Reflexões sobre o Diálogo
Antônio Sales Rios Neto
“A cada momento temos a oportunidade de morrer psicologicamente, libertando-nos dos preconceitos, de hábitos mecânicos, do isolamento, do pedantismo do ego, das imagens do eu e do mundo e das concepções que temos do passado e do futuro. Assim, pomos em movimento a possibilidade de uma percepção criativa e auto-organizadora que nos coloca em contato com a magia que nos pôs no mundo.”
John Briggs e David Peat
Competição ou cooperação?
Arena ou ágora?
Patriarcal ou matrística?
Totalitarismo ou democracia?
Pirâmides ou redes?
Negação ou aceitação do outro?
Esperteza ou competência?
Utilitarismo ou convivencialidade?
Linear ou complexo?
Discussão ou diálogo?
Estas são questões de fundo bastante atuais que carregam um mesmo sentido, porém gostaria de me deter um pouco a refletir sobre a última, por ser mais recorrente em nosso cotidiano.
Vivemos tempos de crise do atual modelo civilizatório (também chamado de mudança de época) em que o predomínio da razão sobre a emoção, da tecnociência sobre as ciências humanas nos levou, durante os últimos quatrocentos anos, a exaltação de valores e comportamentos inerentes à vida mecânica como hierarquia, controle, estabilidade, individualismo, competitividade, sobrevivência etc. Embora o homem tenha obtido importantes conquistas no campo tecnológico com a visão de mundo mecanicista (que nas últimas décadas evoluiu para uma visão econômica de mundo), este modelo tem legado enormes problemas para a humanidade nos dias atuais, os mais graves talvez sejam a exclusão social e econômica que alcança aproximadamente dois terços da população mundial e as mudanças climáticas que num futuro próximo representam uma séria ameaça aos seres humanos e à vida da própria Terra. No entanto, toda crise comporta um novo renascimento e esta está gestando um novo paradigma, com novos conhecimentos, valores e padrões de comportamentos, que não vem ao caso tratar aqui – faço isso em outros ensaios sobre complexidade.
Há muitas perspectivas para se observar esta crise do atual paradigma que se abate sobre a humanidade. Muitos pensadores, a exemplo do físico quântico David Bohm, vêem este fenômeno da atualidade como uma crise de significado (“a doença do pensamento”, segundo Bohm) e sugerem a prática do diálogo como meio de superação dos problemas humanos atuais e também como forma de resgatar a convivencialidade entre as pessoas, construindo relacionamentos mais consistentes nas equipes de trabalho, nas organizações, na sociedade e demais grupos sociais. Em sua última fase da vida, Bohm dedicou-se ao estudo do diálogo. Preocupado com a questão ambiental e com a vida social e política do mundo, ele percebeu que a prática do diálogo era a forma mais adequada de as pessoas criarem significado compartilhado sobre o que pensam, evitando-se a visão fragmentada que normalmente se tem acerca dos problemas humanos. Isso permitiria a unificação do pensamento coletivo e melhoraria a capacidade humana de aprender e tomar decisões que tragam sustentabilidade e longevidade para as organizações atuais. Esta foi talvez sua grande contribuição para áreas como a administração e a psicologia e já vem sendo utilizada com êxito por muitas empresas, governos e entidades transnacionais como a melhor estratégia de negociação.
Outro bom exemplo são as consultoras americanas Linda Ellinor e Glenna Gerard, que há anos vêm desenvolvendo trabalhos sobre o diálogo dentro das organizações. Elas destacam a importância do poder do diálogo para a superação dos problemas humanos e afirmam que “o diálogo é um meio para que comecemos a conhecer todas as muitas maneiras pelas quais nos interligamos e integramos uma única realidade compartilhada. Também é um meio para que percebamos a natureza contínua das mudanças que estão ocorrendo à nossa volta e de ajudar-nos a compreender e tirar significado daquilo que pode parecer uma desordem. O diálogo pode nos ajudar a ver os grandes padrões que permeiam nossas vidas cotidianas.”
O exercício do diálogo requer o desenvolvimento de algumas capacidades específicas como a suspensão de julgamento, o ato de ouvir e uma postura reflexiva. São atitudes e comportamentos que facilitam um processo dialógico. Ellinor e Gerard, por meio de suas experiências em organizações, perceberam algumas destas atitudes e comportamentos que tornam uma conversação mais criativa e transformadora, são elas:
- Desenvolver o diálogo focado em significado e aprendizagem compartilhados para permitir a aceitação de possibilidades diversas e obter respostas criativas às necessidades do grupo;
- Ouvir sem resistência, principalmente quando houver pontos de vista discordantes no grupo, para assimilar o significado das palavras dos outros;
- Liberar a necessidade de resultados específicos para evitar uma conversação convergente durante o processo, o que acaba induzindo os pensamentos para um único resultado e restringindo o poder de criação do diálogo;
- Valorizar as diversidades, respeitando as diferenças que sempre existem em todos os grupos e frequentemente separam as pessoas;
- Suspender papéis e status para permitir o ouvir e o falar abertamente e potencializar a contribuição das pessoas;
- Compartilhar responsabilidade e liderança no grupo em que os membros são estimulados a ouvir e responder de forma a garantir a participação de todos;
- Falar ao grupo e não direcionar a uma pessoa ou parte do grupo;
- Falar quando motivado, quando estiver realmente confiante de que sua participação será útil ao grupo. A pessoa se vê compelida a falar;
- Ir ao vivo, expressando o que sente e imagina no momento, estando atento aos pensamentos dos participantes e buscando ir além da compreensão do grupo;
- Equilibrar questionamento e defesa. Ambos são necessários para a sustentação do diálogo e a busca de significado compartilhado.
As atitudes e comportamentos identificados acima por Ellinor e Gerard representam novas posturas capazes de superar os conflitos, incompreensões e fundamentalismos ainda tão frequentes nas relações sociais. Constituem uma fonte criadora de uma verdadeira cultura de integração, aprendizagem, convivencialidade e mudança.
A origem da palavra DIÁLOGO está nas raízes gregas ”dia”, que significa ”através de”, e “logos”, que quer dizer “significado”. Ou seja, o vocábulo diálogo refere-se ao encontro das pessoas por meio dos significados que compartilham para compreenderem verdadeiramente umas às outras e estabelecerem um padrão de convivência alicerçado no respeito mútuo. Portanto, dialogamos quando conseguimos nos abstrair um pouco de nossas verdades para estarmos abertos à verdade dos outros – ampliando nossa compreensão da realidade, e assim construímos um novo pensamento capaz de atender às nossas necessidades individuais e coletivas. Como dizem o psicólogo John Briggs e o físico David Peat, “na medida em que os indivíduos – cada qual com sua própria criatividade auto-organizada – se agregam, eles abrem mão de alguns graus de liberdade, mas descobrem outros. Surge assim uma nova inteligência coletiva, um sistema aberto, imprevisível em relação a qualquer coisa que alguém pudesse esperar observando os indivíduos agindo apenas isoladamente” (do livro “A Sabedoria do Caos”).
Já a palavra DISCUSSÃO, método de comunicação mais encontrado no dia-a-dia, vem do latim “discutere” que significa fragmentar, reduzir a pedaços ou quebrar em partes. Ou seja, ao contrário do diálogo, é mais comum ver as pessoas se relacionarem e buscarem a solução de seus problemas por meio da discussão cujas raízes etimológicas são as mesmas das palavras “percussão” e “concussão” as quais querem dizer choque, embate, pancada etc. A comunicação via internet, por exemplo, está repleta de “fórum de discussão”, muito embora em alguns casos os participantes queiram mesmo é praticar o diálogo. E o uso inadequado da linguagem só dificulta ainda mais nossa capacidade de percepção da realidade complexa que nos cerca.
Diálogo | Discussão/Debate |
Ver o todo entre as partes | Desmembrar questões e problemas em partes. |
Ver as ligações entre as partes. | Ver distinções entre as partes. |
Questionar pressuposições. | Justificar/Defender pressuposições. |
Aprender através de questionamento e revelação. | Persuadir, vender e dizer. |
Criar significado compartilhado por muitos. | Chegar a um acordo sobre um significado. |
A linha da conversação.
Fonte: Ellinor e Gerard.
Portanto, enquanto o diálogo diz respeito ao ajuntamento ou descoberta de novos significados, a discussão refere-se à defesa de argumentos ou pressupostos individuais (vence o mais forte), refere-se assim ao desmembramento do todo em partes o que só tem gerado e reforçado a relação de dominação e preconceito nas relações entre pessoas. Como afirma Humberto Mariotti, o diálogo é “um método de reflexão conjunta e observação compartilhada da experiência” que nos permite ampliar nossa limitada compreensão individual de mundo.
Quando as pessoas interagem umas com as outras numa conversação com a intenção de chegar a um novo entendimento, elas têm que aprender a ver além dos seus julgamentos que condicionam as suas atitudes e limitam a capacidade de ouvir os outros. Para praticar o verdadeiro diálogo as pessoas devem buscar certo grau de isenção em relação aos seus julgamentos, tornando-se um observador neutro. Peter Senge intuiu muito bem a importância desta neutralidade ao perceber que “a visão de cada pessoa é uma perspectiva única de uma realidade mais ampla. Se eu puder ver com os seus olhos e você com os meus, cada um de nós verá algo que talvez não tivéssemos visto sozinhos.”
É importante lembrar que não se quer aqui afirmar que devemos agora sonhar com um mundo utópico, ou seja, ideal, sem discussão, competição, autoritarismos, egoísmo, exclusão, guerras, enfim, sem as linearidades, pois estas também são características da condição humana. Pelo contrário, devemos aceitar e aprender a conviver com estas manifestações que sempre existirão, mas tentando fazer com que estas contingências da nossa realidade não sejam hegemônicas como ocorre atualmente.
O ser humano, conforme as circunstâncias do meio vivido e toda a sua história de vida, escolhe viver de uma forma e, assim, constrói um mundo próprio e único – a sua verdade –, lugar onde encontra sentido para o seu viver, seja para o bem ou o mal. Logo, é melhor pensar que estes mundos têm muitos pontos positivos em comum e é por isso que a prática do diálogo se torna imprescindível para podermos descobrir os bons potenciais existentes em nossos relacionamentos. Assim, o diálogo representa, acima de tudo, criar as condições sociais necessárias para a renovação e melhoria contínua do ser humano e das sociedades. É isso que recomendam grandes pensadores como David Bohm, Paulo Freire, Peter Senge, Krishnamurti, Martin Buber, dentre outros.
Espero ter contribuído para um bom diálogo com o leitor, e para finalizar ofereço uma breve parábola que justifica muito bem a necessidade de dialogarmos cada vez mais:
“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.”
Fernando Pessoa
Antonio Sales Rios Neto é graduado em Engenharia Civil e pós-graduado em Consultoria Organizacional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Ocupa um cargo de Analista Judiciário no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. É colunista do site de jornalismo Outras Palavras e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. E-mail: antoniosalesrios@gmail.com