Para Lidar com o Erro, a Incerteza e a Ilusão

O Erro, a Incerteza e a Ilusão
(A necessidade de aprender a lidar com eles)


Humberto Mariotti

 

A estratégia, assim como o conhecimento, continua sendo a navegação em um oceano de incertezas entre arquipélagos de certezas. (…) Tudo o que inclui oportunidade inclui risco, e o pensamento deve reconhecer as oportunidades dos riscos como os riscos das oportunidades.

(Edgar Morin)

 

 

O objetivo deste texto é mostrar como o pensamento estratégico pode se beneficiar de aportes de muitas áreas diferentes do conhecimento. Trata-se, portanto, de um exercício transdisciplinar. Em parte ele se baseia nos trabalhos de Edgar Morin, em muitos dos quais é seguida essa mesma orientação. Em vários outros pontos, porém, acrescento idéias, comentários e posições pessoais.

O erro e a ilusão são inseparáveis do conhecimento. Todo conhecimento os inclui. O conhecimento não é um reflexo fiel da realidade, e sim uma “tradução” que dela fazemos por meio de nossas estruturas de percepção. É o que nos revelam as pesquisas da ciência cognitiva. Não conhecemos a realidade como ela é, mas sim o tanto que nossas estruturas perceptivas permitem que dela conheçamos.

Em outros termos, cada observador percebe o mundo externo segundo a sua capacidade cognitiva, isto é, de acordo com o modo como está preparado para percebê-lo. Por sua vez, o mundo externo também percebe o observador e o faz da maneira como está estruturado para isso. Por essa razão, a primeira atitude a tomar para reconhecer e – dentro do possível – atenuar nossos erros e ilusões e dificuldades de comunicação, é questionar  sempre os nossos conhecimentos, o modo como os adquirimos e seus resultados.

Para Morin, se todo conhecimento, por mais “exato” que seja, inclui graus variados de erro e ilusão, subestimar o erro é o maior dos erros. Na mesma linha, subestimar a ilusão é a maior das ilusões. Ainda na mesma ordem de idéias, imaginar que as comunicações são percebidas como foram emitidas é o maior dos erros de comunicação. 

O fato de percebermos o mundo não como ele é, mas sim como nossas estruturas de percepção nos permitem percebê-lo interfere de modo decisivo nas comunicações humanas. Há muito que os especialistas já se deram conta desse fenômeno. Ele os levou a concluir que o resultado final de uma determinada comunicação não é aquilo que é emitido pelo comunicador, mas sim o que chega aos receptores de sua mensagem. 

E cada receptor faz isso segundo a sua própria estrutura, isto é, à sua maneira. A essa noção importa adicionar o teorema de Shannon: “Uma mensagem enviada por meio de um canal qualquer sofre interferências no decurso da transmissão, de modo que à sua chegada parte das informações que ela continha é perdida.”1

Convém, portanto, não esquecer que qualquer comunicação ou mensagem está sujeita a “ruídos” e interferências imprevistas e aleatórias. Além disso, é preciso levar em conta a nossa tendência a nos identificarmos com nossas idéias, teorias, convicções e conhecimentos – com nossas “certezas”, enfim. Identificamo-nos a tal ponto com tais “certezas” que, quando as vemos questionadas, muitas vezes tomamos os questionamentos como ofensas pessoais. 

Daí decorre um fenômeno muito conhecido: as pessoas que nos são mais próximas, que nos conhecem melhor e portanto mais poderiam nos ajudar, com freqüência evitam questionar-nos, mesmo quando percebem que estamos errados ou iludidos. É óbvio que elas agem assim porque temem magoar-nos e abalar o relacionamento. Tudo isso junto pode alterar ou deturpar o conteúdo dos conhecimentos e  comunicações, o que com muitas vezes nos leva ao erro e à ilusão. 

De nossa identificação com nossas “certezas” participa também a dimensão emocional. Basarab Nicolescu observa que a efetividade pode prejudicar a afetividade e, é claro, a recíproca é verdadeira.2 Morin acrescenta que a afetividade pode fortalecer o conhecimento, mas também pode ser-lhe um estorvo. 

A esse propósito lembro um exemplo ocorrido com dois cientistas ilustres, Albert Einstein e Niels Bohr. Ao longo de muitas discussões sobre seus pontos de vista discordantes em relação à física quântica, os dois acabaram se afastando um do outro. Para tentar reaproximá-los, discípulos de ambos organizaram um evento de confraternização. 

O resultado foi oposto ao esperado: no local do evento, Einstein e Bohr se mantiveram separados e, cercados por seus respectivos discípulos, formaram dois grupos incomunicáveis. Outro exemplo não menos conhecido é o afastamento de Freud e Jung, causado por divergências em torno de suas respectivas teorias sobre a psique humana. Ambas as histórias ilustram a frase de Morin que diz que possuímos as idéias e somos possuídos por elas. 

O mesmo Morin, inspirado em Espinosa, também escreveu que nossa capacidade de ter emoções é indispensável para que assumamos atitudes racionais. Em outras palavras, para que haja racionalidade é necessária a participação das emoções. A razão que imagina poder descartar as emoções não produz racionalidade, mas sim racionalismo. 

É a racionalidade que nos permite o controle. A racionalização – que é conseqüência do racionalismo – nos dá apenas uma ilusão de domínio, ao tentar afastar a subjetividade, os sentimentos e as emoções. Ou seja: tenta eliminar o humano das ações humanas, ao  mesmo tempo em que se propõe a buscar benefícios para esse mesmo ser humano. 

A racionalidade reconhece que a subjetividade, os sentimentos e as emoções fazem parte da condição humana e dela não podem ser separadas. Esse reconhecimento implica aprender a lidar com as emoções, os sentimentos e a subjetividade, e fazer isso de tal maneira que eles não interfiram de modo perturbador em nossos pensamentos e ações.

A racionalidade reconhece as emoções e sabe da sua importância, mas não se deixa determinar apenas por elas. A racionalização é fechada, não aceita o diálogo nem os questionamentos. Tenta suprimir a afetividade em nome da efetividade. A racionalidade é aberta, aceita o diálogo e os questionamentos. Busca a efetividade sem descartar a afetividade. Procura usar a afetividade como fator de inspiração e motivação, não de anestesiamento e alienação. Como veremos a seguir, a racionalização é um dos mecanismos de defesa do ego.

Para aprender a lidar com o erro e a ilusão é necessário conhecer algo sobre o auto-engano. Todos nós temos, em grau maior ou menor, propensão ao auto-engano. Ele pode se manifestar sob as seguintes formas: a) auto-indulgência e autojustificação; b) nossa inclinação a esquecer aquilo que nos contraria, desafia ou questiona (esquecimentos seletivos ou de conveniência); c) nossa tendência a projetar nos outros aquilo que não queremos ver em nós mesmos (o que nos leva a atribuir grande parte de nossos problemas a causas externas); d) nossa inclinação a só ouvir o que queremos ouvir e a só ver o que queremos ver. 

Neste último caso – e como no exemplo há pouco citado –, com freqüência as pessoas que nos são próximas também tendem, pelas razões já mencionadas, a nos dizer o que queremos ouvir e a nos mostrar o que queremos ver. Como se sabe, esse procedimento é utilizado por áulicos e bajuladores em relação a líderes ou outras pessoas em posições de poder. Essa é uma das formas pelas quais muitos líderes se deixam manipular. Para tanto muito contribui, é claro, a vaidade humana. Costumo dizer que ninguém é mais fácil de manipular do que as pessoas muito vaidosas.

Os mecanismos do auto-engano já foram bem estudados sob a denominação conjunta de mecanismos de defesa do ego. Os psicoterapeutas estão bem familiarizados com eles, especial depois dos estudos de Anna Freud e Otto Fenichel.3 

Mas não custa mencioná-los aqui: a) a repressão busca afastar da consciência certos aspectos da realidade; b) a negação visa a fugir de determinados fatos ou sentimentos ignorando-os ou distorcendo-os; c) a racionalização procura explicar e recriar a realidade segundo a lógica linear e, por meio dela, criar argumentos de autojustificação; d) a formação reativa tenta redefinir a realidade invertendo-a; e) aprojeção tenta atribuir a outros – humanos ou não – nossas emoções, sentimentos e intenções; f) o isolamento pretende fragmentar a realidade para diminuir-lhe o impacto; g) a regressão imagina que é possível voltar a estágios de desenvolvimento anteriores, supostamente mais simples e menos exigentes. 

Hoje, vários autores com freqüência se referem a uma descoberta crucial da ciência cognitiva: não existe, em nosso cérebro, nenhuma estrutura ou função que nos permita fazer a distinção entre alucinação e percepção do real, sonho e realidade, imaginário e concreto. Sabemos que aquilo que é considerado real em uma determinada cultura pode ser visto como imaginário em outra. Do mesmo modo, o que é considerado real ou imaginário em uma cultura pode variar de acordo com circunstâncias políticas e/ou históricas dessa cultura. Vejamos alguns exemplos.

1. Stalin conseguiu convencer grande parte da população do império soviético de que era um governante justo e bondoso, sempre preocupado com o bem-estar de seus governados. A realidade só veio à tona bem depois – em especial após a sua morte –, quando ficou-se sabendo dos milhões de pessoas assassinadas de várias formas (confinamentos e execuções em campos de concentração, por exemplo) durante o governo do dito “Grande Pai” da União Soviética. Mesmo assim, stalinistas da Rússia, dos países da antiga URSS e de muitos outros países continuam até hoje agarrados às ilusões do stalinismo e do marxismo “científico”. É que observa, em outro contexto, o já citado Nicolescu: “Um simples fato experimental pode arruinar a mais bela teoria científica. Infelizmente, no mundo dos seres humanos, uma teoria sociológica, econômica ou política continua a existir apesar de múltiplos fatos que a contradizem.4 

2. Nessa mesma ordem de idéias, sabe-se que ainda hoje há quem tente negar o Holocausto, meio pelo qual o nazismo assassinou milhões de judeus, ciganos e membros de outras minorias durante a Segunda Guerra Mundial. 

3. Na época da guerra do Vietnã, o governo dos EUA, diante das evidências de sua derrota, declarou suas tropas vitoriosas e promoveu sua retirada.

Em outro texto5, examinei estudos que mostram que as teorias e ideologias se organizam em torno de um centro – o “núcleo duro” – e assim formam um “cinto de proteção” que o protege contra contestações e questionamentos. Quanto mais os contestadores se aproximam desse centro, mais os seguidores do sistema de idéias o defendem. Para tanto, usam argumentos cuja base é a suposta invulnerabilidade do próprio núcleo. 

Para lidar com o erro e a ilusão, Morin recomenda que usemos a racionalidade (não confundir com racionalização), e propõe os controles a seguir descritos.

Controle do ambiente. Vários pensadores já assinalaram que o mundo resiste à nossa presença. Não podemos mudá-lo apenas por meio do nosso desejo e de nossa imaginação. Embora o desejo e a imaginação sejam inspiradores, qualquer mudança só ocorre mediante investimentos de energia, recursos adequados e abordagens concretas. 

Por isso, o controle do ambiente requer respostas claras às seguintes perguntas: a) daquilo que é observável, o que pode ser mudado?; b) as mudanças devem ser primeiro no todo ou primeiro nas partes que o compõem?; c) os agentes de mudança têm poder para fazer as mudanças desejadas?; d) se não têm, que mudanças podem ser feitas com os recursos e poderes disponíveis?

Controle da prática. Deriva do anterior, e também da noção de que a seqüência conceitos -> práticas -> resultados não é linear como acaba de ser escrita aqui. Os resultados não são separados das práticas e dos conceitos. Ao contrário, conceitos, práticas e resultados interagem entre si em uma relação de circularidade: conceitos D práticas D resultados. Por isso, o controle da prática requer que a todo momento comparemos o que queremos (desejos), o que imaginamos (idéias e conceitos) e os resultados obtidos.

Controle da mente. Já sabemos que não existe, em nosso cérebro, nenhuma estrutura ou função que nos permita distinguir com clareza a alucinação da percepção do real, o sonho da realidade e o imaginário do concreto. Quem imagina que essas distinções são possíveis é vítima de uma ilusão denominada “realismo ingênuo”, que por sua vez gera a chamada “sabedoria convencional”. Já tratei desses dois aspectos em outros textos, nos quais o leitor encontrará detalhes.6  

O controle da mente deve ser exercido por meio da memória, auxiliada por operações lógicas. As perguntas a serem formuladas são: a) existem registros confiáveis, isto é, que resistam a uma análise feita com base em critérios claros?; b) estamos preparados para pensar de modo a ver as partes em separado sem perder de vista a noção de conjunto? Ou, ao contrário, pensar em termos de conjunto (pensar global) sem perder de vista as partes isoladas (pensar focal)?; c) estamos preparados para pensar em termos de curto prazo quando isso for necessário, e também em termos de longo prazo nos casos que isso for preciso?  

Esse tipo de preparação exige uma profunda mudança de modelos mentais, o que em muitos casos pode ser feito por meio de treinamentos especializados.7 

Atualmente, essa providencia é muito necessária. Eis o que mostrou um estudo confiável: “Hoje, apesar do rápido crescimento da concorrência, tanto nos mercados domésticos quanto nos internacionais, e da sempre crescente complexidade das negociações comerciais em escala global, há uma escassez de líderes globais especializados. (…) Uma pesquisa realizada entre as 500 maiores empresas da revistaFortune constatou que 85% dos entrevistados indicaram que suas companhias não tinham um nível suficiente de líderes globais.”8 

Esse mesmo estudo também apontou as principais características necessárias aos lideres globais: 

a) capacidade de inquirir (proatividade e busca de novas experiências); 
b) ligação emocional (racionalidade em vez de racionalismo); 
c) integridade (comportamento ético); 
d) capacidade de lidar com a incerteza (competências mencionadas neste texto); 
e) conhecimento organizacional e empresarial (pensamento estratégico, conhecimento das oportunidades de mercado, capacidade de lidar com desafios como diversidade cultural e de idiomas, legislações diversas, contextos geográficos variados, concepções diferentes de poder e política e assim por diante). 

Como se vê, os líderes de hoje precisam de muito mais do que as tradicionais habilidades e competências técnicas para o bom desempenho de suas funções. 

A incerteza pede o auxílio da estratégia. A constatação de que o mundo em que vivemos é incerto e sujeito à aleatoriedade e à imprevisibilidade nos chegou por meio das descobertas da microfísica, da termodinâmica, da cosmologia, da teoria da evolução (hoje enriquecida pela psicologia evolucionária), da ciência cognitiva, da neurociência e das pesquisas dos historiadores. A esse respeito, Morin escreveu: “O inesperado nos surpreende, mas o novo brota sem parar. Deve-se esperar o inesperado. Precisamos aprender a navegar num oceano de incertezas entre arquipélagos de certeza”.9

A tarefa de lidar com a incerteza, o inesperado e os imprevistos requer uma atitude estratégica. É ela que permite que modifiquemos nossas ações – e também nossas expectativas – ao longo do tempo. Morin lembra a frase de Eurípides (circa 480 a.C. – 406 d.C.), tragediógrafo da Grécia antiga: “O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre caminho”.10 E, seguindo Eurípides, acrescenta: “Deve-se esperar o inesperado. E, quando o inesperado se manifesta, é preciso que sejamos capazes de rever nossas teorias e idéias, e não deixar o fato novo entrar a fórceps em uma teoria incapaz de acolhê-lo”.11 

Para ter a capacidade de rever nossas idéias e teorias, é indispensável que sejamos racionais e não racionalistas. É preciso que sejamos capazes de aprender por adaptação. Isso implica saber que o aprendizado por adaptação é aquele que muda nossas estruturas de percepção e, em conseqüência, o nosso comportamento. O que, por sua vez, nos torna adaptáveis às mudanças, isto é resilientes. Costumo repetir uma sugestão que pode ajudar a abrir as portas para esse tipo de aprendizado: precisamos prestar sempre muita atenção àquilo que mais nos desafia, que mais nos questiona, que mais nos incomoda. É um meio útil de abertura para o novo, de aprender a esperar o inesperado.

Se permitirmos que a racionalização prevaleça sobre a racionalidade não seremos capazes desse tipo de aprendizado. Em conseqüência, diante das mudanças continuaremos a adotar os mesmos comportamentos de sempre e, portanto, a repetir os mesmos erros. Ser resiliente também significa não esquecer que esperar o inesperado é uma atitude estratégica. Ela deriva da convicção de que se o futuro é incerto, isso não quer dizer que devemos aguardá-lo passivamente. Ou, pior ainda, continuar agarrados aos mesmos modelos mentais do passado.

Para lidar com a incerteza são importantes duas disposições: a) buscar informações, selecioná-las, organizá-las e interligá-las; b) ter presente que as informações, mesmo quando vindas de muitas fontes e interligadas não são suficientes: é preciso que elas sejam situadas num contexto de espaço e tempo sobre o qual é necessário ter o máximo grau possível de clareza.

A essas  considerações, devemos acrescentar que é essencial agregar às informações buscadas, reunidas, interligadas e contextualizadas as características fundamentais da condição humana: de um lado, a racionalidade, a mente lógica; do outro, nossas emoções, e nossa tendência ao erro e à ilusão, que está ligada à nossa condição de seres contingenciados a conviver com a incerteza.

A ecologia da ação é um conceito que resulta da conclusão de que, por todas essas razões, a postura estratégica é indispensável. Ele foi desenvolvido por Morin e assim pode ser enunciado: “As ações com freqüência escapam ao controle de seus autores e produzem efeitos inesperados e às vezes até opostos aos esperados.” 

O conceito de ecologia da ação se refere a fenômenos do dia-a-dia. Baseia-se na constatação de que o curso dos acontecimentos não é linear e, portanto, inclui riscos e imprevistos. Seu enunciado e estudo podem a princípio parecer óbvios e desnecessários, mas a experiência mostra que não é assim. Quando colocado em contextos específicos, ele revela a sua utilidade. 

Morin propôs dois princípios para a ecologia da ação, que depois Lise Laférière ampliou para três. Vejamos cada um deles. 

1. O nível de maior eficácia de uma ação se verifica logo no início de seu desenvolvimento. 
2. Uma ação não depende apenas da intenção ou intenções de seu autor: ela também depende das condições do ambiente em que se desenrola. 
3. A longo prazo, os efeitos de uma determinada ação são imprevisíveis.  

Ainda segundo Morin, a ecologia da ação pode ser compreendida em termos de três circuitos:  

1. O circuito risco-precaução. Pode também ser chamado de circuito audácia-prudência. Em termos estratégicos, antes de qualquer ação é preciso avaliar bem os fatores que nos levam a ser audaciosos e os que nos levam a ser prudentes. São grupos de fatores antagônicos, mas nem por isso devemos deixar de considerá-los juntos e em interação. 

Morin lembra as palavras de Péricles, citado por Tucídides em sua obra A guerra do Peloponeso: “Todos sabemos ao mesmo tempo demonstrar extrema audácia e nada empreender sem madura reflexão”.12 Estamos, portanto, diante de um dos princípios essenciais do pensamento complexo, que estabelece que em determinados casos é necessária a convivência de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares. Imaginemos uma balança. 

No prato da audácia, colocamos as intenções de ação. No prato da prudência, pomos as intenções de reflexão. A tomada de decisões e sua implementação requer que o fiel dessa balança penda um pouco para o lado da audácia. Porém, quanto mais o fiel se afastar do centro na direção da audácia, mais ousadas serão as decisões e as ações dela decorrentes – e, portanto, maior o risco. O prato da prudência se contrapõe ao da audácia. É ele que avalia os riscos, mas é o lado da audácia que leva às ações. Do jogo entre a prudência e a audácia emerge o ânimo estratégico que leva à tomada de decisões e ações ponderadas.

2. O circuito fins/meios. Como os meios e os fins estão em constante interação, é quase inevitável que em muitos casos meios condenáveis a serviço de fins meritórios pervertam estes e acabem por tomar-lhes o lugar. Por outro lado, como acentua Morin, é possível que ações perversas levem a resultados felizes, justo pelas reações que suscitam. Além disso, sabemos que efeitos perversos inesperados podem ser mais intensos do que os efeitos benéficos esperados. Em muitas regiões do mundo, por exemplo, a poluição industrial superou os benefícios econômicos da industrialização.

3. O circuito ação/contexto. Já o conhecemos: a partir de um determinado momento e de um dado contexto de espaço, a ação já não mais está sob o controle de seu autor. Nesses momentos e contextos ela cai em um environment, no qual interage com outras ações interações e retroações. Estas podem fazer com que ela se desvie o seu sentido inicial e, como também já sabemos, até mesmo voltar-se contra o seu autor. A esse propósito, Morin cita um exemplo histórico bem conhecido: a revolução russa de 1917 provocou não a ditadura do proletariado, como a princípio se proclamou, mas a ditadura sobre o proletariado. 

Dessa forma, quando pensamos em ecologia da ação é de boa estratégia considerar três círculos. O primeiro é o contexto espaço-temporal imediato, no qual o autor da ação ainda exerce controle sobre ela. Podemos chamá-lo de círculo do controle. O segundo círculo é aquele em que a ação entra no environment já mencionado. Nesse meio ambiente, como já vimos, ela interage com outras ações de múltiplas origens, espécies e orientações. Podemos chamá-lo de círculo das interações. O terceiro círculo ilustra o terceiro princípio da ecologia da ação: a longo prazo, as conseqüências de uma ação são imprevisíveis. Podemos chamá-lo de círculo da imprevisibilidade.

Conclui-se, assim, que quanto mais uma ação se distancia de seu autor mais aumentam o riscos por ela gerados e enfrentados. Na mesma medida, quanto mais ela se afasta do círculo do controle, mais diminui a eficácia das providências tomadas para diminuir esses riscos. Esse efeito pode ser atenuado de várias maneiras. Entre elas é importante um maior aporte possível de informações confiáveis.

Vejamos alguns exemplos da ecologia da ação e seus princípios.

1. O exemplo clássico é a história do cavalo de Tróia. Como se sabe, a decisão dos troianos de trazer para dentro das muralhas a cidade o grande cavalo de madeira deixado fora dela pelos gregos – e cheio de soldados – resultou na queda da cidade.13

2. Muitas vezes, a correção dos resultados indesejáveis de uma ação pode ser mal influenciada pelo excesso de otimismo, voluntarismo e onipotência de seu autor. Essas características podem dificultar – ou mesmo impedir – que ele perceba que sua ação já se modificou e que essas modificações, por sua vez, estão sujeitas a influências de numerosas variáveis. Para exemplificá-las, retomemos um exemplo citado há pouco: os líderes são com freqüência influenciados por seus assessores e por outras pessoas, grupos e instituições – o que acaba distorcendo algumas de suas percepções, posturas e ações.

3. Outro exemplo é a definição de economia segundo Morin: “É a ciência social matematicamente mais avançada. E também é a ciência social humanamente mais atrasada, porque se abstraiu das condições sociais, políticas, psicológicas e ecológicas inseparáveis das atividades econômicas. É por isso que seus peritos são cada vez mais incapazes de interpretar as causas e conseqüências das perturbações monetárias e das bolsas e de prever o curso econômico, mesmo a curto prazo. Assim, o erro econômico tornou-se a primeira conseqüência da ciência econômica”14

4. Por fim, lembremos o princípio de Pareto, cujo enunciado é o seguinte: 20% das ações resultam em 80% dos resultados ou, ao contrário, 80% dos resultados decorrem de 20% das ações. Isso quer dizer que a maioria das ações iniciadas com o objetivo de produzir determinados resultados se perdem e se dissolvem na imprevisibilidade do ambiente. Se assim não fosse, 100% das ações resultariam em 100% de resultados. 

Nas empresas, é comum a observação de que 20% das pessoas são responsáveis por 80% dos problemas. O contrário é verdadeiro: 20% das pessoas são responsáveis pela solução de 80% dos problemas. Em termos de linha de produtos, é bem conhecida a constatação de que 20% dos produtos são responsáveis por 80% do faturamento. O mesmo é válido em muitos outros contextos, como as obras de um escritor, o repertório de um músico, a programação de uma estação de rádio ou TV e assim por diante.  

Tudo visto, é possível chegar às seguintes conclusões: a) conhecer a ecologia da ação ajuda a tomar decisões; b) uma ação, por mais simples e breve que seja, não deve ser deixada à sua própria sorte. Dado que ela cedo ou tarde se vê às voltas com inúmeros encontros, desencontros, acidentes, imprevistos e muitas outras variáveis, precisamos estar preparados para corrigi-los ou ao menos atenuá-los. 

Para tanto, o autor da ação deve aprender a reconhecer e acompanhar esses fatores e estar alerta para tudo o que possa interferir nesse reconhecimento e acompanhamento. Essa é uma posição estratégica. A estratégia ajuda a construir cenários que podem resultar em novas ações. Essa construção é antecedida pela avaliação das informações confiáveis disponíveis e do grau de incerteza do contexto e das circunstâncias. 

Ao longo do tempo sempre surgem fatos novos, mais informações são conseguidas e aparecem novas ameaças e oportunidades. Por isso as ações, sua evolução e seus desdobramentos precisam ser reexaminados e reavaliados a intervalos regulares. Estes, segundo o caso, podem ser traduzidos em minutos ou segundos, dias, meses e anos. Vejamos alguns exemplos de como isso pode ser feito: 

1. Ao acompanhar segundo a segundo a trajetória dos foguetes que lança, a NASA pode agir de imediato se for verificado que um deles saiu da trajetória planejada. Quando isso acontece – e na impossibilidade de corrigir o curso – os engenheiros abortam o lançamento por meio de outro foguete, cuja função é destruir o que foi lançado.15 

2. Em 1982, nos EUA, o laboratório farmacêutico Johnson & Johnson foi avisado de que uma quantidade indeterminada de um dos medicamentos de sua fabricação – o Tylenol em cápsulas – continha cianureto. Na área de Chicago, sete pessoas morreram após a ingestão dessas cápsulas. 

A decisão da empresa foi realizar de imediato um gigantesco recall: em todo o país foram recolhidos 31 milhões de frascos de Tylenol, no valor de 100 milhões de dólares. Além disso, a empresa utilizou a mídia para divulgar informações que alertassem o público sobre o acontecido, o que incluiu a oferta de troca de todos os frascos já comercializados e a colocação no mercado de embalagens à prova de adulteração. Todas essas medidas foram realizadas por executivos da empresa em todo o território dos EUA, sem que houvesse necessidade de interconsultas nem de orientação centralizada.16 Como se vê, esses executivos fizeram suas intervenções enquanto os resultados da ação criminosa de adulteração do Tylenol ainda estavam dentro do círculo de controle. 

3. Muitas empresas costumam fazer pré-lançamentos ou lançamentos localizados de novos produtos e/ou serviços, que podem ser logo descontinuados caso a reação inicial do público não seja promissora. 

4. O mesmo ocorre com lançamentos tentativos de candidaturas políticas. Esses “balões de ensaio” são também utilizados com muitas outras finalidades e podem ser suprimidos, caso não haja receptividade por parte do público-alvo. O mesmo é válido para os planos-piloto de várias naturezas.

Sabemos que Morin foi muito influenciado por Pascal. Desse filosofo francês ele tirou a idéia de aposta. Já falei sobre ela em um ensaio e em um livro17, de modo que no momento é suficiente lembrar alguns pontos essenciais: a) primeiro refletimos, depois escolhemos o que fazer e a seguir depois pomos nossas decisões em prática; b) como não podemos prever o futuro, as decisões e as ações delas oriundas são, no fundo, apostas; c) toda aposta se baseia em algum tipo de fé, crença ou expectativa. 

No fundo a estratégia é uma aposta que, no entanto, não nos autoriza a assumir riscos de maneira irresponsável e ignorar o que está planejado. Ela deve permear sempre as nossas programações, por mais detalhadas e fundamentadas que sejam. A estratégia é, por excelência, uma atitude ligada ao pensamento complexo. Procura aprender com o jogo entre a prudência e a audácia, que, por meio dela, deixam de ser opostos mutuamente excludentes e passam a ser opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares.

© Humberto Mariotti 2007

Notas

1 CLAUDE E. SHANNON; Warren Weaver.  The mathematical theory of communication. Urbana, Illinois:  University of Illinois Press, 1949.
2 BASARAB  NICOLESCU. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999, p. 86-87.
3 Para uma exposição sucinta porém didática dos mecanismos de defesa do ego, ver: JAMES  FADIMAN e ROBERT  FRAGER. Teorias da personalidade.  São Paulo:  Harbra, 1986, p. 19 e ss.
4 NICOLESCU. O manifesto da transdisciplinaridade, op. cit.,  p. 25.
5 HUMBERTO MARIOTTI. As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena, 2000, p. 126.
6 Id., ibid.,  p. 111. 
– HUMBERTO MARIOTTI. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentado. São Paulo: Atlas, 2007, p. 12.
7 Para um bom estudo sobre o tema mudança de modelos mentais ver: HOWARD GARDNER. Mentes que mudam: a arte e a ciência de mudar as nossas idéias e as dos outros. Porto Alegre: Artmed/Bookman, 2005.
8JAMES L. GIBSON ; John M. Ivancevich; James H. Donnely, Jr.; Robert Konopaske. Organizações: comportamento, estrutura e processos. São Paulo : McGraw-Hill, 2006, p. 317.
9 EDGAR MORIN. Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur. Paris: Seuil, 2000, p. 14.
10 Id, ibid, p. 14.
11 Id., ibid., 31
12 Id., ibid., p. 97.
13 BARBARA TUCHMAN. The march of folly: from Troy to Vietnam. Londres: Abacus, 1999, p. 42 e ss.
14 MORIN. Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur, op. cit., p. 43.
15 EDGAR MORIN. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre; Sulina, 2005, p. 81.
16 GIBSON et al. Organizações: comportamento, estrutura e processos, op. cit., p. 353.
17 HUMBERTO MARIOTTI. “A  razão  do  coração  e  o  coração  da  razão: Blaise Pascal e o pensamento complexo”. <www.geocities.com/pluriversu>
_____. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. Op. cit., p. 103.

© Humberto Mariotti 2007

HUMBERTO MARIOTTI é professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor em desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da Complexidade da Business School São Paulo.