com um problema, o que acontece? Você pensa sobre ele, se afunda nele, faz um estardalhaço, fica tremendamente excitado com ele; e quanto mais você o analisa, mais cava o buraco, quanto mais o fica polindo, preocupando-se com ele, menos o compreende. Mas no momento em que você se distancia dele, aí sim o compreende — a totalidade da coisa de repente fica muito clara. Penso que a maioria de nós já teve essa experiência. A mente que não está mais em um estado de confusão, de conflito, é capaz de receber ou perceber algo totalmente novo. E é possível para a mente permanecer nesse estado, nunca repetitivo, experienciando o tempo todo algo novo? Penso que isso depende da compreensão que tivermos desse problema do cultivo da virtude.

Nós cultivamos a virtude; nós nos disciplinamos para ficar em conformidade com um determinado padrão de moralidade. Por quê? Não apenas para sermos socialmente respeitáveis, mas também porque vemos a necessidade de criar ordem, de controlar as nossas mentes, a nossa fala, o nosso pensamento. Nós vemos como isso é extraordinariamente importante; mas, no processo de cultivar a virtude, estamos construindo memória, memória que é o ‘eu’, o self, o ego. Esse é o background que temos, especialmente aqueles de nós que pensam que são religiosos — o background de constantemente praticar uma determinada disciplina, de pertencer a certas seitas, grupos, as assim chamadas ordens religiosas. A recompensa dessas pessoas talvez esteja em um outro lugar, no próximo mundo, mas ainda assim há uma recompensa; e ao buscar a virtude, o que significa polir, disciplinar, controlar a mente, elas estão desenvolvendo e mantendo a memória que vem da consciência do eu, e assim em momento algum estão livres do passado.

Se você alguma vez realmente já disciplinou a si mesmo, praticando não ter inveja, não ficar com raiva, e assim por diante, fico imaginando se notou que justamente essa prática, esse disciplinamento da mente, deixa uma série de memórias daquilo que é conhecido? É um problema realmente difícil este que estamos examinando, e espero estar sendo claro. Todo o processo de dizer “Não devo fazer isto” nutre ou constrói o tempo, e uma mente que está presa pelo tempo obviamente nunca poderá experienciar algo que está além do tempo, que é atemporal[27], como é o desconhecido. Ainda que a mente deva estar em ordem, livre de desejos contraditórios — isso não significa entrar em conformidade, aceitação, obediência.

Assim sendo, se você realmente está levando isso a sério, no sentido em que estou usando essa palavra, esse problema inevitavelmente tem que surgir. A sua mente é o resultado daquilo que é conhecido. Sua mente é o conhecido; é moldada por memórias, por reações, por impressões do conhecido, e uma mente que é mantida dentro do campo do conhecido nunca poderá abranger ou experienciar o desconhecido, algo que não está dentro do campo do tempo. A mente só é criativa quando está livre do conhecido — e então ela pode usar o conhecido, que é a técnica. Estou me fazendo claro, ou tudo está claro como lama? [Risadas]

Você vê, estamos tão entediados que constantemente ficamos lendo, instruindo-nos, aprendendo, indo a igrejas, fazendo rituais, e nunca vivemos um momento original, pristino, inocente, completamente livre de todas as impressões; e esse é o momento criativo, atemporal, eterno, ou qualquer palavra que queira usar. Sem essa criatividade, a vida se torna muito insípida, estúpida, e todas as nossas virtudes, o nosso conhecimento, as nossas buscas, nossas diversões e entretenimentos têm muito pouco significado. Como eu disse outro dia, a sociedade fica no mero cultiva daquilo que é conhecido, e nós somos o resultado dessa sociedade. Para encontrar o desconhecido, é essencial estar livre da sociedade — o que não significa que você deve retirar-se para um monastério e orar de manhã até a noite, eternamente disciplinando a si mesmo, conformando-se a uma certa crença, um certo dogma. Certamente isso não liberta da mente daquilo que é conhecido.

A mente é o resultado do conhecido; é o resultado do passado, que é a acumulação do tempo. É possível para uma mente assim, sem esforço, livrar-se daquilo que é conhecido, de modo a poder descobrir algo original? Qualquer esforço que faça para se libertar, qualquer busca com o intuito de encontrar, ainda está dentro do campo do conhecido. Certamente, Deus ou a verdade devem ser algo que nunca foi pensado até então; deve ser algo inteiramente novo, não-formulado, nunca descoberto ou experienciado antes. E como pode uma mente que é resultado daquilo que é conhecido experienciar isso? Você está acompanhando o problema? Se o problema estiver claro, então você encontrará o modo certo de abordá-lo, que não é um método.

Eis porque é importante descobrir se podemos ser bons, no sentido completo da palavra, sem tentarmos sê-lo, sem fazer esforço para nos livrarmos da inveja, da ambição, da crueldade, sem nos disciplinarmos para parar de fofocar — você sabe, todo esse monte de estruturas que impomos a nós mesmos para sermos bons. Pode haver bondade sem a tentativa de ser bom? Só pode haver se cada um de nós souber ouvir, souber estar atento – agora. Só há bondade quando há atenção plena. Veja a verdade de que não pode haver bondade pelo empenho, pelo esforço, veja de fato a verdade que há nisso — e você só poderá ver essa verdade se der plena atenção àquilo que está sendo dito. Esqueça todos os livros que leu, as coisas que lhe contaram, e dê atenção plena à afirmação de que não pode existir virtude enquanto houver empenho em ser virtuoso. Enquanto eu estiver tentando ser não-violento, há violência; enquanto estiver tentando ser não-invejoso, sou invejoso; enquanto estiver tentando ser humilde, há orgulho. Se eu vejo a verdade que há nisso, não intelectual ou verbalmente apenas (que é meramente escutar as palavras e concordar com elas), mas simples e diretamente, então a partir daí vem a bondade. Mas a dificuldade é que a mente diz então: “Como posso manter esse estado? Eu posso até ser bom enquanto estou sentado aqui, ouvindo algo que sinto ser verdade, mas no momento em que sair ficarei novamente preso na corrente da inveja.” Mas eu não acho que isso tenha importância — você vai saber.

A nossa cultura, a nossa sociedade, são baseadas na inveja, em vários tipos de ganância – ganância pelo conhecimento, pela experiência, pela propriedade, pelo que você quiser. E para estar livre de tudo isso não é necessário empenho, esforço, mas sim compreender todas as implicações do esforço. Um homem que está adquirindo conhecimento não é pacífico, ele foi pego pelo esforço. A mente só é pacífica quando está totalmente desprovida de esforço, e esse é um estado realmente extraordinário. Eu penso que qualquer pessoa pode alcançá-lo se colocar o coração e a atenção plena nesse assunto. Uma mente que não está trabalhando, que não está tentando se tornar coisa alguma, social ou espiritualmente, que é completamente nada — só uma mente assim pode receber o novo.

Pergunta: Alguns filósofos afirmam que a vida tem propósito e sentido, enquanto outros sustentam que ela é totalmente acidental, caótica e absurda. O que você acha? Você nega o valor das metas, ideais e propósitos; mas sem eles, a vida tem algum significado?

Krishnamurti: O que dizem os filósofos tem grande significado para cada um de nós? Alguns intelectuais dizem que há sentido, significado na vida, que ela é importante, enquanto outros dizem que ela é caótica e absurda. Certamente, cada um à sua maneira, negativa ou positivamente, ambos estão dando significado à vida, não estão? Um afirma, outro nega, mas essencialmente ambos são a mesma coisa. Isso é razoavelmente óbvio.

Agora, quando você busca um ideal, um objetivo, ou indaga qual é o propósito da vida, essa própria indagação ou busca se baseia no desejo de dar significado à vida, não é? Eu não sei se você está seguindo tudo isso.

Minha vida não tem significado, vamos supor, e assim eu busco dar significado a ela. “Qual é o propósito da vida?” eu digo, porque se a vida tem um propósito, então, de acordo com esse propósito, eu posso viver. Sendo assim, eu invento ou imagino um propósito, ou pela leitura, indagação, busca, eu encontro um propósito; logo, estou dando significado à vida. Assim como o intelectual, à sua maneira, dá significado à vida quando nega ou afirma que ela tem propósito e sentido, nós também damos significado à vida por meio dos nossos ideais, da nossa busca por uma meta, por Deus, pelo amor, pela verdade. O que significa na realidade que, sem darmos um significado à vida ela não tem nenhum sentido para nós. Viver não é bom o bastante para nós, então queremos dar um significado à vida. Eu não sei se vocês veem isso.

Qual é o significado da nossa vida, a de vocês e da minha, à parte do que dizem os filósofos? Ela tem algum significado, ou nós lhe estamos dando um significado por meio de crenças, como o intelectual que se torna um católico, ou outra coisa, e assim encontra abrigo? O intelecto dele despedaçou tudo; ele não aguenta estar sozinho, solitário e tudo o mais, então tem que ter uma crença no catolicismo, no comunismo, ou em alguma outra coisa que o nutra, que dê para ele significado à vida.

Agora, eu me pergunto: Por que queremos um significado? E o que quer dizer viver sem significado algum? Você compreende? Sendo a nossa vida vazia, atormentada, solitária, queremos dar a ela um significado. E é possível estarmos conscientes[28] do nosso vazio, solidão, tristeza, e toda labuta e conflito da nossa vida, sem tentar sair disso, sem artificialmente dar um significado para a vida? Podemos estar conscientes[29] dessa coisa extraordinária que chamamos de vida, que é o ganho da subsistência, a inveja, a ambição, a frustração — só estarmos conscientes[30] de tudo isso sem condenar ou justificar, e ir além? Parece-me que enquanto estamos buscando ou dando significado à vida, estamos perdendo algo extraordinariamente vital. É como o homem que quer encontrar o significado da morte e fica sempre tentando racionalizá-la, explicá-la — ele nunca experiencia o que é a morte. Vamos entrar nisso em outra conferência.

E não estamos todos tentando encontrar uma razão para a nossa existência? Quando amamos, temos uma razão para isso? Ou é o amor o único estado que não tem absolutamente razão alguma, nem explicação, nem empenho, nem a tentativa de ser alguma coisa? Talvez nós não conheçamos esse estado. Sem conhecê-lo, tentamos imaginá-lo, dar significado à vida; e como as nossas mentes são condicionadas, limitadas, medíocres, o significado que damos à vida, os nossos deuses, os nossos rituais, as nossas empreitadas, também são medíocres.

Não é importante, então, que encontremos por nós mesmos o significado que damos à vida, se é que damos? Certamente os propósitos, as metas, os Mestres, os deuses, as crenças, os fins por meio dos quais buscamos preenchimento são todos inventados pela mente; todos são produto do nosso condicionamento, e ao compreender isso, não é importante descondicionar[31] a mente? Quando a mente está não-condicionada e, portanto, não está dando significado à vida, então a vida é uma coisa extraordinária, algo totalmente diferente da estrutura da mente. Mas primeiro devemos conhecer o nosso condicionamento, não devemos? E é possível conhecer o nosso condicionamento, as nossas limitações, o nosso background, sem forçar, sem analisar, sem tentar sublimar ou suprimir tudo isso? Porque todo esse processo envolve a entidade que observa e que se separa do observado, não é? Enquanto houver o observador e o observado, o condicionamento continua. Por mais que o observador, o pensador, o censor, tente se livrar do seu condicionamento, ele ainda está preso por ele porque a própria divisão entre o pensador e o pensamento, o experienciador e a experiência, é a perpetuação do condicionamento; e é extremamente difícil deixar que essa divisão se desfaça, porque isso envolve todo o problema da vontade.

Nossa cultura está baseada na vontade — na vontade de ser, de tornar-se, de obter, de realizar, de cumprir — e, portanto, sempre existe, em cada um de nós, a entidade que tenta mudar, controlar, alterar aquilo que observa. Mas há uma diferença entre aquilo que ela observa e ela própria, ou ambas são uma? Isto é algo que não pode ser aceito simplesmente. É preciso refletir, lidar com isso com tremenda paciência, gentileza, delicadeza, de maneira que a mente não esteja mais separada daquilo que pensa, de maneira que o observador e o observado sejam psicologicamente um. Enquanto eu estou psicologicamente separado daquilo que percebo em mim como inveja, tento superar a inveja; mas esse “eu”, o fazedor do esforço para superar a inveja, é diferente da inveja? Ou eles são ambos o mesmo, só que o “eu” se separou da inveja para poder superá-la porque sente que ela é dolorosa, e por várias outras razões? Mas essa própria separação é a causa da inveja.

Talvez você não esteja acostumado com esta maneira de pensar, e ela seja um pouco abstrata demais. Mas uma mente que é invejosa nunca fica tranquila, porque está sempre comparando, sempre tentando se tornar algo que não é; e se a gente se debruçar neste problema da inveja radicalmente, profundamente, chegaremos inevitavelmente a isso — se a entidade que deseja se livrar da inveja não é a própria inveja. Quando compreendemos que é a própria inveja que quer se livrar da inveja, então a mente está consciente[32] do sentimento chamado inveja, sem qualquer condenação ou tentativa de se livrar dele. Disso surge o problema: existe sentimento se não há verbalização? Porque a própria palavra inveja é condenatória, não é? Estou dizendo coisas demais de uma vez só?

Há sentimento de inveja se eu não nomeio esse sentimento? Pelo próprio nomear, não estou mantendo esse sentimento? O sentimento e o nomear são quase simultâneos, não são? E é possível separá-los de maneira que só haja um senso de reação, sem nomear? Se você entrar realmente nisso, descobrirá que quando não existe o nomear desse sentimento, a inveja cessa totalmente — não apenas a inveja que você sente porque alguém é mais belo ou tem um carro melhor, e toda essa coisa estúpida, mas toda a tremenda profundidade da inveja, a raiz da inveja. Todos nós somos invejosos; não há um que não o seja, à sua maneira. Mas a inveja não é só a coisa superficial; ela é todo o senso de comparação que vai muito fundo e ocupa tão amplamente as nossas mentes, e para estar radicalmente livres da inveja, não pode haver nenhum censor, nenhum observador da inveja tentando se livrar da inveja. Vamos entrar nisso em outro momento.

Pergunta: Estar livre de condenação, justificativa ou comparação é estar em um estado mais elevado de consciência. Eu não estou nesse estado, então como vou fazer para chegar lá?

Krishnamurti: Você vê: a própria questão “Como vou fazer para chegar lá” é invejosa. [Risadas] Não, senhores, por favor, prestem atenção. Vocês querem obter alguma coisa, e então vocês têm métodos, disciplinas, religiões, igrejas, e toda essa superestrutura que é pautada na inveja, na comparação, na justificativa, na condenação. A nossa cultura está baseada nessa divisão hierárquica entre aqueles que têm mais e aqueles que têm menos, aqueles que sabem e aqueles que não sabem, aqueles que são ignorantes e aqueles que são cheios de sabedoria, e assim a nossa abordagem a esse problema está totalmente errada. A pessoa diz: “Estar livre de condenação, justificativa ou comparação é estar em um estado mais elevado de consciência”. É mesmo? Ou simplesmente não estamos conscientes[33] de que estamos condenando, comparando? Por que primeiro afirmamos que é um estado mais elevado de consciência e depois, a partir disso, criamos o problema de como chegar lá e quem vai nos ajudar a chegar lá? Não é muito mais simples do que tudo isso?

Ou seja, não estamos nada conscientes[34] de nós mesmos; não vemos que estamos condenando, comparando. Se pudermos diariamente nos observar sem justificar ou condenar nada, só conscientes[35] de como nunca pensamos sem julgar, comparar, avaliar, então essa mesma consciência[36] basta. Estamos sempre dizendo: “Este livro não é tão bom quanto o outro”, ou “Este homem é melhor do que aquele”, e assim por diante; há este constante processo de comparação, e pensamos que pela comparação, compreendemos. Compreendemos? Ou a compreensão só vem quando não estamos comparando, mas sim prestando realmente atenção? Há comparação quando você olha atentamente para algo? Quando você está totalmente atento, não tem tempo de comparar, tem? No momento em que você compara, a sua atenção se desviou para alguma outra coisa. Quando você diz “Este pôr-do-sol não é tão bonito quanto o de ontem”, não está realmente olhando para o pôr-do-sol; a sua mente já se desviou para a memória de ontem. Mas se você puder olhar para ele completamente, totalmente, com toda a sua atenção, então certamente a comparação cessará.

 

Assim, o problema não é como conseguir algo, mas indagar por que não estamos atentos. Não estamos atentos, obviamente, porque não estamos interessados. Não diga: “E como vou ficar interessado?” Isso é irrelevante, não é a questão. Por que você deveria se interessar? Se você não está interessado em ouvir o que está sendo dito, por que se incomodar com isso? Mas você está incomodado, porque a sua vida é cheia de inveja, sofrimento, e você quer encontrar uma resposta, você quer encontrar um sentido. Se você quer encontrar um sentido, dê atenção plena. A dificuldade é que não somos sérios a respeito de nada, sérios no sentido correto da palavra. Quando você dá plena atenção a algo, você não está tentando tirar nada desse algo, está? Nesse momento de atenção plena não há nenhuma entidade que tenta mudar, modificar, ou tornar-se alguma coisa; não há nenhum self. No momento de atenção o self, o ‘eu’, está ausente, e esse momento de atenção é que é bom, que é amor.

 

CONFERÊNCIA 4

Se queremos compreender o problema do sofrimento e talvez pôr um fim nele, não podemos pensar em termos de progresso, porque o homem que pensa em termos de progresso, de tempo, dizendo que será feliz amanhã, vive na dor.

QUARTA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  14 de agosto de 1955

Uma das coisas mais difíceis de entender, parece-me, é esse problema da mudança. Vemos que há diferentes formas de progresso, a assim chamada evolução, mas existe realmente uma mudança fundamental nesse progresso? Eu não sei se você, de alguma forma, já foi tocado por esse problema, ou se alguma vez pensou a respeito, mas talvez valha a pena, nesta manhã, entrar nessa questão.

Vemos que existe progresso no sentido óbvio da palavra; novas invenções, carros melhores, aviões melhores, refrigeradores melhores, a paz superficial de uma sociedade progressista, e assim por diante. Mas esse progresso traz consigo uma mudança radical no homem, em você e em mim? Na superfície ele altera a conduta da sua vida, mas pode de alguma maneira transformar fundamentalmente o nosso pensamento? E como podemos ocasionar essa transformação fundamental? Creio que este é um problema que vale a pena considerar. Há progresso no autoaperfeiçoamento — posso ser melhor amanhã, mais gentil, mais generoso, menos invejoso, menos ambicioso. Mas o autoaperfeiçoamento ocasiona uma mudança completa no nosso modo de pensar? Ou não há mudança de espécie alguma, só progresso? Progresso implica em tempo, não implica? Sou isto hoje, e devo ser algo melhor amanhã. Ou seja, no autoaperfeiçoamento ou autonegação, ou auto-abnegação, há progresso, há o gradualismo de dirigir-se para uma vida melhor, que implica em ajustar-se superficialmente ao ambiente, entrando em conformidade com um padrão melhorado, sendo condicionado de maneira mais nobre, e assim por diante. Vemos esse processo acontecer o tempo todo. E você deve ficar se perguntando, como eu fico, se o progresso realmente traz uma revolução fundamental.

Para mim, o importante não é o progresso, mas a revolução. Por favor, não fiquem horrorizados com a palavra revolução, como a maioria das pessoas fica, em uma sociedade muito progressista como esta. Mas me parece que a não ser que compreendamos a extraordinária necessidade de ocasionar não só uma melhoria social, mas uma mudança radical na nossa perspectiva, o mero progresso é progresso no sofrimento; ele pode pacificar e acalmar esse sofrimento, mas não consegue fazer cessá-lo. Ele continua sempre latente. Afinal de contas, o progresso no sentido de uma melhoria ao longo de um certo tempo é realmente o processo do self, do ‘eu’, do ego. Há progresso no autoaperfeiçoamento, obviamente, que é o esforço dirigido para ser bom, para ser mais isto ou menos aquilo, e assim por diante. Assim como há uma melhoria nos refrigeradores e nos aeroplanos, também há uma melhoria no self, mas essa melhoria, esse progresso, não liberta a mente do sofrimento.

Assim, se queremos compreender o problema do sofrimento e talvez pôr um fim nele, não podemos pensar em termos de progresso, porque o homem que pensa em termos de progresso, de tempo, dizendo que será feliz amanhã, vive no sofrimento. E, para compreender este problema, devemos entrar em toda a questão da consciência[37], não devemos? Este é um assunto difícil demais? Vou seguir em frente e veremos.

Se eu realmente quero compreender o sofrimento e talvez fazê-lo cessar, devo descobrir não somente quais são as implicações do progresso, mas também qual é a entidade que quer melhorar a si mesma, e devo, além disso, saber o motivo pelo qual ela busca melhorar. Tudo isso é consciência. Há a consciência superficial da atividade diária: o trabalho, a família, o constante ajustamento ao ambiente social, seja na facilidade, na felicidade, ou contraditoriamente, com uma neurose. E também há o nível mais profundo da consciência, que é a vasta herança social do homem ao longo dos séculos: a vontade de existir, a vontade de mudar, a vontade de vir a ser. Se eu quiser ocasionar uma revolução fundamental em mim mesmo, certamente tenho que compreender esse progresso total da consciência.

Podemos ver que o progresso obviamente não traz revolução. Não estou falando de uma revolução social ou econômica — que é muito superficial, a maioria de nós concordará. A derrubada de um sistema social ou econômico e o estabelecimento de outro de fato muda certos valores, como na Revolução Russa e outras revoluções históricas. Mas eu estou falando de uma revolução psicológica, que é a única revolução, e o homem religioso deve estar nesse estado de revolução – sobre o qual vou falar agora.

Ao nos defrontarmos com este problema do progresso e da revolução, é preciso que haja uma presença mental[38], uma compreensão da totalidade do processo da consciência[39]. Vocês compreendem? Até que eu realmente compreenda o que é a consciência[40], o mero ajustamento na superfície – ainda que possa ter importância sociológica e talvez trazer uma maneira melhor de viver, mais comida, menos fome por inanição na Ásia, menos guerras – nunca poderá resolver o problema fundamental do sofrimento. Sem compreender, sem solucionar e ultrapassar os motivos e desejos que ocasionam o sofrimento, o mero ajustamento social é a continuação dessa semente latente do sofrimento. Então, devo compreender o que é a consciência[41], não de acordo com alguma filosofia, psicologia ou descrição, mas experienciando diretamente o estado real da minha consciência, o seu conteúdo total.

Agora, talvez nesta manhã você e eu possamos fazer algumas experiências com isso. Vou descrever o que é consciência[42]; mas enquanto eu a descrevo, não siga a descrição, mas observe o processo do seu próprio pensamento, e então descobrirá por si mesmo o que é a consciência – sem ler nenhum dos relatos contraditórios das descobertas dos especialistas. Você entende? Estou descrevendo algo. Se você ficar meramente ouvindo a descrição, ela terá muito pouco significado; mas se, por meio dela, você experienciar a sua própria consciência[43], o seu próprio processo de pensar, tudo isso terá uma enorme importância agora – não amanhã, não algum outro dia quando você tiver tempo de pensar sobre isso, o que é uma tolice absoluta, porque é mero adiamento. Se por meio da descrição você puder experienciar o estado real da sua própria consciência[44] neste momento em que está aqui sentado e calmo, então descobrirá que a mente é capaz de se libertar da sua vasta herança de condicionamento, de todas as acumulações e decretos da sociedade, e é capaz também de ir além da autoconsciência. Assim, se você fizer uma experiência com tudo isso, valerá a pena.

Estamos tentando descobrir por nós mesmos o que é consciência[45], e se é possível para a mente ficar livre do sofrimento — não mudar o padrão de sofrimento, não decorar a prisão do sofrimento, mas estar completamente livre da semente, da raiz do sofrimento. Indagando sobre isso, veremos a diferença entre o progresso e a revolução psicológica, que é essencial, caso queiramos a libertação do sofrimento. Não estamos tentando alterar a conduta da nossa consciência; não estamos tentando fazer nada a esse respeito; estamos apenas olhando para ela. Seguramente, se estamos de fato observando, minimamente conscientes de alguma coisa qualquer[46], conhecemos as atividades da consciência superficial. Podemos ver que na superfície a nossa mente está ativa, ocupada em ajustar-se, ocupada com o trabalho, com o sustento, em expressar certas tendências, dons, talentos, ou em adquirir algum conhecimento técnico; e a maioria de nós fica satisfeita em viver nessa superfície.

Por favor, não fique meramente seguindo o que eu estou lhe dizendo, mas observe você mesmo, a sua própria maneira de pensar. Estou descrevendo o que acontece superficialmente agora, na nossa vida diária — distrações, fugas, lapsos ocasionais de medo, ajustamento à esposa, ao marido, à família, à sociedade, à tradição, e assim por diante — e a maioria de nós se satisfaz com essa superficialidade.

Agora, podemos ir mais fundo nisso e ver o motivo desse ajustamento superficial? De novo: se você tiver um pouco de consciência[47] desse processo em seu todo, sabe que este ajustamento à opinião, aos valores, essa aceitação da autoridade, e assim por diante, são motivados pela autoperpetuação, pela autoproteção. Se você conseguir ir ainda mais fundo, descobrirá que há essa vasta corrente das tendências e dos instintos raciais, nacionais e grupais, todas as acumulações provenientes da luta, do conhecimento e do empenho humano, os dogmas e tradições dos hindus, dos budistas ou dos católicos, o resíduo da assim chamada educação ao longo de séculos — tudo isso tendo condicionado a mente a um certo padrão herdado. E se você for a um nível ainda mais profundo, há o desejo primal de ser, de ter sucesso, de vir-a-ser, que se expressa na superfície como as várias formas de atividade social, e cria ansiedades e medos profundamente arraigados. De maneira bem sucinta, a totalidade disso tudo é a nossa consciência[48]. Em outras palavras, o nosso pensamento está baseado nesse ímpeto fundamental de ser, de tornar-se, e em cima dele ficam as muitas camadas da tradição, da cultura, da educação, e o condicionamento superficial de uma dada sociedade — tudo isso forçando-nos à conformidade com um padrão que nos permita sobreviver. Há muitos detalhes e sutilezas, mas essencialmente a nossa consciência[49] é essa.

Agora, qualquer progresso dentro dessa consciência é autoaperfeiçoamento, e autoaperfeiçoamento é progresso no sofrimento, e não a cessação do sofrimento. Isso é bem óbvio, se você olhar bem. Mas se a mente quer libertar-se de todo sofrimento, o que ela deve fazer então? Eu não sei se você já pensou sobre este problema, mas por favor pense agora.

Nós sofremos, não sofremos? Sofremos não só com doenças físicas, com as enfermidades, mas também com a solidão, com a pobreza do nosso ser; sofremos porque não somos amados. Quando amamos alguém e não recebemos amor de volta, há sofrimento. Em todas as direções, pensar é ficar tomado pelo sofrimento; assim, parece melhor não pensar, aceitar uma crença e ficar estagnado nela, que é o que chamamos de religião.

Agora, quando a mente vê que o progresso e o autoaperfeiçoamento não trazem o fim do sofrimento, o que é bem óbvio, o que deve fazer? Pode a mente ir além dessa consciência[50], além dessas várias motivações e desejos contraditórios? E esse ir além é uma questão de tempo? Por favor, acompanhe isto, não apenas as palavras, mas acompanhe de fato. Se for uma questão de tempo, então você está de volta novamente à outra coisa, que é o progresso. Você vê isto? Dentro da estrutura da consciência, qualquer movimento, seja em que direção for, é autoaperfeiçoamento e, portanto, a continuação do sofrimento. O sofrimento pode ser controlado, disciplinado, subjugado, racionalizado, super-refinado, mas a sua qualidade potencial de sofrimento ainda está lá; e para se libertar do sofrimento, é preciso estar livre dessa potencialidade, dessa semente do ‘eu’, do self, de todo o processo de vir-a-ser. Para ir além, esse processo deve cessar. Mas se você pergunta “Como faço para ir além?”, esse “como” se torna o método, a prática, que ainda é progresso e, portanto, não existe o ir além, mas somente o refinamento da consciência[51] no sofrimento. Espero que você esteja entendendo isto.

A mente pensa em termos de progresso, de melhoria, de tempo; e será que é possível para uma mente como essa, vendo que o assim chamado progresso é progresso no sofrimento, chegar a um fim — não no tempo, não amanhã, mas imediatamente? Se não, você estará de volta novamente à rotina toda, à velha roda do sofrimento. Se o problema estiver expresso com clareza, e compreendido com clareza, então você descobrirá a resposta absoluta. Estou usando a palavra absoluta em seu sentido correto. Não há outra resposta.

Ou seja, a nossa consciência[52] está o tempo todo lutando para ajustar-se, para se modificar, para mudar, para absorver, rejeitar, avaliar, condenar, justificar; mas qualquer um desses movimentos da consciência ainda está dentro do padrão do sofrimento. Qualquer movimento dentro dessa consciência, como os sonhos, como o exercício da vontade, é o movimento do self; e qualquer movimento do self, seja na direção do mais elevado ou do mais mundano, gera sofrimento. Quando a mente vê isso, então o que acontece com ela? Você entende a questão? Quando a mente vê a verdade disso, não de maneira meramente verbal, mas totalmente, então há um problema? Há um problema quando estou vendo uma serpente e sei que ela é venenosa? Similarmente, se eu puder dar a minha atenção total a este processo de sofrimento, então a mente não está além do sofrimento?

Por favor, acompanhe isto. As nossas mentes agora estão ocupadas com o sofrimento, com como evitá-lo, tentando superá-lo, diminuí-lo, modificá-lo, refiná-lo, fugir dele de várias maneiras. Mas se eu vejo, não apenas na superfície, mas indo a fundo, que essa mesma ocupação da mente com o sofrimento é o movimento do self que cria o sofrimento — se eu realmente vejo a verdade disso, então a mente não está além disso que chamamos de consciência de si[53]?

Dizendo de outra maneira, a nossa sociedade está baseada na inveja, na ganância, não somente na América, mas também na Europa, na Ásia; e somos o produto dessa sociedade, que existiu por séculos, por milênios. Por favor, acompanhe isto. Percebo que sou invejoso. Posso refinar isso, controlar isso, disciplinar isso, encontrar uma compensação para isso por meio da caridade, da reforma social, e assim por diante; mas a inveja está sempre lá, latente, pronta para entrar em cena. Então, como pode a mente se libertar totalmente da inveja? Porque a inveja traz inevitavelmente o conflito, a inveja é um estado em que não existe criatividade, e um homem que quer descobrir o que é a criatividade deve obviamente se libertar de toda inveja, de toda comparação, dos ímpetos de ser, de vir-a-ser.

A inveja é um sentimento que identificamos com uma palavra. Identificamos o sentimento dando-lhe um nome, atribuindo-lhe a palavra inveja. Vou bem devagar e, por favor, acompanhe isto, porque é a descrição da nossa consciência. Há um estado de sentimento[54], e eu dou a ele um nome, chamo-o de inveja. A própria palavra inveja é condenatória; ela tem significados sociais, morais e espirituais que são parte da tradição em que fui educado, e exatamente por empregá-la, então, condenei o sentimento, e este processo de condenação é autoaperfeiçoamento. Ao condenar a inveja, estou progredindo na direção oposta, que é não-inveja, mas esse movimento ainda provém do centro que é invejoso.

Então, pode a mente parar de nomear? Quando há um sentimento de ciúme, de cobiça, ou de ambição de ser alguma coisa, pode a mente, que é educada em palavras, em condenações, em dar nomes, parar todo o processo de nomear? Experimente com isto, e você verá como é extraordinariamente difícil não nomear um sentimento. O sentimento e o nomear são quase simultâneos. Mas se o nomear não acontece, existe o sentimento? O sentimento persiste quando não é nomeado? Você está acompanhando tudo isso, ou é abstrato demais? Não concorde comigo ou discorde de mim, porque esta não é a minha vida – é a sua.

Todo este problema de nomear um sentimento, de dar a ele uma palavra, é parte do problema da consciência[55]. Tome uma palavra como amor. Como a sua mente se alegra imediatamente com ela! Tem tanto significado, tanta beleza, tanto conforto, e tudo o mais. E a palavra ódio tem imediatamente um outro significado muito diferente, algo que deve ser evitado, de que devemos nos livrar, nos esquivar, e assim por diante. As palavras, então, têm um extraordinário efeito psicológico sobre a mente, estejamos ou não conscientes dele.

Agora, pode a mente se libertar de toda essa verbalização? Se ela pode — e ela deve poder, caso contrário não terá como ir além —surge então o problema: existe um experienciador, alguém que experiencia, separado da experiência? Se existe um experienciador separado da experiência, então a mente é condicionada, porque o experienciador sempre está ou acumulando ou rejeitando experiências, traduzindo cada uma delas em termos do seu próprio “gosto” e “não gosto”, em termos do seu próprio background, do seu condicionamento; se ele tem uma visão, pensa que é Jesus, que é um Mestre, ou sabe lá Deus o quê, alguma tolice estúpida. Assim, enquanto houver um experienciador haverá progresso no sofrimento, que é processo de consciência de si[56].

Agora, para ir além, para transcender tudo isso, é preciso uma tremenda atenção. Essa atenção plena, em que não há escolha, não há senso de vir-a-ser, de mudar, alterar, liberta a mente do processo de consciência de si[57]; não existe então nenhum experienciador que esteja acumulando, e só assim é que a mente pode ser considerada verdadeiramente livre do sofrimento. A acumulação é a causa do sofrimento. Nós não morremos para tudo dia após dia; nós não morremos para as inumeráveis tradições, para a família, para as nossas próprias experiências, para o nosso desejo de ferir o outro. Nós temos que morrer para tudo isso a cada momento, morrer para essa vasta memória cumulativa, e só então a mente está livre do self, que é a entidade da acumulação.

Talvez, considerando juntos essa questão, juntos possamos clarificar aquilo que já foi dito.

Pergunta: O que é o inconsciente? Ele é condicionado? Se for condicionado, então como podemos nos colocar para nos libertarmos desse condicionamento?

Krishnamurti: Antes de tudo: a nossa consciência, a consciência desperta, não é condicionada? Você entende o que quer dizer essa palavra, condicionada? Você é educado de um determinado modo. Aqui neste país vocês são condicionados para serem americanos, o que quer que isso queira dizer, vocês são educados no “american way of life”, e na Rússia eles são educados no modo russo de viver. Na Itália os católicos educam suas crianças para pensar de um certo modo, que é outra forma de condicionamento, enquanto na Índia, na Ásia, nos países budistas, eles são condicionados ainda de outras maneiras. No mundo todo acontece este processo deliberado de condicionamento da mente por meio da educação, por meio do ambiente social, por meio do medo, por meio do trabalho, por meio da família — você sabe as inumeráveis maneiras de influenciar a mente superficial, a consciência desperta.

E então há o inconsciente, ou seja, a camada da mente abaixo da superfície, e a pessoa que fez a pergunta quer saber se esse inconsciente é condicionado. E não é? É condicionado por todo o pensamento racial, pelos motivos ocultos, os desejos, as respostas instintuais de uma determinada cultura? Supostamente eu sou um hindu, nascido na Índia, educado no exterior, e tudo o mais. Até que eu entre no inconsciente e o compreenda, ainda sou um hindu com todas as suas respostas bramânicas, simbólicas, culturais, supersticiosas — está tudo aí, adormecido, pronto para ser despertado a qualquer momento, e isso nos envia alertas e insinuações nos sonhos, em momentos em que a mente consciente não está completamente ocupada. Assim, também o inconsciente é condicionado.

Se você entrar nisso, é bem óbvio, então, que a totalidade da nossa consciência é condicionada. Não há nenhuma parte de você, nenhum self superior que não seja condicionado. O seu próprio pensamento é o produto da memória, consciente ou inconsciente; portanto, é resultado do condicionamento. Você pensa como um comunista, como um socialista, como um capitalista, como um americano, como um hindu, como um católico, como um protestante, ou o que quiser, porque você está condicionado dessa maneira. Você está condicionado para pensar em Deus, se está, e o comunista não; ele ri de você e diz: “Você é condicionado”, mas ele próprio é condicionado, educado pela sua sociedade, pelo partido a que pertence, pela sua literatura, a não acreditar. Então somos todos condicionados, e nunca nos perguntamos: “É possível libertar-se totalmente do condicionamento”? Tudo o que conhecemos é um processo de refinamento do condicionamento, que é refinamento do sofrimento.

Agora, se eu vejo isto, não apenas verbalmente, mas com atenção plena, então não há conflito. Você entende o que eu estou dizendo? Quando você presta atenção a alguma coisa com todo o seu ser, ou seja, quando você entrega totalmente a sua mente para compreender algo, não há conflito. O conflito só surge quando você está em parte interessado e em parte olhando para outra coisa – então você quer superar esse conflito e, portanto, começa a se concentrar, o que não é atenção. Na atenção não há divisão, não há distração; desse modo, não há esforço, não há conflito, e só por meio de uma atenção assim pode haver autoconhecimento, que não é cumulativo.

Por favor, acompanhem isto. Autoconhecimento não é uma coisa a ser acumulada; é para ser descoberto momento a momento, e para descobrir não pode haver acumulação, não pode haver um objeto a que ele se refira[58]. Se você acumula autoconhecimento, toda compreensão posterior é ditada por essa acumulação; portanto, não há compreensão.

Assim a mente só pode ir além de todo condicionamento na consciência em que há atenção plena[59]. Nessa atenção plena não há nenhum modificador, nenhum censor, nenhuma entidade que diz “eu preciso mudar”, o que significa que é uma cessação completa do experienciador. Não há experienciador como alguém que acumula. Por favor, é realmente importante compreender isto. Porque, afinal de contas, quando experienciamos algo adorável – um pôr-do-sol, uma folha dançando na árvore, o brilho da lua na água, um sorriso, uma visão, ou o que você quiser — a mente imediatamente quer agarrar isso, segurar isso, adorar isso, o que quer dizer a repetição dessa experiência; e onde há o desejo de repetir, forçosamente há sofrimento.

É possível, então, estar em um estado em que há experiência sem o experienciador? Você compreende? Pode a mente experienciar a feiura, a beleza, ou o que você quiser, sem a entidade que diz “Eu experienciei”? Porque aquilo que é verdade, aquilo que é Deus, aquilo que é o imensurável, nunca poderá ser experienciado enquanto houver um experienciador. O experienciador é a entidade do reconhecimento; e se eu sou capaz de reconhecer o que é a verdade, então já a experienciei, já a conheço; portanto, não é a verdade. Essa é a beleza da verdade: ela permanece sendo eternamente o desconhecido, e uma mente que é resultado do conhecido nunca poderá compreendê-la.

Pergunta: Você disse que todos os desejos são essencialmente o mesmo. Você quer dizer que o desejo de um homem que busca a Deus não é diferente do desejo do homem que busca as mulheres ou que se perde na bebida?

Krishnamurti: Os desejos não são iguais, mas são todos desejos. Você pode ter um desejo por Deus, e eu um desejo de ficar bêbado, mas ambos somos compelidos, urgidos — você em uma direção, e eu noutra. A sua direção é respeitável, a minha não; ao contrário, sou antissocial. Mas o eremita, o monge, a assim chamada pessoa religiosa, cuja mente está ocupada com a virtude, com Deus, é essencialmente a mesma da do homem cuja mente está ocupada com os negócios, com mulheres, ou com a bebida, porque ambas estão ocupadas. Você compreende? Uma tem valor sociológico[60], enquanto a outra, a do homem que está ocupado com a bebida, é socialmente inadequada. Então você está julgando a partir do ponto de vista social, não está? O homem que se retira em um monastério e reza da manhã à noite, fazendo jardinagem certo período do dia, cuja mente está totalmente ocupada com Deus, com autopunição, autodisciplina, autocontrole — você o vê como uma pessoa muito santa, uma pessoa realmente extraordinária. Ao passo que o homem que vai atrás dos negócios, que manipula o mercado financeiro e se ocupa o tempo todo em fazer dinheiro, dele você diz: “Bem, é apenas um homem comum como o resto de nós”. Mas ambos estão ocupados. Para mim, tudo aquilo de que a mente se ocupa não é importante. Um homem cuja mente está ocupada com Deus nunca encontrará Deus porque Deus não é algo com que nos ocupemos; é o desconhecido, o imensurável. Você não pode ocupar-se com Deus. Essa é uma maneira barata, banal, de pensar em Deus.

O que importa não é aquilo com o que a mente está ocupada, mas o fato de que ela está ocupada, seja com a cozinha, com as crianças, com entretenimento, com o tipo de comida que você vai comer, com Deus. E deve a mente estar ocupada? Você está acompanhando? Uma mente ocupada pode ver alguma coisa nova, qualquer outra coisa que não seja aquilo com que se ocupa? E o que acontece com a mente se ela não está ocupada? Você compreende? Existe mente se não existe nada nos ocupando? O cientista está ocupado com os seus problemas técnicos, com a sua mecânica, com a sua matemática, como a dona de casa está ocupada com a cozinha ou com o seu bebê. Estamos todos tão assustados de não estarmos ocupados, assustados com as implicações sociais. Se não estivéssemos ocupados, poderíamos nos descobrir como somos, e assim a ocupação se torna uma fuga de quem realmente somos.

Então a mente deve estar eternamente ocupada? E é possível que ela não esteja ocupada com nada? Por favor, estou colocando a vocês uma questão para a qual não há resposta, porque vocês têm que descobrir, e quando realmente o fizerem, verão o extraordinário acontecer.

É muito interessante descobrir por si próprio como a sua mente está ocupada. O artista está ocupado com a sua arte, com seu nome, com seu progresso, com a mistura de cores, com a fama, com a notoriedade; o homem de conhecimento está ocupado com seu conhecimento; e um homem que busca o autoconhecimento está ocupado com seu autoconhecimento, tentando, como uma formiguinha, estar atento[61] a cada pensamento, cada movimento. Todos são iguais. Só a mente que está totalmente desocupada, totalmente vazia — só uma mente assim pode receber algo novo, com que ela não fique ocupada. Mas essa coisa nova não pode vir a existir enquanto a mente está ocupada.

Pergunta: Você diz que uma mente ocupada não pode receber aquilo que é a verdade ou Deus. Mas como eu posso ganhar a vida sem que eu me ocupe com o meu trabalho? Você mesmo não está ocupado com estas conferências, que é o seu modo particular de ganhar a vida?

Krishnamurti: Que eu nunca esteja ocupado com minhas conferências! Eu não estou. E isto não é o meu modo de ganhar a vida. Se eu estivesse ocupado, não haveria intervalo entre pensamentos, não haveria esse silêncio que é essencial para ver algo novo. E falar se tornaria um tédio total. Eu não quero me sentir entediado com minhas conferências; portanto, não estou falando com minha memória. É alto totalmente diferente. Isso não importa; entraremos nisso em algum outro momento.

A pessoa que perguntou quer saber como poderá ganhar a vida se não estiver ocupada com o seu trabalho. Você se ocupa com o seu trabalho? Por favor, escute isto. Se você está ocupado com o seu trabalho, então não ama o seu trabalho. Você compreende a diferença? Se eu amo aquilo que faço, não estou ocupado com isso, meu trabalho não está separado de mim. Mas neste país somos treinados, e infelizmente está se tornando hábito no mundo inteiro, para adquirir habilidades em trabalhos que não amamos. Talvez haja alguns poucos cientistas, alguns poucos experts da técnica, uns poucos engenheiros que realmente amam aquilo que fazem no sentido completo da palavra, que vou explicar agora. Mas a maioria de nós não ama o que está fazendo, e é por esta razão que estamos ocupados em ganhar a nossa vida. Creio que se você entrar a fundo na questão verá que há uma diferença entre os dois. Como posso amar aquilo que estou fazendo se estou o tempo todo sendo movido pela ambição, tentando, por meio do meu trabalho, atingir uma meta, tornar-me alguém, ter sucesso? Um artista que está preocupado com o seu nome, com a sua grandeza, com comparações, preocupado em realizar a sua ambição, cessa de ser um artista; ele é meramente um técnico, como qualquer outra pessoa. O que quer dizer, realmente, que para amar alguma coisa, toda e qualquer ambição deve cessar completamente, qualquer desejo de reconhecimento pela sociedade – que, de qualquer maneira, já está podre. [Risadas] Senhores, por favor, não. E não somos treinados para isso, não somos educados para isso; temos que nos encaixar em algum trilho, alguma rotina ou hábito que a sociedade ou a família nos forneceu. Como meus antepassados foram doutores, advogados ou engenheiros, devo ser um doutor, um advogado ou um engenheiro. E agora deve haver cada vez mais engenheiros, porque é isso que a sociedade demanda. Então perdemos esse amor pela coisa em si, se é que alguma vez o tivemos, o que eu duvido. E quando você ama uma coisa, não fica ocupado com ela. A mente não é conivente com a conquista de nada, não quer conquistar nada, não quer tentar ser melhor do que os outros; toda comparação, toda competição, todo desejo de ter sucesso, de conseguir realização[62], cessa totalmente. Só a mente ambiciosa fica ocupada.

Similarmente, uma mente que está ocupada com Deus, com a verdade, nunca pode encontrá-los, porque aquilo com que a mente está ocupada ela já conhece. Se você já conhece o imensurável, o que você conhece é o resultado do passado; portanto, não é o imensurável. A realidade não pode ser medida; portanto, não há ocupação com ela; há só uma quietude[63] da mente, uma vacuidade[64] em que não há movimento — e só assim o desconhecido pode acontecer.

 

CONFERÊNCIA 5

“As culturas criam religiões, não o homem religioso. O homem religioso só existe quando a mente rejeita a cultura, que é o pano de fundo e, portanto, está livre para descobrir o que é a verdade… Uma pessoa assim não é um americano, um inglês ou um hindu, mas um ser humano; não pertence a nenhum grupo, raça ou cultura particular, e dessa maneira está livre para descobrir o que é a verdade, o que é Deus. Nenhuma cultura ajuda o homem a descobrir o que é a verdade. As culturas só criam organizações que amarram o homem”.

QUINTA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  20 de agosto de 1955

Um dos graves problemas sobre o qual a maioria de nós deve ter pensado é o controle completo da mente, porque podemos ver que sem um controle profundo, racional e equilibrado da mente não há conservação da energia, que é tão essencial para qualquer coisa que queiramos fazer, especialmente nos assuntos que pertencem à assim chamada busca — a busca da verdade, da realidade, de Deus, ou o que você quiser. Nós estamos conscientes[65], creio, de que esta estabilidade da mente é necessária para penetrar nos problemas fundamentais que uma mente superficial não pode tocar. E mesmo assim continua a dificuldade sobre como controlar a mente, não continua? Muitos sistemas de disciplina, várias seitas religiosas e comunidades monásticas sempre insistiram no controle absoluto da mente; nesta noite, eu gostaria de examinar se tal coisa é de algum modo possível, e como podemos produzir essa firmeza[66], essa constância da mente. Estou usando a palavra absoluto no seu sentido correto, que significa o controle total e completo da mente. Como eu disse, é essencial ter essa firmeza e constância porque nesse estado não há conflito, não há dissipação, distração de tipo algum; portanto, ele traz enorme energia, e uma mente assim, sendo completamente firme, constante, é capaz de uma penetração profunda e radical na realidade.

Agora, por mais que se possa controlar, dominar, e disciplinar uma mente mesquinha, pode ela de algum modo ser firme? A maioria das nossas mentes são estreitas, limitadas, preconceituosas, mesquinhas, e uma mente mesquinha está ocupada incessantemente com coisas que são muito superficiais — com um trabalho, com disputas, com ressentimento, com o cultivo de virtudes, com a tentativa de compreender alguma coisa, com fofocas, com a sua própria evolução e os seus próprios problemas. E pode uma mente assim, por mais que controle e discipline a si mesma, ser livre para ser firme? Porque sem liberdade a mente obviamente não pode ser firme.

Ou seja, uma mente que está lutando para ter sucesso, ter resultado, que está tateando na busca por algo que não pode ter, é essencialmente estreita, condicionada, limitada, tornada mesquinha pelo próprio esforço; e por mais que tente ser firme buscando controlar a si mesma, pode uma mente assim alguma vez trazer aquela energia essencial que vem com uma firmeza profunda e fundamental, ou só construirá outra série de limitações, e ainda mais mesquinhez? Espero que eu esteja deixando claro o problema.

Se a minha mente é nacionalista, está amarrada em numerosas crenças, superstições, medos, se está presa pela inveja, ressentida, presa na crueldade das palavras, do gesto, pensamento, por mais que tente pensar em algo além de si mesma, ainda é limitada. Então o problema é como quebrar[67] essa mesquinhez da mente, não é? Essa é uma das questões fundamentais, e se isso está claro, então podemos prosseguir para descobrir o que significa ter completo controle da mente.

Para descobrir o que é a verdade, o que é Deus, ou qualquer nome que você queira dar, devemos obviamente ter uma quantidade enorme de energia, e na busca dessa energia, fazemos todo tipo de coisas sem sentido. Apelamos para monastérios, ou ficamos excêntricos com a comida, ou tentamos controlar as nossas paixões, as nossas luxúrias, esperando assim canalizar energia para encontrar algo além da mente. No final de tudo, é isso o que a maioria de nós, de diversas maneiras, se empenha em obter. Tentamos controlar os nossos pensamentos, os nossos desejos, cultivar a virtude, vigiar as nossas palavras, as nossas ações, e assim por diante, seja com a intenção de sermos cidadãos bons e respeitáveis ou na esperança de canalizar toda essa extraordinária vitalidade do desejo para descobrir o que há além; mas, por mais que lutemos, não podemos descobrir nada enquanto não compreendemos a mesquinhez da mente. Quando uma mente pequena e mesquinha busca Deus, obviamente o Deus dela também será mesquinho; as suas virtudes serão a mera respeitabilidade. Então – é possível quebrar[68] essa mesquinhez? A questão está clara? Está bem, então vamos prosseguir.

As nossas mentes são mesquinhas, invejosas, gananciosas, medrosas, quer admitamos ou não. Mas o que torna a mente mesquinha? Certamente enquanto ela for gananciosa, será estreita, limitada, rasa, mesquinha. Ela pode desistir das coisas mundanas e se tornar gananciosa em busca do conhecimento, sabedoria, mas ainda é mesquinha porque ao adquirir algo nessa ganância, desenvolve a vontade de alcançar sucesso, de ganhar, e exatamente essa vontade de ganhar é que constitui mesquinhez.

Posso dizer aqui algo sobre a atenção? A atenção é muito importante, mas atenção é totalmente diferente de concentração ou absorção em alguma coisa. Uma criança está absorvida no seu brinquedo; ele a atrai, e desse modo ela dá sua mente ao brinquedo. É isso que acontece, não é? O objeto atrai a mente, absorve-a, ou a mente absorve o objeto. Se você está interessado em alguma coisa, o objeto desse interesse é tão atraente que absorve você; enquanto que se você deliberadamente se concentra em algo, que é outra forma de absorção, então você absorve o objeto, não absorve?

Agora, eu estou falando de algo inteiramente diferente. Estou falando de uma atenção em que não existe objeto algum, não há nenhuma tensão, nem esforço, nem conflito, uma atenção em que você não está nem absorvido nem tentando se concentrar em nada. Ao ouvir o que está sendo dito aqui, você está se empenhando em entender, e a sua escuta tem um objeto; portanto, há um esforço, uma tensão; não existe uma atenção relaxada. Isso é um fato, não é? Se você quer ouvir alguma coisa, não deve haver nenhuma tensão, nenhum esforço, nenhum objeto que atraia a sua atenção e absorva você; caso contrário, você está meramente hipnotizado pelo que está sendo dito, por uma personalidade, e todo o resto desse nonsense. Se você observar de perto esse processo de absorção, verá que nele sempre há um conflito, uma tensão, um esforço para obter alguma coisa; ao passo que na atenção não há nenhum objeto — você apenas ouve, como ouviria uma música distante, ou as notas de uma canção. Nesse estado você está relaxado, atento; não há tensão.

Então, se me permite a sugestão, tente estar apenas atento, ao ouvir o que está sendo dito aqui. O que eu estou dizendo pode ser difícil e um pouco novo e, portanto, bem perturbador, mas se você puder ouvir com essa atenção relaxada, não ficará mentalmente agitado, ainda que em outro sentido possa se sentir perturbado – o que talvez seja bom. O que estou dizendo é algo que é essencial compreender. Estou dizendo que a mente deve estar completamente quieta[69], sem movimento. Mas esta firmeza não pode acontecer se a mente tentar se fazer quieta, porque a mente, o fazedor do esforço, é, em sua própria natureza, pequena e mesquinha. A mente pode estar cheia de um conhecimento enciclopédico, pode ser capaz de fazer discussões inteligentes e possuir vastas acumulações de técnica, mas ela permanece essencialmente pequena e mesquinha enquanto estiver baseada na ganância, e, portanto, no cultivo da vontade — ou seja, enquanto existir o ‘eu’, a entidade que está desejando, que está fazendo esforço, que está rejeitando e aceitando, separando e unindo. A mente pode pensar em Deus, pode disciplinar a si mesma, pode tentar controlar os seus vários desejos para ser virtuosa, para ter mais energia ou buscar a verdade, e assim por diante; mas uma mente assim é estreita, limitada — ela nunca pode ser livre e, portanto, firme, sem movimento.

Nosso problema, então, é como quebrar[70] essa mesquinhez, essa pequenez da mente. A questão está clara? Se está clara, então o que você deve fazer? Vemos a necessidade de uma mente bem firme, profunda, quieta, uma mente que está completamente controlada — mas não controlada por uma entidade separada que diz “eu devo controlá-la”. Você está acompanhando? Quer dizer, vejo a importância de uma mente firme e sem movimento. Agora, como produzir essa firmeza e quietude? Se outra parte da mente diz “devo ter uma mente firme e quieta”, então ela desenvolve conflitos, controles, subjugações. Não desenvolve? Uma parte da mente manda na outra parte, tenta evitar que ela fique vagando, controla-a, disciplina-a, molda-a, suprimindo diversas formas de desejo; assim, há conflito o tempo todo, não há?

Agora, uma mente em conflito é, em sua própria essência, mesquinha e pequena, por causa do seu desejo de obter alguma coisa. Desejando uma mente firme e sem movimento, você diz “eu devo controlar a minha mente, devo moldá-la, devo afastar todos os desejos conflitantes”, mas enquanto existe esse processo dual no seu pensamento, forçosamente há conflito, e precisamente esse conflito indica pequenez, porque ele é produto do desejo de obter alguma coisa. Então, pode a mente apagar, anular, esquecer todo esse processo de aquisição, de obter uma mente muito firme e calma para encontrar Deus, ou o que quer que seja? Quer dizer — enquanto você ouve, pode ver imediatamente a verdade do que está sendo dito? Estou dizendo que deve haver uma firmeza e quietude absolutas da mente, e que qualquer empenho para obter esse estado indica uma mente que está dividida, uma mente que diz “Por Zeus, devo ter essa quietude, essa firmeza, será maravilhoso”, e então persegue esse estado por meio da disciplina, do controle, de várias formas de sanção, e assim por diante. Mas se a mente é capaz de ouvir a verdade dessa afirmação, se vê a necessidade absoluta de controle completo, então você descobrirá que não é preciso esforço algum para obter algum estado.

Isso é muito difícil? Estou receoso que seja, porque, como você vê, a maioria de nós pensa em termos de esforço; há sempre a entidade que está fazendo um esforço para obter um resultado e, portanto, há conflito. Você ouve a afirmação de que a mente pode estar absolutamente calma e firme, controlada, ou leu e pensou algo a respeito, e diz: “devo obter esse estado”, e assim o persegue por meio de controle, disciplina, meditação, e assim por diante. Nesse processo há esforço, há conformidade, segue-se um padrão, há o estabelecimento de autoridade, e as várias outras complicações que surgem. Agora, qualquer esforço para obter um resultado, qualquer forma de desejo para adquirir um estado torna a mente mesquinha e pequena, e uma mente assim nunca terá a possibilidade de estar livre para estar quieta, para ser firme. Se vemos muito claramente a verdade que há nisso, então, não há uma quietude absoluta da mente? Você compreende?

Colocando de outra maneira, podemos ver muito claramente que para qualquer forma de ação é necessária energia. Até mesmo se você quiser ser um homem rico, deve devotar sua vida a isso, deve dar a esse tema a sua energia concentrada. E para descobrir aquilo que está além das atividades, os movimentos da mente — o que implica uma tremenda profundidade no autoconhecimento — a energia concentrada é essencial. Agora, como pode acontecer essa energia concentrada? Vendo a necessidade dela, dizemos “eu devo controlar meu temperamento, o meu gênio, devo comer a comida correta, não devo ser sexual demais, devo controlar as minhas paixões, meus apetites, meus desejos”— você já sabe, nós nos perdemos nas tangentes. Tudo isso são tangentes porque o centro ainda é mesquinho, pequeno. Enquanto a mente estiver pensando em termos de adquirir alguma coisa, em alcançar um resultado, é ambiciosa, e uma mente ambiciosa é em sua própria natureza muito pequena, rasa. Uma mente assim, como a de um homem ambicioso neste mundo, obviamente tem uma certa quantidade de energia, mas aquilo que estamos discutindo demanda uma energia muito mais profunda, mais ampla, mais ilimitada, em que o self está totalmente ausente.

Então, fomos condicionados por séculos — religiosa, social e moralmente — a controlar, a moldar a nossa mente a um padrão particular, ou a seguir certos ideais, para conservar a nossa energia; pode uma mente assim se libertar de tudo isso sem esforço, e entrar imediatamente naquele estado em que ela fica totalmente quieta, firme, sem movimento? Nesse estado não há nenhuma forma de distração. A distração só existe quando você quer ir em uma determinada direção. Quando você diz, “Devo pensar sobre isso e nada mais”, então tudo o mais é distração. Mas quando você está completamente atento, com aquela atenção em que não há objeto porque não há processo de aquisição, de obter nada, não há cultivo da vontade para alcançar nenhum resultado, então você descobrirá que a mente é extraordinariamente firme, sem movimento, interiormente quieta — e só a mente quieta está livre para descobrir ou deixar aquela realidade acontecer.

Pergunta: Como podemos parar os hábitos?

Krishnamurti: Se pudermos entender a totalidade do processo do hábito, então talvez sejamos capazes de cessar a formação de hábitos. Fazer com que aconteça a meramente cessação de um hábito é uma coisa relativamente fácil, mas assim o problema ainda não está resolvido. Todos nós temos vários hábitos dos quais estamos conscientes ou inconscientes, e então temos que descobrir se a mente está presa nesse hábito, e por que ela cria hábitos.

A maior parte do nosso pensamento não é habitual? Desde a infância, fomos ensinados a pensar conforme uma certa linha, seja como um cristão, um comunista, ou um hindu, e não ousamos nos desviar dessa linha porque o próprio desvio é medo[71]. Então, fundamentalmente, o nosso pensamento é habitual, condicionado; as nossas mentes funcionam em padrões estabelecidos, e, naturalmente, também há hábitos superficiais que tentamos controlar.

Agora, se a mente cessa totalmente de pensar em padrões habituais[72], então devemos abordar o problema de um hábito superficial de uma maneira inteiramente diferente. Você compreende? Se você está investigando, tentando descobrir se a sua mente pensa em padrões habituais, se é com isso que você está realmente preocupado, então o hábito de fumar, por exemplo, terá um significado bem diferente. Quer dizer: se você está interessado em investigar todo o processo do hábito, que está em um nível mais profundo, você tratará o hábito de fumar de uma maneira totalmente diferente. Com a clareza interior de que você realmente quer parar, não só o hábito de fumar como todo o processo de pensar em padrões habituais, você não luta contra o movimento automático de pegar um cigarro, e tudo o mais, porque vê que quanto mais você luta contra esse hábito em particular, mais vida você dá a ele. Mas se você está atento, completamente consciente[73] do hábito e sem lutar contra ele, então verá que esse hábito cessa em seu tempo; portanto, a mente não está ocupada com esse hábito. Não sei se você está acompanhando isto.

Interiormente vejo com muita clareza que quero parar de fumar, mas o hábito já está estabelecido há muitos anos. Devo lutar contra esse hábito? Seguramente ao lutar contra um hábito eu estou dando vida a ele. Por favor, compreenda isto. A tudo aquilo que eu luto contra, dou vida. Se luto contra uma ideia, estou dando vida a essa ideia; se luto contra você, dou vida a você para lutar contra mim. Devo ver isso muito claramente, e só posso fazer isso se estiver olhando para a totalidade do problema do hábito, não apenas um hábito específico. Então a minha abordagem ao hábito está em um nível completamente diferente.

Assim, a questão agora é: por que a mente pensa em hábitos, o hábito do relacionamento, o hábito das ideias, o hábito das crenças, e assim por diante? Por quê? Porque essencialmente ela está buscando estar segura, estar protegida, ser permanente, não é? A mente odeia estar incerta, então deve ter hábitos como meio para a sua segurança. Uma mente que está segura nunca pode se libertar do hábito, só a mente que é completamente insegura — o que não quer dizer acabar em um asilo ou um hospital de doentes mentais. A mente que é completamente insegura, que é incerta, investigativa, inquisitiva, perpetuamente descobrindo coisas, que morre para cada experiência, para tudo o que adquiriu e, portanto, está em um estado de não saber — só uma mente assim pode se libertar do hábito, e essa é a forma mais elevada de pensamento.

Pergunta: É possível educar as crianças sem condicioná-las, e em caso afirmativo, como? Se não, há condicionamento bom e condicionamento ruim? Por favor, responda esta questão incondicionalmente. [Risadas]

Krishnamurti: “É possível educar as crianças sem condicioná-las?” É possível? Eu não acho. Por favor, escute, vamos entrar nisso juntos. Mas, antes de tudo, vamos nos livrar dessa última questão, sobre se há condicionamento bom e condicionamento ruim. Certamente só há condicionamento, nem bom nem ruim. Você pode chamar de bom condicionamento acreditar que há um Deus, mas na Rússia comunista eles dirão: “Que bobagem; esse é um mau condicionamento”. Aquilo que você chama de bom condicionamento, outra pessoa poderá chamar de ruim, o que é óbvio, e então podemos nos livrar dessa questão bem depressa.

A questão então é: uma criança pode ser educada sem condicionamento, sem ser influenciada? Certamente tudo que acontece com as crianças tem influência sobre elas. O clima, a comida, as palavras, os gestos, a conversa, as respostas inconscientes, outras crianças, a sociedade, as escolas, igrejas, livros, revistas, cinemas — tudo isso influencia a criança. Você pode parar essa influência? Não é possível, não é? Você pode não querer influenciar ou condicionar a sua criança, mas inconscientemente já a está influenciando, não está? Você tem as suas crenças, os seus dogmas, os seus medos, as suas moralidades, as suas intenções, as suas ideias sobre o que é bom ou ruim e, portanto, consciente ou inconscientemente, você está moldando a criança. E se você não estiver, a escola estará, com seus livros de histórias que contam que heróis maravilhosos você tem e os colegas não, e assim por diante. Tudo influencia a criança, vamos reconhecer isso, que é um fato óbvio.

Agora o problema é: você pode ajudar a criança a crescer de maneira a questionar inteligentemente todas essas influências? Você compreende? Sabendo que a criança está sendo influenciada por tudo o que acontece à sua volta, tanto em casa quanto na escola, você pode ajudá-la a questionar cada influência que recebe, e não ser dominada por nenhuma delas em particular? Se a sua intenção é realmente ajudar a sua criança a investigar todas as influências, isso é extremamente árduo, não é? Porque significa questionar não apenas a sua autoridade, mas todo o problema da autoridade, do nacionalismo, da crença, da guerra, do exército — você sabe, investigar a coisa toda, o que significa cultivar a inteligência. E quando está presente a inteligência que faz com que a mente não aceite mais tacitamente a autoridade, ou não se conforme mais por causa do medo, então cada influência é examinada e colocada de lado; assim, essa mente não é condicionada. Certamente isso pode ser feito, não pode? E não é função da educação cultivar essa inteligência que é capaz de examinar objetivamente cada influência, de investigar o background, tanto o imediato quanto o profundo, de maneira que a mente não seja dominada por nenhum condicionamento?

Afinal de contas, você é condicionado pelo seu background; você é esse background, que é composto pela sua herança cristã, pela extraordinária vitalidade, energia e progresso da América, pelas inumeráveis influências — climáticas, sociais, religiosas, dietéticas, e assim por diante. E você não pode olhar para tudo isso inteligentemente, trazer à tona, colocar na mesa e examinar — sem entrar no absurdo processo de manter o que você pensa que é bom e jogar fora o que você pensa que é ruim? Certamente temos que olhar de maneira objetiva para toda essa assim chamada cultura. A cultura cria religiões, mas não cria o homem religioso. O homem religioso só existe quando a mente rejeita a cultura, que é o pano de fundo e, portanto, está livre para descobrir o que é a verdade. Mas isso demanda um estado extraordinariamente desperto, alerta, da mente, não é? Uma pessoa assim não é um americano, um inglês ou um hindu, mas um ser humano; não pertence a nenhum grupo, raça ou cultura em particular, e assim está livre para descobrir o que é a verdade, o que é Deus. Nenhuma cultura ajuda o homem a descobrir o que é a verdade. As culturas só criam organizações que amarram o homem. Portanto, é importante investigar tudo isso, não só o condicionamento consciente mas, muito mais, o condicionamento inconsciente da mente. E o condicionamento inconsciente não pode ser examinado superficialmente pela mente consciente. Só quando a mente consciente fica completamente quieta, sem movimento, é que o condicionamento inconsciente vem à tona, não em um dado momento, mas o tempo todo — quando você está andando, quando pega um ônibus, ou quando está falando com alguém. Quando a intenção é descobrir, você verá que o condicionamento inconsciente emerge, e as portas estão abertas para a descoberta.

Pergunta: Na primeira vez eu ouvi você falar, e tive uma entrevista com você, fiquei profundamente perturbado. Então comecei a observar meus pensamentos, sem condená-los nem compará-los, e assim por diante, e de algum modo consegui um pouco de silêncio. Várias semanas depois tive outra entrevista com você, e novamente senti um choque, porque você deixou claro para mim que a minha mente não estava de modo algum desperta, e eu percebi que tinha ficado um pouco convencido da minha conquista. Por que a mente se acomoda depois de cada choque, e como esse processo pode ser quebrado[74]?

Krishnamurti: Social, religiosa e pessoalmente estamos constantemente evitando qualquer forma de mudança, não estamos? Queremos que as coisas sigam como estão porque a mente detesta ser perturbada. Quando conquista alguma coisa, ela aí logo se acomoda, se assenta[75]. Mas a vida é um processo de desafio e resposta, e se não há resposta adequada ao desafio, há conflito. Para evitar esse conflito, acomodamo-nos[76] em trilhas confortáveis e, assim, decaímos. Esse é um fato psicológico.

Ou seja, a vida é um desafio; tudo na vida demanda uma resposta, mas pelo fato de que você tem as suas limitações, as suas preocupações, o seu condicionamento, as suas crenças, os seus ideais sobre o que você deve ou não deve fazer, não pode responder completamente a esse desafio; assim, há conflito. Para evitar ou superar esse conflito, você se assenta, se acomoda, faz uma outra coisa que lhe dá conforto. A mente busca continuamente um estado em que não haverá perturbação de nenhuma espécie, que você chama de paz, Deus, ou como quiser; mas essencialmente o desejo é não ser perturbado. Você chama esse estado de não-perturbação de paz, mas, na verdade, ele é morte. Ao passo que se você compreende que a mente deve estar em um estado de resposta contínua e não há, portanto, nenhum desejo de conforto, de segurança, não há nenhum porto para ancorar, nenhum refúgio nas crenças, nas ideias, na propriedade, e todo o resto, verá então que nenhum choque é necessário. Não existe esse processo de ser despertado por um choque somente para logo cair no sono de novo.

Como você vê, isso traz uma questão que é realmente muito importante. Pensamos que precisamos de professores, gurus, líderes, que nos ajudarão a nos mantermos despertos. Provavelmente essa é a razão que traz a maioria de vocês aqui — querem que outra pessoa os ajude a se manterem despertos, acordados. Quando outra pessoa pode ajudar você a se manter desperto, você confia nela, e então ela se torna o seu professor, seu guia, seu líder. Essa pessoa pode estar desperta — eu não sei — mas se você depende dela, você está dormindo. [Risadas] Por favor, não riam disso porque é o que fazemos a nossa vida inteira. Se não é um líder é um grupo, ou a família, ou um livro, ou um disco de áudio.

Assim, é possível manter-se desperto sem dependência alguma, seja de drogas, de um guru, de uma disciplina, de uma imagem[77], ou qualquer outra coisa? Ao fazer experiências com isto, você pode cometer um erro, mas então pensa: “Isso não importa; vou me manter desperto”. Mas isso é uma coisa muito difícil de fazer pelo tanto que você depende dos outros. Você tem que ser estimulado por um amigo, por um livro, pela música, por um ritual, indo regularmente a encontros, e essa estimulação pode mantê-lo temporariamente desperto; ou você pode muito bem ir beber. Quanto mais você depende da estimulação, mais nublada e insensível[78] se torna a sua mente, e a mente nublada deve então ser guiada, tem que seguir, tem que ter uma autoridade ou se sente perdida.

Assim, ao ver este fenômeno psicológico extraordinário, não é possível estar livre de toda dependência interior de qualquer forma de estimulação para nos mantermos despertos? Em outras palavras, é possível que a mente nunca seja pega pelo hábito? O que significa, realmente, dizer adeus a qualquer coisa que tenhamos entendido, qualquer coisa que tenhamos aprendido, dizer adeus a qualquer coisa que tenhamos acumulado ou trazido de ontem, de maneira que a mente fique novamente fresca, nova. A mente não é nova se não tiver morrido para todas as coisas de ontem, para todas as experiências, para todas as invejas, ressentimentos, amores, paixões, de maneira a poder ser novamente fresca, diligente, desperta e, portanto, capaz de prestar atenção. Seguramente, só quando a mente está livre de qualquer dependência interior pode descobrir aquilo que é imensurável.

 

CONFERÊNCIA 6

“Se formos capazes de nos estudar, de observar a nós mesmos, começaremos a descobrir o quanto a memória cumulativa atua em tudo que vemos; estamos eternamente avaliando, rejeitando ou aceitando, condenando ou justificando, e assim a nossa experiência está sempre no campo do conhecido, do condicionado. Mas sem a memória cumulativa como guia, a maioria de nós se sente perdida, sentimo-nos com medo, assustados, e assim somos incapazes de nos observarmos tal como somos. Quando existe o processo cumulativo, que é o cultivo da memória, a nossa observação de nós mesmos se torna muito superficial. A memória é útil para nos guiar, para nos aperfeiçoar, mas no autoaperfeiçoamento nunca pode haver uma revolução, uma transformação radical. Só quando cessa completamente o senso de autoaperfeiçoamento, mas não como uma ação intencional, existe a possibilidade de vir a existir algo transcendental, algo totalmente novo”.

SEXTA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  21 de agosto de 1955

É um fato óbvio que os seres humanos demandam algo para adorar. Você e eu, e muitos outros, desejamos ter algo sagrado nas nossas vidas, e ou vamos aos templos, às mesquitas, às igrejas, ou temos outros símbolos, imagens e ideias que adoramos, que veneramos. A necessidade de adorar alguma coisa parece muito urgente porque queremos ser arrancados de nós mesmos para algo maior, mais amplo, mais profundo, mais permanente, e assim começamos a inventar Mestres, professores, seres divinos no céu ou na terra; nós inventamos vários símbolos — a cruz, o crescente, e assim por diante. Ou, se nada disso nos satisfaz, especulamos sobre o que está além da mente, dizendo que é algo sagrado, algo para ser adorado. Penso que a maioria de nós sabe muito bem que isso é o que acontece na nossa existência diária. Há sempre esse esforço no campo do conhecido, no campo da mente, da memória, e parece que nunca somos capazes de romper com isso e descobrir algo que é sagrado que não seja manufaturado pela mente.

Então, se permitirem, nesta manhã eu gostaria de entrar na questão de se há algo realmente sagrado, algo imensurável, que não pode ser penetrado ou sondado[79] pela mente. Para fazer isso, deve obviamente haver uma revolução no nosso pensamento, nos nossos valores. Não estou me referindo a uma revolução econômica ou social, que é mera imaturidade; algo assim pode afetar superficialmente as nossas vidas, mas fundamentalmente não é uma revolução. Estou falando da revolução que é ocasionada pelo autoconhecimento — não pelo autoconhecimento superficial que é obtido pelo exame do pensamento na superfície da mente, mas do que provém do exame das profundezas do autoconhecimento.

Seguramente uma das nossas maiores dificuldades está no fato de que todo o nosso esforço está dentro do campo do reconhecimento. Parecemos funcionar somente dentro dos limites daquilo que somos capazes de reconhecer — isto é, dentro do campo da memória. Será possível para a mente ir além desse campo? A memória é obviamente essencial num certo nível. Devo conhecer a estrada que vai daqui até o lugar onde moro. Se você me pergunta algo com que tenho muita familiaridade, minha resposta é imediata.

Se me permite a sugestão, por favor, observe a sua mente enquanto estou falando, porque quero entrar nisto bem profundamente, e se você estiver meramente seguindo a explicação verbal, sem aplicá-la imediatamente, ela não terá sentido algum. Se você ouvir e disser “Vou pensar sobre isso amanhã ou depois do encontro”, já era, não terá valor algum; mas se der atenção completa ao que está sendo dito e for capaz de aplicá-lo, o que significa estar consciente, perceber[80] os seus próprios processos intelectuais e emocionais, então verá que o que estou dizendo tem importância e significado imediatos.

Como eu dizia, há uma resposta instantânea a tudo que você conhece intimamente; quando uma pergunta familiar lhe é feita, você responde com facilidade, a reação é imediata. E se lhe perguntam algo com que não tem muita familiaridade, o que acontece então? Você começa a buscar nos arquivos da memória; tenta recordar o que leu ou o que pensou sobre isso, a experiência que teve nesse assunto. Ou seja, você se volta para procurar determinadas memórias que adquiriu porque o que chama de conhecimento é essencialmente memória. Mas se lhe fazem uma pergunta sobre algo sobre que não conhece nada e, portanto, não há referência na memória, e se você for capaz de responder com honestidade que não sabe, então esse estado de não-saber é o primeiro passo para uma investigação real sobre o desconhecido.

Isto é, no campo da tecnologia estamos extraordinariamente bem desenvolvidos; tornamo-nos muito inteligentes para as coisas mecânicas.  Vamos para a escola e aprendemos várias técnicas, o “know-how” de montar motores, de recapear estradas, de construir aviões, e assim por diante, o que é o cultivo da memória. Com essa mesma mentalidade, queremos descobrir algo para além da mente, e então praticamos uma disciplina, seguimos um sistema, ou pertencemos a alguma estúpida organização religiosa; e todas as organizações desse tipo são essencialmente estúpidas, por mais satisfatórias e gratificantes que possam temporariamente ser.

Agora, se quisermos entrar neste assunto juntos — e penso que podemos, se dermos a ele a nossa atenção — gostaria de investigar com você: a mente é capaz de colocar de lado toda memória da técnica, toda busca dentro do território conhecido, para entrar naquilo que é oculto? Porque quando buscamos, é isso que fazemos, não é? Estamos buscando no campo do conhecido por aquilo que não é conhecido por nós. Quando buscamos felicidade, paz, Deus, amor, ou o que quiser, é sempre dentro do campo do conhecido, porque a memória já nos deu uma dica, uma insinuação de algo, e temos fé nisso. Assim, a nossa busca é sempre dentro do campo do conhecido. E mesmo na ciência, só quando a mente cessa completamente de buscar naquilo que é conhecido é que uma nova coisa vem a existir. Mas a cessação dessa busca naquilo que é conhecido não vem por uma determinação; ela não acontece por qualquer ação da vontade. Dizer “Eu não vou buscar no conhecido, mas ficarei aberto ao desconhecido” é totalmente infantil, não tem sentido. Então a mente inventa, especula; ela experiencia algo que é tolice absoluta. A libertação da mente daquilo que é conhecido só pode acontecer por meio do autoconhecimento, por meio da revolução que vem a existir quando a cada dia você compreende o significado do self. Você não consegue compreender o significado do self se houver acumulação da memória tentando ajudá-lo a compreender o self. Você compreende isso?

Você vê, pensamos que compreendemos as coisas quando acumulamos conhecimento, fazendo comparações. Mas seguramente esse não é o modo pelo qual nós as compreendemos. Se você comparar uma coisa com a outra, só ficará perdido na comparação. Só poderá compreender algo quando lhe der a sua completa atenção, e qualquer forma de comparação ou avaliação é uma distração.

O autoconhecimento, então, não é cumulativo, e eu penso que é muito importante compreender isso. Se o autoconhecimento for cumulativo, é meramente mecânico. É como o conhecimento de um médico que aprendeu uma técnica e se especializa eternamente em uma certa parte do corpo. Um cirurgião pode ser um excelente mecânico nessa cirurgia porque aprendeu a técnica, tem o conhecimento e o dom para tal, e há a experiência cumulativa que o ajuda. Mas não estamos falando dessa experiência cumulativa. Ao contrário, qualquer forma de conhecimento cumulativo destrói novas descobertas; mas quando já foi feita a descoberta, talvez então possamos usar a técnica cumulativa.

É certo que o que estou dizendo é muito simples. Se formos capazes de nos estudar, de observar a nós mesmos, começaremos a descobrir o quanto a memória cumulativa atua em tudo que vemos; estamos eternamente avaliando, rejeitando ou aceitando, condenando ou justificando, e assim a nossa experiência está sempre no campo do conhecido, do condicionado. Mas sem a memória cumulativa como guia, a maioria de nós se sente perdida, sentimo-nos com medo, assustados, e assim somos incapazes de nos observarmos tal como somos. Quando existe o processo cumulativo, que é o cultivo da memória, a nossa observação de nós mesmos se torna muito superficial. A memória é útil para nos guiar, para nos aperfeiçoar, mas no autoaperfeiçoamento nunca pode haver uma revolução, uma transformação radical.  Só quando cessa completamente o senso de autoaperfeiçoamento, mas não como uma ação intencional, existe a possibilidade de vir a existir algo transcendental, algo totalmente novo.

Assim, parece-me que enquanto não compreendermos o processo do pensamento, o mero intelecto, a atividade mental terá pouco valor. O que é o pensamento? Por favor, à medida que eu falo observem a si mesmos. O que é o pensamento? O pensamento é a resposta da memória, não é? Eu lhe pergunto onde você vive, e a sua resposta é imediata porque isso é algo com que tem total familiaridade; você imediatamente reconhece a casa, o nome da rua, e tudo o mais. Essa é uma forma de pensamento. Se eu pergunto a você algo que é um pouco mais complicado, a sua mente hesita; nessa hesitação, ela tenta buscar na vasta coleção da memória, no registro do passado, para encontrar a resposta certa. Essa é outra forma de pensamento, não é? Se eu lhe fizer uma pergunta ainda mais complicada, a sua mente se torna confusa, perturbada; e como ela não gosta de perturbações, tenta de várias maneiras descobrir uma resposta, o que é ainda outro tipo de pensamento. Eu espero que você esteja acompanhando tudo isto. E se eu faço a você uma pergunta sobre algo vasto, profundo como, por exemplo, se você sabe o que é a verdade, o que é Deus, o que é o amor, então a sua mente procura a evidência de outras pessoas que você acha que tiveram experiências com essas coisas, e então você faz citações, repete essas falas. Por fim, se alguém cai na futilidade de repetir o que os outros dizem, de depender de evidências dos outros, que podem ser tolices, então você certamente deve dizer: “Eu não sei”.

Agora, se realmente pudermos chegar a esse estado de dizer “Eu não sei”, isso indica uma humildade extraordinária; não há arrogância do conhecimento; não há uma resposta auto-referente[81] que visa causar uma impressão. Quando você realmente pode dizer “Eu não sei” — poucos são capazes disso — nesse estado há a cessação de todo o medo, porque todo senso de reconhecimento, a busca na memória, chegou ao fim; não há mais uma indagação dentro do campo do conhecido. Vem então a coisa extraordinária. Se você seguiu o que estou falando até aqui, não apenas as palavras, mas realmente experienciando o que digo, descobrirá que quando você pode dizer “Eu não sei”, todo condicionamento pára. E qual é então o estado da mente? Você compreende o que eu estou falando? Estou sendo claro? Penso que é importante para você dar um pouco de atenção a isso, se quiser.

Você vê, estamos buscando algo permanente — permanente no sentido do tempo, algo que dure, eterno. Vemos que tudo o que nos diz respeito é transitório, em fluxo, nasce, definha e morre, e a nossa busca é sempre por estabelecer algo que durará dentro do campo do conhecido. Mas aquilo que é verdadeiramente sagrado está além da medida do tempo; não pode ser encontrado no campo do conhecido. O conhecido opera somente por meio do pensamento, que é a resposta da memória ao desafio. Se eu vejo isso, e quero descobrir como fazer cessar o pensamento — o que devo fazer? Seguramente devo estar consciente[82], pelo autoconhecimento, de todo o processo do meu pensamento. Devo ver que todo pensamento, por mais sutil, por mais elevado, ou por mais ignóbil, estúpido que seja, tem suas raízes no conhecido, na memória. Se eu vejo isso muito claramente, então a mente, quando confrontada com um imenso problema, é capaz de dizer: “Eu não sei”, porque ela não tem uma resposta. Então todas as respostas do Buda, do Cristo, dos Mestres, os professores, os gurus, não têm significado, porque se tiverem, esse significado nasceu da coleção de memórias, o que é o meu condicionamento.

Assim, se vejo a verdade de tudo isso e realmente deixo de lado todas as respostas, o que só posso fazer quando há essa imensa humildade do não-saber, então qual é o estado da mente? Qual é o estado da mente que diz “Eu não sei se existe Deus, se existe amor”, ou seja, quando não há resposta da memória? Por favor, não responda imediatamente a essa questão para si mesmo, porque se o fizer a resposta será meramente o reconhecimento daquilo que você pensa que deveria ou não deveria ser. Se você diz: “É um estado de negação”, está comparando-o com algo que já conhece; portanto, esse estado em que você diz “Eu não sei” é inexistente.

Estou tentando investigar esse problema em voz alta[83] para que você também possa seguir observando a sua própria mente. Esse estado em que a sua mente diz “Eu não sei”, não é uma negação. A mente parou completamente a sua busca; ela cessou de fazer qualquer movimento, porque vê que qualquer movimento a partir do conhecido na direção da coisa que ela chama de desconhecido é somente uma projeção do conhecido. Assim, a mente que é capaz de dizer: “Eu não sei” é o único estado em que alguma coisa pode ser descoberta. Mas o homem que diz “Eu sei”, o homem que estudou infinitamente as variedades da experiência humana e cuja mente carrega o fardo da informação, com conhecimento enciclopédico — pode esse homem alguma vez experienciar aquilo que não pode ser acumulado? Ele achará isso extremamente difícil. Quando a mente põe totalmente de lado todo o conhecimento que adquiriu, quando para ela não há Budas, Cristos ou Mestres, não há professores, nem religiões, nem citações; quando a mente está completamente sozinha, incontaminada, o que significa que o movimento do conhecido chegou ao fim — só então existe uma possibilidade de que aconteça uma tremenda revolução, uma mudança fundamental. Uma mudança assim é obviamente necessária, e só poucos — você e eu, ou X, que realizaram em si próprios essa revolução — são capazes de criar um novo mundo, não os idealistas, não os intelectuais, não as pessoas que têm imenso conhecimento ou que estão fazendo bons trabalhos; eles não são as pessoas. Eles são todos reformadores. O homem religioso é aquele que não pertence a nenhuma religião, a nenhuma nação, a nenhuma raça, e em seu interior está inteiramente sozinho, em um estado de não-saber, e para ele as bênçãos do sagrado acontecem.

Pergunta: A função da mente é pensar. Passei muitos e muitos anos da minha vida pensando sobre as coisas que todos conhecemos — negócios, ciência, filosofia, psicologia, artes, e assim por diante — e agora penso muito sobre Deus. Por estudar as evidências trazidas por muitos místicos e outros escritores religiosos, estou convencido de que Deus existe, e posso contribuir com meus próprios pensamentos para esse tema. O que há de errado nisto? Pensar sobre Deus não ajuda a ocasionar a realização de Deus?

Krishnamurti: Você pode pensar sobre Deus? E pode ser convencido da existência de Deus porque leu todas as evidências? O ateu também tem essas evidências; ele provavelmente estudou tanto quanto você, e diz que não existe Deus. Você acredita que Deus existe, e ele acredita que não; ambos têm crenças, ambos passam o tempo pensando em Deus. Mas antes de você pensar em algo que não conhece, deve descobrir o que é o pensamento, não deve? Como você pode pensar sobre algo que não conhece? Você pode ter lido a Bíblia, o Bhagavad-Gita, ou outros livros em que vários estudiosos eruditos habilmente descreveram o que é Deus, afirmando isto e contestando aquilo; mas enquanto você não conhecer o processo do seu próprio pensamento, o que você pensa sobre Deus pode ser estúpido e pequeno, e geralmente é. Você pode reunir muitas evidências sobre a existência de Deus, e escrever artigos inteligentes sobre isso, mas certamente a primeira questão é: como você sabe se aquilo que pensa é verdade? E pode o pensamento, em alguma circunstância, ocasionar a experiência daquilo que é incognoscível[84]? O que não quer dizer que você deva aceitar emocional ou sentimentalmente alguma bobagem sobre Deus.

Sendo assim, não é importante descobrir se a sua mente é condicionada, em vez de buscar aquilo que é incondicionado? Certamente, se a sua mente é condicionada, e ela é, por mais que ela possa indagar sobre a realidade de Deus, só poderá reunir conhecimento ou informação de acordo com o seu condicionamento. Assim, o seu pensamento sobre Deus é uma total perda de tempo; é uma especulação que não tem valor. É como sentar-me neste bosque e desejar estar no topo daquela montanha. Se realmente quero descobrir o que há no topo da montanha, e além, devo ir até lá. Não adianta ficar sentado aqui especulando, construindo templos, igrejas, e ficando empolgado com eles. O que eu tenho que fazer é levantar-me, andar, trilhar o caminho, chegar lá e descobrir; mas como a maioria de nós não quer fazer isso, ficamos satisfeitos em sentar aqui e especular sobre algo que não conhecemos. E eu digo que essa especulação é um obstáculo, impede o avanço, é uma deterioração da mente, e não tem valor algum; só traz mais confusão e sofrimento para o homem.

Assim, Deus não é algo sobre que se possa falar, que se possa descrever, que possa ser posto em palavras porque deve sempre permanecer no desconhecido. No momento em que acontece o processo de reconhecimento você está de volta para o campo da memória. Você compreende? Digamos por exemplo que você tenha uma experiência momentânea de algo extraordinário. Nesse preciso momento não há um pensador que diz “Eu devo lembrar disto”; há somente o estado de experienciar. Mas quando esse momento passa, o processo de reconhecimento acontece. Por favor, acompanhe isto. A mente diz “Tive uma experiência maravilhosa, e gostaria de tê-la mais!” e assim começa a luta pelo “mais”. O instinto ganancioso, a perseguição obsessiva do ‘mais’ acontece por várias razões — porque dá a você prazer, prestígio, conhecimento, você se torna uma autoridade, e toda essa bobagem.

A mente persegue aquilo que experienciou, mas aquilo que experienciou já acabou, morreu, já se foi, e para descobrir aquilo que é, a mente precisa morrer para aquilo que experienciou. Isso não é algo que possa ser cultivado dia após dia, que possa ser reunido , acumulado, mantido, e então que se possa falar e escrever a respeito. Tudo que podemos fazer é ver que a mente é condicionada e por meio do autoconhecimento compreender o processo do nosso próprio pensamento. Devo conhecer a mim mesmo, não como eu ideologicamente gostaria de ser, mas como verdadeiramente sou, seja feio ou bonito, ciumento, invejoso, ganancioso. Mas é muito difícil apenas ver aquilo que somos sem desejar mudanças, e ver que esse próprio desejo de mudar é outra forma de condicionamento; e assim vamos seguindo, mudando de condicionamento em condicionamento, sem nunca experienciar algo para além daquilo que é limitado.

Pergunta: Ouvi você por muitos anos, e fiquei bem bom em observar os meus próprios pensamentos e perceber[85] tudo o que faço, mas nunca toquei as águas profundas ou experienciei a transformação a que você se refere. Por quê?

Krishnamurti: Penso que está bem claro o porquê de nenhum de nós experienciar algo além da mera observação. Podem haver raros momentos de um estado emocional em que vemos, como se fosse, a claridade do céu entre as nuvens, mas eu não me refiro a nada desse gênero. Todas essas experiências são temporárias e tem muito pouca importância. O perguntador quer saber por que, depois desses muitos anos de observação, ele não encontrou as águas profundas. Por que ele deveria encontrá-las? Vocês compreendem? Você pensa que por observar os seus próprios pensamentos vai obter uma recompensa — se fizer isto, conseguirá aquilo. Você não está observando, não mesmo, porque a sua mente está preocupada em ganhar uma recompensa. Você acha que por observar, por estar consciente[86], será mais amoroso, sofrerá menos, será menos irritável, obterá algo além; então, a sua observação é um processo de compra. Com esta moeda você está comprando aquilo, o que quer dizer que a sua observação é um processo de escolha; portanto, não é observação, não é atenção. Observar mesmo é observar sem escolha, ver a si mesmo como você realmente é sem nenhum movimento do desejo de mudar, o que é uma coisa muito árdua de se fazer; mas isso não significa que você vai permanecer no seu estado presente. Você não sabe o que acontecerá se observar a si mesmo como é, sem desejar fazer uma mudança naquilo que vê. Você compreende?

Vou usar um exemplo e trabalhar com ele, e você verá. Vamos dizer que eu seja violento, como a maioria das pessoas é. Toda a nossa cultura é violenta, mas eu não vou entrar na anatomia da violência agora porque esse não é o problema que estamos examinando. Sou violento, e percebo que sou violento. O que acontece? Minha resposta imediata é que eu devo fazer alguma coisa a respeito, não é? Digo que devo me tornar não-violento. Isso é o que todos os professores de religião nos disseram por séculos — que se somos violentos temos que nos tornar não-violentos. Então eu pratico; eu faço todas as coisas ideológicas. Mas agora vejo o quão absurdo isso é, porque a entidade que observa a violência e quer transformá-la em não-violência ainda é violenta. Então eu estou preocupado não com a expressão dessa entidade, mas com essa entidade ela própria. Você está seguindo tudo isso, espero.

Agora, o que é essa entidade que diz “Eu não devo ser violento”? Essa entidade é diferente da violência que observou? Seriam esses dois estados diferentes? Vocês compreendem senhores, ou isso é abstrato demais? Estamos perto do fim da conferência, e provavelmente vocês estão um pouco cansados. Seguramente a violência e a entidade que diz “Eu devo transformar a violência em não-violência” são iguais, ambas são a mesma. Reconhecer esse fato é colocar um fim em todos os conflitos, não é? Não há mais o conflito de tentar mudar porque vejo que o próprio movimento da mente em não ser violenta é em si produto da violência.

Assim, o perguntador quer saber por que ele não consegue ir além dessas contendas superficiais da mente. Pela simples razão de que, consciente ou inconscientemente, a mente está sempre buscando alguma coisa, e essa busca, ela própria, traz violência, competição e uma insatisfação profunda. Só quando a mente está completamente quieta, calma, existe uma possibilidade de tocar as águas profundas.

Pergunta: Quando morremos, renascemos nesta terra ou passamos para algum outro mundo?

Krishnamurti: Esta questão interessa a todos nós, tanto os jovens quanto os velhos, não é? Então vou entrar nela bem profundamente, e espero que vocês sejam bem bons em seguir não só as palavras, mas a experiência presente do que vou examinar com vocês.

Todos sabemos que a morte existe, especialmente as pessoas mais velhas, e também os jovens que a observam. Os jovens dizem: “Esperarei até que ela venha, e lidaremos com ela”; e como os mais velhos já estão perto da morte, recorrem a várias formas de consolo.

Por favor, acompanhem e apliquem isto a vocês; não transfiram para outra pessoa. Como você sabe que irá morrer, tem teorias sobre isso, não tem? Você acredita em Deus, acredita na ressurreição, ou no carma e na reencarnação; você diz que renascerá aqui, ou em outro mundo. Ou então você racionaliza a morte, dizendo que ela é inevitável, que acontece para todos; a árvore definha e nutre o solo, e uma nova árvore vem a existir. Ou talvez você esteja ocupado demais com as suas preocupações diárias, suas ansiedades, ciúmes, invejas, com a sua competição e a sua saúde, para pensar na morte um pouco que seja. Mas está na sua mente; consciente ou inconscientemente, ela está lá.

Antes de tudo — você consegue se libertar das crenças, das racionalidades, ou da indiferença que cultivou frente à morte? Pode liberar-se, ficar livre de tudo isso agora? Porque o que importa é entrar na casa da morte enquanto estamos vivos, enquanto estamos totalmente conscientes, ativos, com saúde, e não esperar pela vinda da morte, que pode levá-lo instantaneamente em um acidente, ou por meio de uma doença que lentamente o deixa inconsciente. Quando a morte vem, deve ser um momento extraordinário, que é tão vital quanto viver.

Agora, posso eu, pode você entrar na casa da morte enquanto estamos vivos? Esse é o problema — não se há reencarnação, ou se há outro mundo em que você irá renascer, tudo isso que é tão imaturo, tão infantil. Um homem que vive nunca pergunta “O que é viver?” e não tem teorias sobre isso. Só os meio-vivos é que falam sobre o propósito da vida.

Então, podemos você e eu, enquanto estamos vivos, conscientes, ativos, com todas as nossas capacidades, quaisquer que sejam, conhecer o que é a morte? E a morte é, então, diferente de viver? Para a maioria de nós, viver é a continuação daquilo que pensamos que é permanente. Nosso nome, nossa família, nossa propriedade, as coisas em que investimos o nosso interesse econômica e espiritualmente, as virtudes que cultivamos, as coisas que obtivemos emocionalmente — tudo isso que queremos que continue. E o momento que chamamos de morte é um momento do desconhecido; portanto, ficamos assustados, e assim procuramos encontrar um consolo, algum tipo de conforto; queremos saber se há vida após a morte, e uma dúzia de outras coisas. Todos esses problemas são irrelevantes; eles são problemas para o preguiçoso, para aqueles que não querem descobrir o que é a morte enquanto estão vivos. Assim, podemos — você e eu — descobrir?

O que é a morte? Seguramente, é a cessação completa de tudo o que você conheceu. Se não é a cessação de tudo o que conheceu, não é morte. Se você já conhece a morte, então não há nada que possa assustá-lo. Mas você conhece a morte? Quer dizer, você consegue, enquanto está vivo, pôr um fim nessa luta eterna para encontrar no impermanente algo que continue? Pode você conhecer o incognoscível, aquele estado que chamamos de morte, enquanto vive? Pode colocar de lado todas as descrições daquilo que acontece após a morte que já leu em livros, ou que o seu desejo inconsciente por conforto dita, e sentir o gosto, experimentar esse estado, que deve ser extraordinário, agora? Se esse estado pode ser experienciado agora, então viver e morrer são a mesma coisa.

Então posso eu, que tenho vasta educação, conhecimento, que tive inumeráveis experiências, lutas, amores, ódios — pode esse ‘eu’ chegar a um fim? O ‘eu’ é a memória gravada de tudo isso, e pode esse ‘eu’ chegar a um fim? Sem ser por meio de um acidente, de uma doença, podemos você e eu, enquanto estamos sentados aqui, conhecer esse fim? Então você descobrirá que não vai mais fazer perguntas tolas sobre a morte e a continuidade — se há ou não um mundo depois deste. Então você conhecerá a resposta por si mesmo porque aquilo que é incognoscível terá acontecido, terá vindo a existir. Então você porá de lado toda a ladainha da reencarnação, e os muitos medos — o medo de viver e o medo de morrer, o medo de envelhecer e de infligir aos outros o problema de cuidar de você, o medo da solidão e da dependência — tudo isso terá chegado ao fim. Estas não são palavras vazias. Só quando a mente pára de pensar em termos da sua própria continuidade o incognoscível pode vir a existir.

 

CONFERÊNCIA 7

“Se pudermos descobrir de onde vem o senso de dominação, essa descoberta pode responder à questão de por que somos violentos”.

SÉTIMA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  27 de agosto de 1955

Um dos nossos maiores problemas, me parece, é esta questão da violência e, de nossa parte, o desejo de encontrar paz. Eu não creio que a paz possa ser encontrada sem que se compreenda toda a anatomia da violência. E a paz não é algo oposto à violência; é um estado totalmente diferente — portanto, não pode ser concebida por uma mente que está presa na violência. Como a maior parte da nossa vida está firmemente enraizada na violência, e a maior parte do nosso pensamento está cercada de violência, parece-me que é muito importante compreender este problema, que é muito complexo e necessita de uma grande dose de aprofundamento, insight; nesta tarde eu gostaria, se eu puder, de entrar nele.

Estranhamente nenhuma religião organizada, exceto talvez o budismo e o hinduísmo, jamais fez com que as guerras parassem, ou pôs fim a este assombroso antagonismo entre homem e homem. Ao contrário, algumas das assim chamadas religiões instigaram guerras e foram responsáveis por uma enorme matança de seres humanos. Nossas vidas, quando examinadas no cotidiano, estão carregadas de violência, e qual é a razão de sermos violentos? De onde surge a violência, e podemos realmente pôr-lhe um fim? Parece-me que só podemos chegar ao fim da violência — de maneira drástica, fazê-la cessar radicalmente — quando compreendemos de que fonte ela se origina. E eu imploro a você que não fique meramente ouvindo a minha descrição da violência, mas em vez disso, enquanto eu falo, observe como é o seu próprio pensamento e, por meio da descrição, talvez possa experienciar diretamente a questão que está por trás desta palavra, violência.

Por que isso de sermos violentos, não só como raça, mas também como indivíduos? Eu não sei se alguma vez você se fez essa pergunta. E qual é a nossa abordagem à violência quando olhamos para ela, quando estamos cônscios[87] dela, quando pensamos sobre ela? Obviamente, a maioria de nós diz que não tem jeito; fomos criados nesta sociedade em particular que nos condiciona, nos encoraja a sermos violentos, e assim balbuciamos alguma coisa sobre o problema de maneira bem breve e rápida. Mas vamos ver se não conseguimos ir mais fundo do que tudo isso e investigar este problema, para descobrir por que cada um de nós tem esse sentimento extraordinário de violência, e se é possível colocar um fim nisso, não de modo superficial, mas fundamental e profundamente.

Obviamente esta cultura, esta civilização está baseada na violência, não só no mundo ocidental, mas também no Oriente; a sociedade encoraja a violência; toda a nossa estrutura econômica, social e religiosa se baseia nisso. Estou usando essa palavra violência não no sentido superficial apenas, como raiva ou animosidade, mas incluindo também todo esse problema da ganância, da competição, do desejo por parte tanto do indivíduo quanto da coletividade de buscar poder. Seguramente esse desejo gera violência, não gera? Haverá violência enquanto eu estiver competindo com outro, enquanto eu for ambicioso, ganancioso — ganancioso não só no sentido mundano da avidez por muitas coisas, mas ganancioso num sentido mais profundo dessa palavra, que é ser dirigido pela urgência de se tornar alguma coisa, de dominar, de ter segurança, ter uma posição inatacável.

Assim, enquanto estivermos buscando poder, em qualquer forma que seja, certamente haverá muita violência. Por favor, não diga “Em uma cultura baseada na violência, o que eu posso fazer como indivíduo?” Penso que essa questão será respondida se você puder ouvir o que está sendo dito e não perguntar o que fazer. O fazer não é importante. A ação vem, eu penso, quando compreendemos todo esse complexo problema da violência. Estar ansioso para agir no que diz respeito à violência sem compreender o desejo de ser alguma coisa, o desejo de se impor, de dominar, de tornar-se algo, é realmente muito imaturo. Ao passo que se pudermos compreender a totalidade do processo da violência e perceber a verdade disso, então penso que essa própria percepção trará uma ação que não é premeditada e que, portanto, é verdadeira. Eu não sei se vocês estão acompanhando isto.

Vemos o que está acontecendo no mundo. Todo político fala de paz, e tudo o que faz é preparar-se para a divisão, para o antagonismo, para a guerra. E me parece muito importante que aqueles de nós que levam realmente a sério essas questões compreendam a verdade sobre o problema e não fiquem perguntando o que fazer — porque se compreendermos a verdade sobre o problema, a própria percepção daquilo que é a verdade precipitará uma ação que não é sua ou minha, e cujas implicações não é possível prever ou imaginar.

É um fato óbvio que tudo que fazemos neste mundo — na esfera social, econômica, religiosa — baseia-se na violência, ou seja, no desejo de poder, status, prestígio, em que está envolvida a ambição, a conquista, o sucesso. Os enormes edifícios que erigimos, as igrejas colossais, tudo indica esse senso de poder. Fico pensando se você prestou atenção a esses edifícios extraordinários e à reação que tem frente a eles. Eles podem até conter alguma beleza, mas para mim a beleza é algo inteiramente diferente. Para haver beleza deve haver austeridade e um total abandono, e não pode haver abandono se existe qualquer senso de ambição expressando-se como uma conquista. Quando há austeridade há simplicidade, e só a mente que é simples pode abandonar a si mesma, e a partir desse abandono vem o amor. Esse estado é o belo, a beleza. Mas estamos totalmente alheios a isso, disso estamos totalmente inconscientes[88]. Nossa civilização, nossa cultura, está baseada na arrogância, no senso de conquista, e em sociedade estamos esganando uns aos outros, violentamente competindo para conquistar, adquirir, dominar, tornar-se alguém. Esses são fatos psicológicos óbvios.

Agora, por que existe esse estado de violência? E, ao reconhecer esse estado, podemos ir além dele? Se pudermos fazê-lo, creio então que seremos capazes de adentrar algo inteiramente diferente. Vamos tomar como exemplo o desejo de dominar. Por que queremos dominar? Antes de tudo, estamos de alguma maneira conscientes[89], nos nossos relacionamentos e nas nossas atitudes frente à vida, desse senso de dominação, esse senso de querer poder, status? Se estamos, de onde isso surge? Vocês compreendem o que estou perguntando? Se pudermos descobrir de onde vem o senso de dominação, essa descoberta pode responder à questão de por que somos violentos. Somos todos violentos no sentido de que todos, de diferentes maneiras, queremos ser alguém; somos competitivos, ambiciosos, gananciosos; queremos dominar. Esses são os sintomas exteriores de um estado interior, e estamos tentando descobrir o que é esse estado interior que nos leva a fazer essas coisas. E somos de algum modo conscientes[90] desse estado ou estamos apenas nos ajustando a um padrão moral, sendo ideologicamente não-violentos, não-ambiciosos, sem realmente abordar a fonte, a raiz, que nos leva a fazer todas essas coisas? Se pudermos entrar nisto, talvez então a nossa abordagem ao problema da violência seja totalmente diferente. Então, por favor, ouçam ao que está sendo dito não com a atitude de “Oh, é só isso?” mas, em vez disso, permitam que haja uma autodescoberta. Se por meio da minha fala sobre isso você puder descobrir, ou melhor, puder realmente experienciar a coisa por si mesmo, então haverá um efeito extraordinário.

Por que sou violento? Quero descobrir. Vejo que sou violento porque socialmente, religiosamente, há essa urgência extraordinária por ser alguma coisa. Isso é um fato. No mundo dos negócios quero ser mais rico, ser mais capaz, estar no topo, e no assim chamado mundo espiritual sigo uma autoridade que me ajudará a ser alguma coisa lá. Então vejo que as minhas atividades, os meus pensamentos, os meus relacionamentos são todos baseados na dominação, na dependência. Quando sou dependente, devo seguir uma autoridade, o que nutre a violência.

Agora, quero compreender a totalidade do processo da violência e não meramente ajustar-me a um padrão social, que é muito superficial e não é nada interessante. Quero descobrir se a mente pode ficar totalmente livre da violência, se as raízes de todo esse processo podem ser completamente removidas da mente. Estou realmente interessado nisto; quero descobrir. Vejo que o mero ajustamento dos anseios, demandas e influências superficiais a um padrão diferente não resolve o problema. Substituir uma estrutura social por outra, instaurar uma sociedade comunista no lugar de uma sociedade capitalista não nos fará livres da dominação, da violência. Vejo isto, e então indago a mim mesmo para descobrir qual é a fonte de todos esses extraordinários anseios, demandas, buscas, que nutrem a animosidade e a violência.

Por que sou violento, competitivo, ambicioso, ganancioso? Por que existe em mim esta luta constante para ser, para tornar-me algo? Obviamente estou fugindo, voando para longe de algo, através dessa ambição, dessa ganância, desse desejo de ser um sucesso. Tenho medo de alguma coisa, e isso está me levando a fazer tudo isso. O medo é um estado de fuga. Então estou indagando do que é que eu realmente tenho medo. No momento não estou preocupado com o medo do escuro, da opinião pública, daquilo que alguém pode ou não pode dizer sobre mim, porque tudo isso é muito superficial; estou tentando descobrir o que é que fundamentalmente me faz ter medo, e que por sua vez me leva a ser ambicioso, competitivo, ganancioso, invejoso, criando assim animosidade e tudo o mais.

Por favor, pense comigo. Primeiramente parece-me que somos pessoas muito sós. Eu estou muito sozinho, interiormente vazio, e não gosto desse estado; tenho medo dele, e então eu o evito, fujo dele. A própria fuga cria medo, e para evitar esse medo, sou condescendente com vários tipos de ação. Há obviamente esse vazio[91] em mim, em você, do qual a mente escapa por meio da ação, da ambição, do anseio de ser alguém, de adquirir mais conhecimento — você sabe, todo esse assunto da violência[92]. E, sem fugir, pode a mente olhar para esse vazio, para esse extraordinário senso de solidão, que é a expressão máxima do eu? — o eu sendo a entidade, a autoconsciência que fica vazia quando não foge. Você compreende o que eu estou explicando? Se não estiver claro, posso falar sobre isso de outro jeito.

Afinal de contas, o self, o ego, o ‘eu’ está se expressando através da ambição, da ganância, da inveja, sendo violento e tentando ser não-violento, e assim por diante. Essas são todas expressões do ‘eu’[93]. Vejo tudo isso e, indo além disso, vejo também que essa mesma atividade do self surge desse extraordinário senso de vazio[94]. Eu não sei se você tem notado que quando segue o ‘eu’ em todos os seus movimentos, você chega a este ponto em que a mente está totalmente consciente[95] do self sendo completamente vazio; mas a mente nunca olhou realmente para essa vacuidade[96] — sempre fugiu, sempre voou para longe.

Agora, se eu puder compreender o que é esse vazio[97], então talvez possa resolver o problema da violência, mas para compreender o que é o vazio preciso olhar para ele, e não posso olhar enquanto estou fugindo. É exatamente essa fuga que causa o medo e precipita a ação da inveja, da competitividade, da brutalidade, da crueldade, da inimizade, e todo o resto. Então: pode a mente olhar para a coisa de que ela sempre fugiu por intermédio da ação? Espero que eu esteja sendo claro.

Você não está consciente[98] de que está sozinho, vazio? Não estamos falando daquilo que você deve fazer a respeito disso. O “o que você deve fazer a respeito disso” produziu este mundo estúpido e caótico. Estou perguntando o que está por trás do desejo de fazer alguma coisa — o que é extremamente difícil de descobrir porque a mente sempre evitou essa questão central. Mas se a mente puder estar totalmente consciente[99] de si própria como sendo vazia, solitária, o que quer dizer uma descoberta completa de como é o self que a trouxe a esse estado, então você descobrirá que qualquer ação, qualquer ação sem essa compreensão sempre precipita a violência em diferentes formas. Ser um mero pacifista ou ideólogo que é pró-isto e anti-aquilo não resolve o problema. O homem que pratica a não-violência não resolveu em nada o problema da violência; está meramente praticando uma ideia, e nunca abordou esta questão profunda e fundamental de onde surge toda ação.

Agora, por favor, observe a si mesmo; não fique apenas seguindo a minha descrição. Pode a sua mente estar consciente[100] desse vazio sem fugir dele? É pelo fato de você ser vazio, solitário, que quer uma companhia, quer alguém de quem possa depender, e essa dependência gera autoridade, que você segue; então esse próprio seguir da autoridade é uma indicação de violência. Pode a mente, vendo a verdade de tudo isto, parar de fugir e olhar para esse vazio[101]? Você compreende o que quer dizer olhar? Você não pode olhar para esse vazio se tem medo dele, se quer evitá-lo; só pode estar plenamente consciente[102] dele quando não há nenhum senso de condenação. Por favor, acompanhe isso cuidadosamente. Vou entrar nisso devagar, deliberadamente, para que a nossa comunicação e entendimento sejam iguais.

Estou consciente[103] de que estou sozinho, vazio, e estou olhando para esse vazio, mas não posso fazer isso se eu o condeno. A própria condenação é uma distração do ato de olhar para ele. Agora, posso eu olhar para ele, estar consciente[104] dele, sem dar-lhe um nome? Você compreende? E quando eu não o nomeio, o observador que olha é diferente daquilo que ele olha? Só há uma divisão quando aquele que olha dá um nome ao que vê, não é? Você está acompanhando? Nossa![105]Vou tornar isto mais simples.

Quando eu digo “Estou com raiva”, o próprio nomear dessa sensação, dessa reação, gera uma dualidade, não gera? Mas se eu não a nomeio, então essa própria coisa sou eu mesmo. Você compreende? Veja, eu nomeio um sentimento porque a mente é treinada para reconhecer, para rotular; mas se a mente não rotular, então a separação, a divisão entre o observador e o observado desaparece. Em outras palavras, quando cessa o nomear há apenas um estado, e nesse estado não há uma entidade separada sobre a qual possamos agir. A mente não opera mais sobre aquilo que deseja compreender; portanto, há uma cessação da atividade da mente, que é, em sua própria natureza, violenta.

Por favor, isto não é intelectual. Não diga que é muita viagem, que é abstrato demais, absurdo, e tudo isso. Eu estou investigando, passo a passo, a anatomia da violência. A nossa estrutura social se baseia na violência; não há apenas violência entre nações, mas individualmente estamos nos pegando uns aos outros pela garganta; somos competitivos, brutais. Agora, se quero compreender inteiramente esse problema, devo compreender as atividades da mente em relação a esta coisa que chamo de vazio[106], e no momento em que houver essa compreensão, não quero mais ser nada. Você me acompanha? É o desejo de ser alguma coisa que gera a inimizade e a violência. O idealista que quer criar uma utopia perfeita é em sua própria natureza violento. O homem que pratica a não-violência é um ser humano violento porque ele não compreendeu realmente o problema; ele lida com isso superficialmente.

Assim, vejo que enquanto a mente estiver operando em termos de ambição ou não-ambição, ela cria caos, luta, miséria para si própria e para os outros. E se a mente, entrando mais fundo no problema, compreende todo o processo desse anseio de ser alguma coisa, então deve inevitavelmente chegar ao ponto em que vê que está buscando uma fuga de não ser nada, que é um estado de vazio[107]. E posso eu compreender esse vazio? Pode a mente entrar nele, experimentar o seu gosto, senti-lo inteiramente? Com certeza a mente não pode experienciar e compreender essa coisa extraordinária que chamamos de vazio[108], solidão, enquanto o estiver condenando de qualquer forma que seja, enquanto quiser rejeitá-lo, dominá-lo ou ir além dele. A mente rejeitará e dominará esse estado enquanto lhe der um nome; e reconhecer, nomear, é em si o processo da mente.

Afinal, você não consegue pensar sem símbolos, sem ideias, sem palavras. E pode a mente parar de verbalizar? Pode ela deixar que esse processo cesse e olhar para aquilo que chamou de vazio[109] sem lhe dar um nome ou criar um símbolo imaginativo? E quando ela consegue fazer tudo isso, então esse estado que chamou de vazio é diferente dela própria? Seguramente não. Nesse momento há somente um estado em que não existe verbalização, nem nomeação e, portanto, a atividade toda da mente que separa, que compete, que nutre o antagonismo chega ao fim. Nesse estado existe um movimento bem diferente. Ele não é mais violento. Há uma gentileza que não pode ser compreendida pela mente que diz “Devo ser gentil”. Toda a volição (intencionalidade) cessou totalmente, porque a vontade também é produto da violência.

Pergunta: O que você diz parece tão estrangeiro e oriental… Um ensinamento como o seu é aplicável à nossa civilização ocidental, que se baseia na eficiência e no progresso, e que está elevando, no mundo todo, o padrão de vida?

Krishnamurti: Você acha que o pensamento é oriental e ocidental? As condutas podem variar. Eu posso comer com as minhas mãos na Índia, outro com os pauzinhos na China, e aqui você come de uma outra maneira ainda; mas o que torna a perspectiva oriental diferente da ocidental? Há uma diferença? Se eu tivesse nascido na América e dissesse as mesmas coisas que estou dizendo agora, você diria que é um ensinamento oriental? Talvez dissesse que é místico, pouco prático ou excêntrico. Mas os problemas são os mesmos, seja na Índia, no Japão ou aqui. Somos seres humanos, não asiáticos e americanos, russos e alemães, comunistas e capitalistas. Todos nós temos os mesmos problemas humanos.

Agora, o que estou dizendo certamente é aplicável tanto aqui quanto na Índia. A violência é tanto um problema de vocês quanto da Índia. O problema do relacionamento, do amor, da beleza, o problema de possibilitar um estado mental em que haverá paz, de criar uma sociedade que não seja autodestrutiva nem destruidora — tudo isso é obviamente do interesse de cada um de nós, vivamos no oriente ou no ocidente. Aqui vocês têm o problema de construir um exército, que é uma indicação da deterioração de qualquer sociedade, porque a própria base do exército é a autoridade, o nacionalismo, a segurança; e o problema é exatamente o mesmo na Índia, no Japão, na Ásia. Assim, essa divisão arbitrária do pensamento como oriental e ocidental não existe para aquele que faz uma investigação de fato. O homem que é condicionado por uma perspectiva ou filosofia asiática, e que diz a você como viver conforme esse condicionamento, está obviamente dividindo o pensamento em oriental e ocidental. Mas nós estamos falando de algo inteiramente diferente, que é libertar a mente de todos os condicionamentos, não moldá-la de acordo com uma filosofia oriental, o que é muito infantil.

O que estamos tentando fazer é investigar juntos a extraordinária complexidade das nossas vidas e descobrir se podemos realmente olhar para estes problemas complexos de forma bem simples — mas não podemos olhar para estes problemas muito simplesmente a não ser que compreendamos a nós mesmos. O self é um ser extraordinariamente complexo, com inumeráveis desejos contraditórios. Estamos eternamente em guerra conosco mesmos, e esse conflito interior se precipita nas atividades exteriores. Compreender o self — tanto o consciente[110] quanto o inconsciente — é uma tarefa enorme, e só podemos fazê-lo no dia a dia, momento a momento. É um livro que nunca termina; portanto, não é algo que possa ser concluído.

Assim, se pudermos ouvir o que está sendo dito não como um americano, um europeu ou um oriental, mas como um ser humano que está diretamente preocupado com todos estes problemas, então criaremos juntos um mundo novo; então seremos realmente pessoas religiosas. A religião é a busca da verdade, e para a pessoa religiosa não há nacionalidade, país ou filosofia; ela não segue ninguém; portanto, é realmente revolucionária no sentido mais profundo da palavra.

Pergunta: A libertação que experimentamos em várias formas de auto-expressão é uma ilusão, ou esse senso de realização[111] está ligado à criatividade de que você fala?

Krishnamurti: Existe mesmo algo como auto-realização? Aceitamos que existe, não aceitamos? Se sou um artista, devo realizar algo; se você é um escritor, deve realizar algo. Estamos todos tentando nos realizar de diferentes formas, por meio da família, das crianças, do marido ou da esposa, pela propriedade, pelas ideias. Se você é ambicioso, deve realizar a sua ambição; caso contrário, fica frustrado, e exatamente nessa frustração há sofrimento e miséria. Estamos todos tentando nos realizar, mas nunca perguntamos se realmente existe algo como auto-realização. Certamente o homem que busca a realização está acossado pela frustração e pelo sofrimento. Isso é bem simples, não é? Se estou o tempo todo tentando me realizar através do meu filho, da minha esposa, de uma ideia, de uma ação, sempre há a sombra da frustração e, por trás disso, medo. Então se quero compreender o medo, a frustração, a agonia das complexidades psicossomáticas, e todo o resto, devo eu mesmo questionar toda essa ideia de que existe uma coisa chamada auto-realização, que é o ‘eu’ tentando se tornar alguma coisa. Não poderia o ‘eu’ ser uma ilusão, mas, ao mesmo tempo, uma realidade, no sentido de que é operativo na ação? Para o homem que é ambicioso, competitivo, invejoso, o ‘eu’ não é ilusório; é uma coisa muito real. Mas para um homem que começa a investigar esse problema no seu todo, que realmente quer compreender o que é a paz — não a paz do terror, a paz dos políticos, nem a paz da auto-satisfação depois de acumular alguma coisa que a gente ansiou por ter, mas a paz em que não há contendas, disputas, não há luta para ser alguma coisa — para um homem assim vem a experiência de ser totalmente nada, e nesse estado há uma criatividade que está além do tempo[112], que é atemporal. O que chamamos de criatividade é um processo de aprender uma técnica e expressá-la, mas estou falando de algo inteiramente diferente, de uma mente em que o eu[113] está totalmente ausente.

Pergunta: A criatividade de que você fala se confina ao êxtase da redenção[114], ou pode também liberar o nosso poder para fazer uso das nossas conquistas científicas — e das dos outros — para ajudar o homem?

Krishnamurti: Questões assim — se isto acontece, o que virá depois? — obviamente são colocadas por pessoas que estão ouvindo muito superficialmente. Como eu disse, a ação de um homem que está em busca de algo, e para quem a realidade vem a ser[115], será diferente daquela do homem que tem um vislumbre desse estado e tenta expressá-lo. Afinal, a maioria de nós aprende algum tipo de técnica: pintura, engenharia, medicina, e assim por diante. Isso é obviamente necessário, mas apenas aprender a mecânica de uma determinada profissão não vai liberar essa criatividade. A realidade criativa — chame-a de Deus, verdade, ou o que preferir — acontece não por meio de uma técnica, mas só quando a mente compreendeu a si própria. E você sabe o quanto é difícil compreender a si mesmo? É difícil porque somos diletantes; não estamos realmente interessados. Mas se você estiver realmente atento[116], se der toda a sua atenção para compreender a si mesmo, encontrará um tesouro indestrutível. Você não tem que ler um único livro de filosofia, psicologia, análise e tudo o mais, porque você é o conteúdo total da humanidade inteira, e sem compreender a si mesmo continuará criando inumeráveis problemas, misérias sem fim. Compreender a si mesmo não requer anseios impetuosos, conclusões, mas sim muita paciência. Devemos ir devagar, milímetro a milímetro, sem jamais perder um passo — o que não quer dizer que você deve se manter eternamente desperto. Você não conseguirá fazer isso. Quer dizer que você deve observar e descartar aquilo que observou, largar e pegar novamente, de modo que a mente não se torne uma mera acumulação daquilo que descobriu, mas seja capaz de observar cada coisa como algo novo. Quando a mente é capaz de olhar para si mesma e compreender-se, aparece a criatividade do real, e uma mente assim pode usar a técnica sem causar sofrimento.

Pergunta: Qual é o significado dos sonhos, e como podemos interpretá-los para nós mesmos?

Krishnamurti: Eu gostaria de entrar nesta questão bem profundamente, e não lidar com ela apenas na superfície. Espero que vocês estejam interessados o suficiente nisso para acompanhar passo a passo.

A maioria de nós sonha. Ocorrem pesadelos quando nos empanturramos, ou quando comemos coisas erradas, mas não estou falando desse tipo de sonhos. Estou falando de sonhos que têm um significado psicológico. Há vários estados no sonho, não há? Você sonha, e quando acorda tenta encontrar o sentido do que sonhou — interpreta o sonho. A interpretação depende do seu conhecimento, do seu condicionamento, daquilo que aprendeu de vários filósofos, psicólogos, e assim por diante. E se você interpreta errado, toda a conclusão será errada. Mas também pode acontecer de sonharmos e a interpretação já acontecer ao mesmo tempo em que estamos sonhando, de modo que acordamos com clareza; já entendemos o sonho, e ele não nos influencia mais. Eu não sei se essas situações aconteceram com vocês.

Então o problema não é como interpretar os sonhos, mas sim por que sonhamos. Você compreende? Se você interpreta os seus sonhos de acordo com algum psicólogo, essa interpretação depende do condicionamento particular que ele apresenta, e se você tenta interpretá-los você mesmo, a sua interpretação é moldada pelo seu próprio condicionamento. Em qualquer dos casos a interpretação pode estar errada, e qualquer conclusão ou ação baseada nela pode, portanto, se provar inteiramente falsa. Então o problema não é como interpretar sonhos, mas: por que você sonha? Se você resolver esse problema, a interpretação não será necessária. Se você puder realmente compreender a totalidade do processo do sonho, ele se tornará uma questão muito simples.

Por que sonhamos? Por favor, vamos pensar juntos, não de acordo com alguma autoridade que escreveu um livro sobre isso. Deixe todas essas coisas completamente de lado, se puder, e vamos pensar juntos de maneira muito simples. Por que sonhamos? O que queremos dizer com sonhar? Você vai para a cama, adormece, e enquanto dorme acontece a ação, que toma a forma de vários símbolos ou cenas; e ao acordar, você diz: “Sim, esse é o sonho que tive”.

O que aconteceu? Por favor, acompanhe isto, é muito simples. Quando você está acordado, durante o dia, a mente superficial se ocupa com muitas coisas — com o seu trabalho, com as brigas, com as crianças, com o dinheiro, com a ida ao supermercado, com as louças para lavar — você sabe, ela se ocupa com dezenas de coisas. Mas a mente superficial não é a mente inteira; existe também o inconsciente, não existe? Você não tem que ler algum livro para descobrir que existe o inconsciente. Os nossos motivos ocultos, as nossas respostas instintuais, as nossas premências raciais, as nossas contradições herdadas, as nossas crenças — estão todas lá no inconsciente. O inconsciente obviamente quer dizer algo à mente superficial, e uma vez que esta mente superficial está quieta enquanto adormecida, o inconsciente tenta lhe falar. O inconsciente também está em movimento o tempo todo, mas não tem oportunidade de expressar nada durante o dia, e então projeta vários símbolos quando a mente consciente está adormecida; dizemos então: “Tive um sonho”. Se você entrar mesmo nisso, não é complexo.

Agora, eu não quero me ocupar eternamente com a interpretação dos sonhos, o que é como se ocupar com a cozinha, com Deus, com bebidas, com mulheres, ou com o que você quiser. Quero descobrir por que eu sonho, e se é possível simplesmente não sonhar [117]. Os psicólogos podem dizer que é impossível não sonhar, mas deixe os experts com a sua expertise, e vamos descobrir por nós mesmos. [Risadas] Não, não, por favor, não riam. Por que existem sonhos? É possível fazer com que cessem os sonhos sem suprimi-los, sem tentar ir além deles, de modo que no sono a mente fique totalmente imóvel, quieta? Quero descobrir, e esta é a minha primeira indagação.

Por que eu sonho? Eu sonho porque a minha mente consciente está ocupada durante o dia com muitas coisas. Mas pode a mente consciente estar aberta, durante o dia, a todas as insinuações e induções do inconsciente? Você compreende? Pode a mente superficial estar tão alerta durante o dia que ela esteja consciente[118] dos motivos inconscientes, dos vislumbres das coisas que estão escondidas, sem tentar suprimi-las, mudá-las, ou fazer alguma coisa com elas? Se você puder estar simplesmente atento[119] a todo esse conflito não de maneira crítica, mas sem escolha; se puder estar aberto de maneira que o inconsciente dê as suas dicas a cada momento do dia, quando você está no ônibus, ou dirigindo um carro, ou sentado à mesa, ou falando com amigos; se você puder apenas observar a maneira como olha para todos, a maneira como fala, o modo como trata as pessoas que não são do seu nível — então descobrirá, observando mais profundamente, que acontece uma cessação total dos sonhos.  Não há, então, nenhuma necessidade de insinuações ou dicas do inconsciente enquanto você dorme para dizer-lhe o que você deveria ou não deveria fazer, porque a coisa toda está sendo revelada enquanto você vive no dia a dia.

Assim, chegamos a um ponto muito interessante, que é: durante o dia, a mente está extraordinariamente alerta, sem julgar, sem condenar; e quando todo o processo da consciência foi desvelado, examinado e compreendido, então você descobrirá que acontece no sono uma quietude total; e que, estando totalmente quieta, a mente pode ir a profundezas que a consciência desperta não consegue chegar. Você compreende? Receio que não. Vou explicar novamente, e espero que vocês não se importem de ir até um pouco mais tarde.

Pois bem, a nossa busca é pela felicidade, pela paz, por Deus, pela verdade, e assim por diante; há uma constante luta para ajustar-se, para amar, para ser gentil, para ser generoso, para jogar fora isso e conseguir aquilo. Se estamos mesmo atentos,[120] sabemos que isso é um fato; há essa atividade total de turbilhão, de luta, de ajustamento, acontecendo o tempo todo, e uma mente nesse estado obviamente não pode descobrir nada novo. Mas se estou atento[121], durante o dia, aos vários pensamentos e motivos que surgem, se estou atento ao fato de que sou ambicioso, de que fico condenando, julgando, criticando, e vejo o todo dessa atividade, o que acontece? A minha mente não está mais lutando, fazendo força, e não existe esse redemoinho criado pela ânsia de encontrar algo. Assim, a mente fica completamente quieta, não apenas a mente superficial, mas todo o conteúdo da consciência; e nesse estado de completa quietude em que não se pode perceber nenhum movimento, nenhum esforço para ser ou não ser, a mente pode atingir profundidades a que nunca poderia chegar se estivesse tentando encontrar alguma coisa. Eis porque é importante estar atento[122] sem condenar, olhar sem crítica, sem julgamento. E você pode fazer isso ao longo de todo o dia, de vez em quando, de modo que a mente, quando adormecer, não seja mais um instrumento de luta, não fique mais captando insinuações do inconsciente por meio dos símbolos e tentando interpretá-los, não invente mais o plano astral e toda essa tolice. Estando livre de todo condicionamento, a mente é capaz então de, no sono, penetrar em profundidades que a consciência desperta nunca poderá atingir, e quando você acordar, descobrirá que há uma sensação de novidade[123] nunca experienciada antes. É como despir-se do passado e nascer novamente.

 

CONFERÊNCIA 8

“Libertar-se da sociedade implica não ser ambicioso, não ser cobiçoso, não ser competitivo; implica não ser nada em relação a aquela sociedade que luta para ser alguma coisa. Mas, você vê, é muito difícil aceitar isso porque podem pisar em você, podem colocá-lo de lado; você não terá nada. Nesse nada[124], nessa inexistência, há sanidade, não no resto… Enquanto queremos ser parte dessa sociedade, temos que gerar[125], que nutrir a insanidade, as guerras, a destruição e a miséria; mas para libertar-se dessa sociedade — a sociedade da violência, da riqueza, da posição, do sucesso — é preciso paciência, investigação interior, descoberta, e não a leitura de livros, a caça pelos professores, pelos psicólogos e tudo o mais”.

OITAVA CONFERÊNCIA EM OAK GROVE  –  28 de agosto de 1955

É muito difícil, creio, diferenciar entre o coletivo e o indivíduo, e descobrir onde termina o coletivo e começa o indivíduo; e também perceber o significado[126] do coletivo, e descobrir se é de algum modo possível estar livre do coletivo de maneira a fazer com que aconteça a totalidade do indivíduo. Eu não sei se vocês alguma vez já pensaram sobre este problema, mas me parece que é uma das questões fundamentais que desafiam o mundo, especialmente no momento presente, em que tanta ênfase está sendo dada ao coletivo. Não somente nos países comunistas, mas também no mundo capitalista, em que se criam previdências sociais, como na Inglaterra, a importância dada ao coletivo é cada vez maior; há fazendas coletivas e cooperativas de vários tipos, e olhando para isso ficamos imaginando onde entra o indivíduo, e se existe mesmo algo que se possa chamar de individual.

Você é um indivíduo? Você tem um nome próprio, uma conta bancária própria, uma casa separada, certas diferenciações faciais e psicológicas; mas você é um indivíduo? Eu creio que é muito importante entrar nisto, porque só quando há uma incorruptibilidade do indivíduo, que é sobre o que falarei agora, existe a possibilidade de acontecer alguma coisa totalmente nova. Isso implica descobrir por nós próprios onde acaba o coletivo, se é que ele acaba, e onde começa o indivíduo, o que envolve todo o problema do tempo. É um tema muito complexo; e, sendo complexo, devemos atacá-lo de maneira simples e direta, não indiretamente; e, se permitem, gostaria de entrar nisso nesta manhã.

Por favor, se eu puder sugerir, observe o seu próprio pensamento enquanto eu falo, e não fique meramente ouvindo com aprovação ou desaprovação o que está sendo dito. Se você ficar meramente ouvindo com aprovação ou desaprovação, com uma perspectiva superficial e intelectual, então esta conferência e as que aconteceram previamente serão completamente inúteis. Ao passo que for capaz de observar o funcionamento da sua própria mente, enquanto eu o descrevo essa própria observação trará uma ação surpreendente, que não é imposta nem forçada.

Penso que é muito importante que cada um de nós descubra onde acaba o coletivo e onde começa o indivíduo. Ou refletir: apesar de modificado pelo temperamento, pelas idiossincrasias pessoais, e assim por diante, o todo do nosso pensamento, o nosso ser, é o coletivo? O coletivo é o conglomerado de vários condicionamentos trazidos pela ação e reação social, pelas influências da educação, pelas crenças religiosas, dogmas, doutrinas e pressupostos, e tudo o mais. Todo esse processo heterogêneo é o coletivo, e se você examinar, olhar para si mesmo, verá que tudo o que você pensa, as suas crenças ou não-crenças, os seus ideais ou a sua oposição aos ideais, os seus esforços, as suas invejas, os seus anseios, o seu senso de responsabilidade social — tudo isso é o resultado do coletivo. Se você é um pacifista, o seu pacifismo é o resultado de um condicionamento específico.

Assim, se olharmos para nós mesmos, é surpreendente ver o quão completamente somos o coletivo. Afinal, no mundo ocidental, onde o cristianismo existiu por tantos séculos, você foi criado nesse condicionamento específico. Você é educado ou como católico ou como protestante, com todas as divisões do protestantismo. E uma vez que é educado como cristão, como hindu, ou o que for, acreditando em todo tipo de coisas — inferno, danação, purgatório, o único Salvador, o pecado original e inumeráveis outras crenças — você é condicionado por isso, e mesmo que possa se afastar, o resíduo desse condicionamento estará lá no inconsciente. Você estará sempre com medo do inferno, e de não acreditar em um determinado salvador, e assim por diante.

Então, quando olhamos para este extraordinário fenômeno, parece totalmente absurdo que a gente se chame de indivíduo. Você pode ter gostos individuais, o seu nome e o seu rosto podem ser bem diferentes dos de outra pessoa, mas o próprio processo do seu pensamento é inteiramente resultado do coletivo. Os instintos raciais, as tradições, os valores morais, a extraordinária adoração do sucesso, o desejo pelo poder, posição, riqueza, que gera violência — certamente, tudo isso é o resultado do coletivo, herdado por séculos. E é possível libertar o indivíduo de todo esse conglomerado? Ou é totalmente impossível? Se somos realmente sérios no assunto de levar a efeito uma mudança radical, uma revolução, não é de extrema importância considerar fundamentalmente este ponto? Porque só o homem que é um indivíduo no sentido que uso a palavra, que não está contaminado pelo coletivo, que está inteiramente sozinho, não solitário, mas completamente só interiormente — só a um indivíduo assim a realidade vem a existir.

Para falar de outra maneira, começamos as nossas vidas com pressupostos, com postulados: o de que existe ou não existe deus, de que existe o céu, o inferno, de que deve haver uma certa forma de relacionamento, de moralidade, de que deve prevalecer uma particular ideologia, e assim por diante. Com esses pressupostos, que são produto do coletivo, construímos uma estrutura que chamamos de educação, que chamamos de religião, e criamos uma sociedade em que há forte individualismo, desenfreado ou controlado. Esta sociedade está baseada no pressuposto de que é inevitável e necessário haver competição, de que deve haver ambição, inveja. E é possível não construir com base em qualquer pressuposto, mas construir à medida que investigamos, que descobrimos? Se a descoberta é de outra pessoa, imediatamente entramos no campo do coletivo, que é o campo da autoridade; mas se cada um de nós começa com liberdade com relação aos pressupostos, a todos os postulados, então você e eu construiremos uma sociedade totalmente diferente, e parece-me que esta é uma das questões mais fundamentais do tempo de hoje.

Agora, vendo todo esse processo, não somente no nível consciente, mas também no inconsciente — sendo o inconsciente também resíduo do coletivo — é possível libertar dele o indivíduo? O que quer dizer, é possível de alguma maneira pensar no pensamento desprovido do coletivo? Todo o nosso pensamento não é coletivo? Se você é educado como católico, metodista, batista, ou o que quiser, o seu pensamento é resultado do coletivo, consciente ou inconsciente; o seu pensamento é resultado da memória, e a memória é o coletivo. Isso é bem complexo, e devemos entrar muito devagar, nem concordando nem discordando; estamos tentando descobrir.

A mim parece uma grande tolice quando dizemos que há liberdade de pensamento, porque quando você e eu pensamos, o pensamento é a reação da memória, e a memória é resultado do coletivo — sendo esse coletivo cristão, hindu, e todo o resto. Assim, nunca pode haver liberdade de pensar enquanto o pensamento estiver baseado na memória. Por favor, isto não é meramente lógica. Não ponha isto de lado assim, dizendo: “Bem, isto é apenas lógica intelectual”. Não é. Acontece de ser lógico, mas o que estou descrevendo é um fato. Enquanto o pensamento é reação da memória, que é o resíduo do coletivo, a mente deve funcionar no campo do tempo — sendo o tempo a continuação[127], a continuidade da memória como ontem, hoje e amanhã. Para uma mente assim sempre há morte, corruptibilidade e medo, e por mais que ela busque algo incorruptível, além do tempo, nunca encontrará, porque o pensamento é o resultado do tempo, da memória, do coletivo.

Então: pode a mente cujo pensamento é o resultado do coletivo, cujo pensamento é o coletivo, libertar-se de tudo isso? O que quer dizer: pode a mente conhecer o eterno, o que está além do tempo, o incorruptível, aquilo que está só, que não é influenciado por nenhuma sociedade? Não afirme nem negue; não diga “Tive uma experiência com isso” — tudo isso não tem significado porque é mesmo uma questão extraordinariamente complexa. Podemos ver que sempre haverá corrupção enquanto a mente estiver funcionando no coletivo. Ela pode inventar um código de moralidade melhor, trazer mais reformas sociais, mas tudo isso está dentro da influência coletiva e, portanto, é corruptível. Certamente, para descobrir se há um estado que não é corruptível, que está além do tempo, que é imortal, a mente deve estar totalmente livre do coletivo; e se houver total liberdade do coletivo, o indivíduo será anti-coletivo? Ou ele não será anti-coletivo, mas funcionará em um nível totalmente diferente, que o coletivo poderá rejeitar? Vocês estão acompanhando isto?

O problema é: pode a mente ir além do coletivo? Se não há possibilidade de ir além do coletivo, então devemos nos contentar em construir ornamentos nesse coletivo, abrir janelas na prisão, instalar luzes melhores, mais banheiros, e assim por diante. É com isso que o mundo está preocupado, e é isso que ele chama de progresso, que chama de padrão de vida mais elevado. Eu não sou contra um padrão de vida mais elevado; isso seria tolice, especialmente se a gente vem da Índia, onde como em nenhum outro lugar do mundo vemos pessoas morrerem de inanição, talvez com exceção da China; onde as pessoas têm meia refeição por dia, ou nem isso, onde há dor, sofrimento, doença, e as pessoas são incapazes de se revoltarem porque estão morrendo de fome. Assim, nenhum homem inteligente pode ser contra um padrão de vida mais elevado, mas se isso é tudo, então a vida é meramente materialista. E nesse caso o sofrimento é inevitável; a ambição, a competição, o antagonismo, a eficiência brutal, a guerra e toda a estrutura do mundo moderno, com ocasionais caças às bruxas e reformas sociais, caem perfeitamente bem. Mas se começamos a investigar o problema do sofrimento — o sofrimento como morte, como frustração, como a sombra da ignorância — precisamos então questionar essa estrutura em seu todo, não apenas parte dela, não apenas o exército ou o governo, para realizar uma reforma específica. Ou devemos aceitar esta sociedade em sua totalidade, ou devemos rejeitá-la completamente — rejeitá-la não no sentido de fugir dela, mas de descobrir o seu significado.

Então se não existe possibilidade de a mente se libertar dessa prisão do coletivo, ela só pode voltar para trás e reformar a prisão. Mas para mim essa possibilidade de libertar-se da prisão do coletivo existe, porque lutar eternamente na prisão seria estúpido demais. E como a mente pode se libertar dessa massa heterogênea de valores e contradições, buscas e anseios? Até que você faça isso, não há individualidade. Você pode chamar a si mesmo de indivíduo, pode dizer que tem uma alma, um eu superior, mas tudo isso é invenção da mente que ainda é parte do coletivo.

Podemos ver o que está acontecendo no mundo. Um novo grupo do coletivo nega que exista uma alma, que haja a imortalidade, permanência, que Jesus seja o único Salvador, e todo o resto. Vendo todo esse conglomerado de afirmações e contra-afirmações, surge a questão inevitável: é possível a mente se desembaraçar de tudo isso? Ou seja, podemos nos libertar do tempo — o tempo como memória, a memória que é produto de uma cultura específica, uma civilização, um condicionamento? Não a memória de como construir uma ponte, ou a estrutura do átomo, ou o caminho para a nossa casa; isso é memória fatual, e sem ela ficaríamos loucos ou em um estado de amnésia. Mas pode a mente se libertar da memória psicológica? Seguramente ela só pode se libertar quando não está buscando segurança. Afinal, como eu dizia ontem à tarde, enquanto a mente busca segurança, seja em uma conta bancária, em uma religião, ou em várias formas de ação social e relacionamento, deve haver violência. O homem que possui muito gera violência, mas o homem que vê esse muito e se torna um eremita, ele também gera a violência porque está buscando segurança, não no mundo, mas em ideias.

O problema então é: pode a mente se libertar da memória — não a memória da informação, do conhecimento, dos fatos, mas a memória coletiva que se acumulou por séculos de crenças? Se você colocar essa questão para si mesmo com total atenção e não esperar que eu a responda, porque não há resposta, então verá que enquanto a sua mente estiver buscando segurança em qualquer das suas formas, você pertence ao coletivo, à memória de muitos séculos. E não buscar segurança é assombrosamente difícil, porque podemos rejeitar o coletivo, mas desenvolver um coletivo da nossa própria experiência. Você compreende? Posso rejeitar a sociedade com toda a sua corrupção, com a sua ambição coletiva, a sua ganância, competitividade; mas tendo-a rejeitado, eu tenho experiências, e toda experiência deixa um resíduo. Esse resíduo também se torna o coletivo porque eu o colecionei[128]; ele se torna a minha segurança, que eu dou para o meu filho, para o meu vizinho, e assim eu novamente crio o coletivo, em um padrão diferente.

É possível a mente estar totalmente livre da memória do coletivo? Isso significa estar livre da inveja, da competitividade, da ambição, da dependência, dessa busca eterna pelo que é permanente como meio de estar seguro; só quando existe essa liberdade, existe o indivíduo. Há então um estado da mente e do ser totalmente diferentes; não há possibilidade de corrupção, de tempo, e para uma mente assim, que pode ser chamada de individual ou de qualquer outro nome, a realidade acontece. Você não pode ir atrás da realidade; se o fizer, ela se torna a sua segurança; portanto, é completamente falsa, sem sentido, como a sua busca de dinheiro, ambição, realização. A realidade deve vir até você, e ela não pode vir até você enquanto houver a corrupção do coletivo. Eis porque a mente deve estar completamente só, sem influências, sem contaminações e, portanto, livre do tempo — e só então aquilo que é imensurável, eterno, vem a existir, acontece.

Muitas questões foram enviadas, e infelizmente não podem todas ser respondidas. Mas o que fizemos foi selecionar as mais representativas, e nesta manhã vou tentar responder o maior número possível delas.

Espero que não estejam sendo mesmerizados por mim. Por favor, o que estou dizendo tem sentido; não estou falando casualmente. Vocês ouvem em silêncio. Se esse silêncio é meramente o resultado de se sentirem subjugados por outra personalidade, ou por ideias, então não tem valor nenhum. Mas se o seu silêncio é o produto natural da sua atenção ao observar os seus próprios pensamentos, ao observar a sua mente, então não estão sendo mesmerizados, não estão sendo hipnotizados. Então não estão criando um novo coletivo, um novo seguidor, um novo líder — o que é um horror, não tem sentido, e é muitíssimo destrutivo. Se vocês estão realmente alertas, interiormente observadores, descobrirão que estas conferências valeram a pena porque terão revelado o funcionamento da sua própria mente. E então não há nada a aprender de outro; portanto, não há professor, nem discípulo, nem seguidor. A totalidade de tudo isso está na própria consciência de vocês, e aquele que descreve essa consciência não constitui um líder. Você não adora o mapa, ou o telefone, ou o quadro-negro em que algo é escrito. Assim, isto não é a criação de um novo grupo, de um novo líder, de novos seguidores, pelo menos não para mim. Mas observe a sua mente, que é o que diz o quadro-negro, e essa observação leva a uma descoberta extraordinária, essa descoberta traz a sua própria ação.

Pergunta: Muitas pessoas que passaram pela dilacerante experiência da guerra parecem incapazes de encontrar os seus lugares no mundo moderno. Arremessadas pelas ondas desta sociedade caótica, vagam de uma ocupação a outra e vivem vidas miseráveis. Sou uma dessas pessoas. O que devo fazer?

Krishnamurti: O que acontece, geralmente, quando você está revoltado contra a sociedade? Pela compulsão, pela necessidade, você entra em conformidade com um determinado padrão social, e, assim, entra também em uma luta eterna consigo mesmo e com a sociedade. A sociedade fez de você aquilo que é; gerou guerras e destruição. Esta cultura é baseada na inveja, no turbilhão; as suas religiões não tornam um homem verdadeiramente religioso. Ao contrário, elas destroem o homem religioso. Então o que um indivíduo deve fazer? Tendo sido dilacerado pela guerra, ou você se torna um neurótico ou vai até alguém que vai ajudá-lo a ser não-neurótico e ajustar-se ao padrão social, continuando assim uma sociedade que gera a insanidade, guerras e corrupção. Ou então — e isso é realmente muito difícil — você observa essa estrutura da sociedade em seu todo e se liberta dela. Libertar-se da sociedade implica não ser ambicioso, não ser cobiçoso, não ser competitivo; implica não ser nada em relação a aquela sociedade que luta para ser alguma coisa. Mas, você vê, é muito difícil aceitar isso porque podem pisar em você, podem colocá-lo de lado; você não terá nada. Nesse nada, nessa inexistência, há sanidade, não no resto… Enquanto queremos ser parte dessa sociedade, temos que gerar, que nutrir a insanidade, as guerras, a destruição e a miséria; mas para libertar-se dessa sociedade — a sociedade da violência, da riqueza, da posição, do sucesso — é preciso paciência, investigação interior, descoberta, e não a leitura de livros, a caça pelos professores, pelos psicólogos e tudo o mais.

Pergunta: Estou perplexo com a frase que você usou na conferência da semana passada, “uma mente completamente controlada”. Uma mente controlada envolve a vontade, ou uma entidade que controla?

Krishnamurti: Eu realmente usei essa expressão “uma mente controlada” e pensei que tivesse explicado o que queria dizer com ela. Vejo que isso não foi bem compreendido, e assim vou explicar novamente.

Em vez de uma mente controlada, não é melhor ter uma mente firme[129], uma mente que não tem distrações? Por favor, acompanhe isto. Uma mente que não tem distrações é uma mente em que não existe um interesse central. Se há um interesse central, então há distrações. Mas uma mente que está completamente atenta, não na direção de um objeto em particular, é uma mente firme.

Agora examinemos brevemente essa questão do controle em seu todo. Quando há controle, há uma entidade que controla, que domina, que sublima ou encontra um substitutivo. Assim, no controle está sempre acontecendo um processo dual — aquele que controla, e a coisa que é controlada. Em outras palavras, há conflito. Certamente você está consciente disso[130]. Há o controlador, o avaliador, o juiz, o experienciador, o pensador, e oposto a isso tudo, surge a coisa que é examinada, controlada, suprimida, sublimada, e todo o resto. Então há sempre uma batalha acontecendo entre esses dois — aquele que é, e o que diz “Eu devo ser”. Essa contradição, esse conflito, é um desperdício de energia. E será possível termos apenas o fato e não o controlador? É possível ver o fato de que eu estou com inveja sem dizer que é errado invejar, que é antissocial, antiespiritual, e deve ser mudado? Pode a entidade que avalia desaparecer totalmente e permanecer somente o fato? Pode a mente olhar para o fato sem avaliar, ou seja, sem opinião? Quando existe uma opinião sobre um fato, há confusão, conflito. Eu espero que você esteja acompanhando tudo isso.

Assim, a confusão é um desperdício de energia, e enquanto aborda o fato com uma conclusão, com uma ideia, com uma opinião, com um julgamento, com uma condenação, a mente está confusa. Mas quando a mente vê o fato como verdadeiro e sem opinião, então há apenas a percepção do fato, e a partir disso vem uma firmeza e sutileza extraordinárias na mente, porque nessa situação não há desvio, nem fuga, nem julgamento, nem conflito em que a mente possa se desperdiçar. Há apenas pensamento, sem pensador, mas experienciar isso é muito difícil.

Veja o que acontece. Você vê um pôr-do-sol maravilhoso. No momento preciso em que o vê, não há um experienciador, há? Há somente uma percepção de grande beleza. A mente então diz: “Como isso é bonito. Gostaria de continuar sentindo isso”, e assim o conflito começa com o experienciador querendo mais. Agora, pode a mente estar em um estado de experienciar sem o experienciador? O experienciador é a memória, o coletivo. Oh, você vê isso? E posso eu olhar para o pôr-do-sol sem comparar, sem dizer “Como isso é bonito. Gostaria de continuar sentindo isso”? O continuar sentindo é a criação do tempo, em que existe o medo do fim, o medo da morte.

Pergunta: Há uma dualidade entre a mente e o eu? Se não há, como podemos libertar a mente do self?

Krishnamurti: Há uma dualidade entre o ‘eu’, o self, o ego, e a mente? Certamente não. A mente é o self, o ego. O ego, o self, é essa ânsia da inveja, da brutalidade, da violência, essa falta de amor, essa busca interminável de prestígio, posição, poder, tentando ser alguma coisa — que é aquilo que a mente também está fazendo, não é? A mente está o tempo todo pensando em como avançar, como ter mais segurança, como ter uma posição melhor, mais conforto, mais riqueza, mais poder, tudo o que é o self. Assim, a mente é o self; o self não é uma coisa separada, apesar de gostarmos de pensar que é porque então a mente pode controlar o self; ela pode jogar esse jogo de ir e vir, de subjugar, de tentar fazer algo a respeito do self — que é o jogo imaturo de uma mente educada, educada no sentido errado da palavra.

Então a mente é o self; é toda essa estrutura da ganância, e o problema é: como a mente pode se livrar se si mesma? Por favor, acompanhe isto. Se ela faz qualquer movimento para se libertar, ainda é o self, não é?

Veja, eu e a minha mente somos a mesma coisa; não há divisão entre eu e a minha mente. O self que é invejoso, ambicioso, é exatamente a mesma coisa que a mente que diz: “Não devo ser invejoso, devo ser nobre”, só que a mente se dividiu. Agora, quando eu vejo isso, o que devo fazer? Se a mente é o produto do ambiente, da inveja, da ganância, do condicionamento, então o que fazer? Certamente qualquer movimento que ela faça para se libertar ainda faz parte desse condicionamento. Tudo bem? Vocês compreendem? Qualquer movimento por parte da mente para se libertar do condicionamento é uma ação do self que quer se libertar para ser mais feliz, ter mais paz, estar mais perto da mão direita de Deus. Assim, vejo isto na sua totalidade, vejo o jeito e os ardis da mente. Então a mente está quieta, completamente imóvel, não há movimento; e é nesse silêncio, nessa imobilidade, que há liberdade, que estamos livres do eu, da própria mente. Certamente o eu só existe no movimento da mente para ganhar alguma coisa ou evitar alguma coisa. Se não há movimento de ganhar ou de evitar, a mente está completamente quieta. Só então existe a possibilidade de sermos livres da totalidade da consciência como sendo o coletivo e como sendo oposta ao coletivo.

Pergunta: Tendo feito seriamente experiências com os seus ensinamentos por vários anos, tornei-me completamente consciente da natureza parasitária da autoconsciência e vejo os seus tentáculos abraçando cada pensamento, palavra e ação que tenho. Como resultado, perdi toda autoconfiança, e também toda motivação. O trabalho se tornou enfadonho e o lazer, monótono. Estou quase que constantemente sentindo uma dor psicológica, e mesmo assim vejo esta dor como um estratagema do self. Cheguei a um impasse em todos os departamentos da minha vida, e eu pergunto a você, como tenho me perguntado a mim mesmo: e agora?

Krishnamurti: Você tem feito experiências com os meus ensinamentos, ou tem feito experiências consigo mesmo? Espero que você perceba a diferença. Se você está fazendo experiências com o que eu estou dizendo, então chegará forçosamente ao “e agora?”, porque está tentando obter um resultado que você pensa que eu tenho. Você pensa que eu tenho algo que você não tem, e que se fizer experimentos com aquilo que eu digo, também vai ter — o que a maioria de nós faz. Abordamos estas coisas com uma mentalidade comercial — vou fazer isto para obter aquilo. Eu vou adorar, meditar, fazer sacrifícios para obter alguma coisa.

Agora, você não está praticando os meus ensinamentos. Não tenho nada a dizer. Ou melhor, tudo o que estou dizendo é: observe a sua mente, veja a que profundidades a mente pode ir; portanto, o importante é você, não os ensinamentos. É importante que você descubra a sua própria maneira de pensar, e o que esse pensar implica, como eu estive tentando indicar nesta manhã. E se você realmente estiver observando o seu próprio pensamento, se estiver olhando, experimentando, descobrindo, largando o que deve ser largado, morrendo a cada dia para o que você acumulou, então nunca colocará a questão: “E agora?”

Você vê, a confiança é totalmente diferente da confiança no eu[131]. A confiança que acontece quando você, a cada momento, faz descobertas, é inteiramente diferente da confiança no eu que surge do acúmulo de descobertas, que se torna conhecimento e confere importância a você. Você vê a diferença? Portanto, o problema da confiança no eu desaparece completamente. Só há o movimento constante da descoberta, o constante ler e compreender não um livro, mas a sua própria mente — a totalidade da consciência, e a vasta estrutura que ela tem. Então você não está, em nada, buscando um resultado. Só quando você busca um resultado, diz: “Fiz todas essas coisas, mas não obtive nada, e perdi a confiança. E agora?” Ao passo que se você estiver examinando, compreendendo o jeito da sua própria mente, sem buscar uma recompensa, uma finalidade, sem a motivação do ganho, então há autoconhecimento, e você verá que ele gera uma coisa realmente espantosa.

Pergunta: Como podemos evitar que a atenção plena[132] se torne uma nova técnica, a última moda em meditação?

Krishnamurti: Esta é uma questão muito séria, e vou entrar nela bem profundamente; espero que vocês não estejam cansados demais para acompanhar, com uma atenção relaxada, o movimento da mente de vocês.

É importante meditar, mas é ainda mais importante compreender o que é a meditação; caso contrário, a mente fica presa em uma mera técnica. Aprender um novo truque de respiração, sentar-se em certa postura, manter as suas costas retas, praticar um dos vários sistemas para silenciar a mente — nada disso é importante. O que é importante é que você e eu descubramos o que é a meditação. Propriamente nessa descoberta do que é a meditação, estou meditando. Você compreende? Calma, senhores, não concordem nem discordem.

É enormemente importante meditar. Se você não sabe o que é meditação, é como ter uma flor sem perfume. Você pode ter uma capacidade maravilhosa de falar, de pintar ou de aproveitar a vida; pode ter informação enciclopédica e saber relacionar todo o conhecimento, mas essas coisas não terão nenhum sentido se você não souber o que é meditação. A meditação é o perfume da vida; tem uma imensa beleza. Ela abre portas que a mente jamais poderia abrir; vai a profundidades que a mente apenas culta nunca pode tocar. Assim, a meditação é muito importante. Mas nós sempre fazemos a pergunta errada e, portanto, obtemos a resposta errada. “Como devo meditar?” E então vamos a algum swami, a algum idiota, ou pegamos um livro, seguimos um sistema, esperando aprender a meditar. Agora, se pudermos colocar tudo isso de lado, os swamis, os iogues, os intérpretes, os experts em respiração, os “sentadores-parados[133]”, e todo o resto, então inevitavelmente teremos que chegar a esta questão: o que é meditação?

Então, por favor, ouçam cuidadosamente. Estamos indagando agora não como meditar, ou qual é a técnica da atenção plena[134], mas o que é meditação? — que é a pergunta certa. Se você faz a pergunta errada, receberá a resposta errada, mas se faz a pergunta certa, então a própria pergunta revelará a resposta certa. Então, o que é meditação? Você sabe o que é meditação? Não repita o que você ouviu outra pessoa dizer, mesmo se você conhecer alguém, como eu conheço, que devotou vinte e cinco anos à meditação. Você sabe o que é meditação? Obviamente não, não é? Você pode ter lido aquilo que disseram vários padres, santos ou eremitas sobre a contemplação e a oração, mas eu não estou falando de nada disso. Estou falando de meditação — não o sentido da palavra que está no dicionário, que você pode procurar depois. O que é meditação? Você não sabe. [Risadas] Por favor, ouçam, não riam. “Eu não sei”. Você compreende a beleza disso? Isso significa que a minha mente está desprovida de toda técnica, de toda informação sobre meditação, de tudo o que os outros disseram sobre isso. A minha mente não sabe. Só podemos continuar descobrindo o que é meditação quando você puder honestamente dizer que não sabe; e você não pode dizer “Eu não sei” se houver na sua mente qualquer resquício, por mínimo que seja, de informação de segunda mão, daquilo que o Gita, ou a Bíblia, ou São Francisco disseram sobre a contemplação ou os resultados da oração — o que é a última moda; fala-se disso em qualquer revista. Você deve colocar tudo isso de lado porque, se copiar, se seguir, reverterá ao coletivo.

Então: pode a mente estar em um estado em que diz “Eu não sei”? Esse estado é o começo e o fim da meditação porque nele cada experiência — cada experiência — é compreendida e não acumulada. Você compreende? Você quer controlar o seu pensamento, e quando controla o seu pensamento, quando evita que ele se distraia, a sua energia foi para o controle e não para o pensamento. Você está acompanhando? Só pode haver acumulação de energia quando ela não é desperdiçada em controle, em subjugação, em lutar contra as distrações, não é desperdiçada em suposições, em buscas, em motivações; quando esse enorme acúmulo de energia, de pensamento, estiver sem movimento. Quando você diz “Eu não sei”, não há movimento da mente, há? Só há movimento da mente quando você começa a investigar, a descobrir, e a sua indagação vem do conhecido para o conhecido. Se você não acompanha isso, talvez pense a respeito depois.

A meditação é um processo de purgação, de limpeza da mente. Só pode haver purgação da mente quando não há ninguém que controle; ao controlar, o controlador dissipa energia. A dissipação de energia surge da fricção entre o controlador e o objeto que ele quer controlar. Agora, quando você diz “Eu não sei”, não há movimento do pensamento em direção alguma para encontrar uma resposta; a mente está completamente quieta. E para que a mente esteja quieta, deve haver uma energia extraordinária. A mente não pode estar imóvel sem energia — não a energia que é dissipada no conflito, na supressão, na dominação ou pela oração, pela busca, pelos pedidos, que implicam um movimento, mas a energia que é atenção completa. Qualquer movimento do corpo, em qualquer direção que seja, é uma dissipação de energia, e para que a mente esteja completamente quieta deve haver a energia da atenção plena. Só então acontece aquilo que não pode ser convidado, que não pode ser buscado, aquilo sobre que não há respeitabilidade, que não pode ser buscado pela virtude ou pelo sacrifício. Esse estado é criatividade — é o que está além do tempo, o real.

 

[1] como no original (todas as notas são do tradutor)

[2] being aware (todas as notas são do tradutor)

[3] A palavra self foi sempre mantida sem tradução.

[4] aware of

[5] to be aware of

[6] to be aware of

[7] Sempre que adequado, traduzo “you” por “você” e não “vocês”.

[8] awareness

[9] to be aware of

[10] still

[11] choicelessly aware

[12] to be aware of

[13] to be aware of

 

[14] to be aware of

[15] acquisitiveness

[16] timeless

[17] eternal

[18] to be aware of

[19] aware of the motivation

[20] to be aware that

[21] unaware

[22] to be aware of

[23] to be aware of

[24] earnesness

[25] awareness

[26] timeless

[27] idem

[28] to be aware of

[29] idem

[30] idem

[31] uncondition the mind

[32] aware

[33] are we simply not aware

[34] we are not aware of ourselves

[35] aware

[36] awareness

[37] Consciousness

[38] Awareness

[39] Consciousness

[40] Idem

[41] Idem

[42] Idem

[43] Consciousness

[44] Idem

[45] Idem

[46] Slightly aware of anything

[47] Aware

[48] Consciousness

[49] Idem

[50] Idem

[51] Idem

[52] Idem

[53] Self-consciousness

[54] a state of feeling

[55] Consciousness

[56] Self-consciousness

[57] Idem

[58]there cannot be a referent

[59]in awareness in which there is total attention.

[60] sociological value

[61] To be aware of

[62] fulfillment

[63] stillness

[64] emptiness

[65] One is aware

[66] Steadiness

[67] break up

[68] idem

[69] steady

[70] break up

[71] the very deviation is fear

[72] if the mind ceases altogether to think in habits

[73] aware

[74] broken up

[75] settles down

[76] idem

[77] a picture

[78] dull

[79] fathomed

[80] which means being aware

[81] self-assertive answer

[82] be aware

[83] aloud

[84] unknowable

[85] being aware of everything

[86] by being aware

[87] when we are aware of it

[88] unaware

[89] are we at all aware

[90] are we aware

[91] emptiness

[92] the whole business of violence

[93] me

[94] emptiness

[95] aware

[96] emptiness

[97] idem

[98] aren’t you aware

[99] be totally aware

[100] be aware of

[101] emptiness

[102] aware

[103] idem

[104] idem

[105] Goodness!

[106] emptiness

[107] idem

[108] idem

[109] idem

[110] the conscious as well as the inconscious

[111] fulfillment

[112] timeless

[113] self

[114] atonement

[115] comes into being

[116] aware

[117] not to dream at all

[118] aware

[119] idem

[120] if we are at all aware

[121] aware

[122] aware

[123] newness

[124] nothingness

[125] breed

[126] significance

[127] continuation

[128] The residue also becomes the collective because I have collected it

[129] steady

[130] you are aware of this

[131] self-confidence

[132] awareness

[133] sitting-stillers

[134] awareness