A verdadeira viagem da
descoberta não é achar novas terras,
mas ver o território com novos olhos.
(Marcel Proust)
Este capítulo é intencionalmente didático, pois não devemos
perder de vista que ele faz parte de um livro escrito para
não-especialistas.
Contudo, convém lembrar mais uma vez a frase de Einstein: é importante
tornar
tudo tão simples quanto possível, porém não mais simples. Não poderia
ser de
outro modo, aliás, quando se procura resposta para a pergunta tantas
vezes
formulada: afinal, como pôr em prática o pensamento complexo? É o que
procurarei fazer em seguida.
Vejamos algumas das características
do “trabalhar para
pensar bem”, isto é, da prática do pensamento complexo segundo Morin:
- religa saberes separados e
dispersos;
- desfaz o fechamento dos conhecimentos em disciplinas
estanques;
- procura reunir as disciplinas que foram separadas
(interdisciplinaridade,
transdisciplinaridade);
- inclui um método para lidar com a complexidade;
- busca a circularidade entre a análise (a disjunção) e a
síntese (a religação);
- reconhece que existe multiplicidade na unidade e
vice-versa;
- ultrapassa o reducionismo e o “holismo” e reconhece a
circularidade entre as partes e o todo;
- reconhece que o cálculo, a quantificação e a mensuração
são indispensáveis como meios de conhecimento;
- admite e procura lidar com a incerteza, a aleatoriedade, a
imprevisibilidade e as contradições;
- concebe e aceita a dialógica, que inclui e ultrapassa
lógica clássica;
- compreende a autonomia, a individualidade, a idéia de
sujeito e a consciência humana;
- chega às suas conclusões e diagnósticos tendo em conta o
contexto e a relação entre o local e o global;
- busca sempre a consciência de solidariedade e
responsabilidade;
- tem sempre em mente a necessidade de aprender a lidar com
o auto-engano, os esquecimentos seletivos, a autojustificação e a
auto-indulgência.[iii]
Os operadores cognitivos têm sido
apresentados de vários
formas. As que mostrarei a seguir resultam do meu trabalho de
exposição,
interpretação, adaptação e complementação das idéias de Morin. Não se
deve
imaginá-los isolados uns dos outros. Também não se deve pensar que um
deles
seja mais ou menos eficaz. Ao contrário, todos estão interligados e
atuam de modo
sinérgico, embora em determinadas circunstâncias seja preferível
utilizar um ou
outro.
O aprendizado do uso desses conceitos
pode ser comparado ao
da música. No início, é como tocar um instrumento lendo a partitura.
Com a
prática, porém, a partitura se torna dispensável e a peça e sua
execução passam
a fazer parte da própria natureza do executante.
Vistos por esse ângulo, os operadores
são também
instrumentos de autoconhecimento: capacitam-nos a pensar, a refletir, a
considerar os múltiplos aspectos de uma mesma realidade. Permitem
sobretudo a
busca e o estabelecimento das ligações entre objetos, fatos, dados ou
situações
que parecem não ter conexões entre si. Possibilitam que entendamos como
as
coisas podem influenciar umas às outras e que propriedades ou idéias
novas
podem emergir dessas interações. Trata-se, pois, de instrumentos de
articulação, que nos ajudam a sair da linearidade habitual e enriquecem
nossa
capacidade de encontrar soluções, desenhar cenários e tomar decisões.
Devolvem-nos uma visão que havíamos perdido ao longo de pelo menos três
séculos
de pensamento fragmentado.
CIRCULARIDADE
Enunciado:
“Os
efeitos retroagem sobre as causas e as realimentam.”
Apresentação
A circularidade (ou recursividade) é
o operador fundamental.
Os demais estão muito ligados a ele. Como acabamos de ver, são
variantes, modos
diferentes de apresentação de um mesmo fenômeno. Neste texto, o leitor
perceberá que muitos dos exemplos apresentados se referem a mais de um
operador. Pode-se até dizer que a circularidade é o único conceito
operacional
do pensamento complexo, e que os outros cinco são maneiras diversas
pelas quais
ele se manifesta. Porém, por motivos didáticos, é necessário falar
deles em
separado.
Já vimos que em muitos casos é
indispensável substituir a
noção de causalidade linear (causa " efeito) pela idéia de relação
circular, não-linear, entre causa e efeito. Esse é o principal
movimento do
pensamento complexo. Se o utilizarmos com freqüência, nossa noção de
processos
e resultados se modificará de modo significativo.
Sabemos que a circularidade está
ligada a duas idéias
essenciais. A primeira delas é a cibernética, introduzida por Norbert
Wiener. A
segunda é a teoria dos sistemas, desenvolvida por Ludwig von
Bertalanffy. Do
ponto de vista do pensamento linear-binário, a relação causa-efeito se
resume a
dois momentos: princípio e fim. Esse modo de pensar exprime, por
exemplo, um
dos fundamentos da medicina mecanicista: eliminando-se a causa
suprime-se o
efeito. Tal concepção funciona mais ou menos bem em certos casos, em
especial
na eliminação de sintomas. Mas está longe de poder ser generalizada,
pois a
maioria das doenças não pode ser compreendida nem muito menos tratada
com base
no conceito de causalidade única. Além disso, como se sabe, o
tratamento
sintomático é importante, mas na maioria das vezes não resolve o
problema.
Não há fenômeno de causa única no
mundo natural nem no
cultural. Onde houver seres vivos as relações serão sempre circulares.
Por mais
que pareçam lineares, elas são não-lineares: os efeitos retroagem sobre
as causas e as
realimentam. Com isso são
corrigidos desvios, o que faz com que os ciclos se mantenham em
funcionamento e
os sistemas se conservem vivos. O
mesmo
raciocínio se aplica a sistemas não-vivos. Vimos que a esse mecanismo
Wiener
chamou de feedback (retro-alimentação). À disciplina criada com esse
conceito
ele denominou de cibernética, que pode ser definida como a ciência que
estuda
os sistemas de controle. Aqui a palavra “controle” deve ser entendida
no
sentido de “manutenção de um rumo”.
Os sistemas cibernéticos são
circulares e auto-reguladores.
Seu funcionamento se dá pela constante adaptação ao ambiente, que por
sua vez
(no caso de seres vivos) se adapta a eles. A circularidade, ou
feedback, traduz
a capacidade de um sistema para manter-se em equilíbrio diante das
variações do
meio. Permite comparar sempre os resultados de uma ação com um modelo
pré-estabelecido. É, pois, indispensável ao controle de processos. Em
casos de
desvios ou imprevistos, o sistema de regulação entra em jogo e faz com
que o
padrão funcional desejado seja mantido. No caso das relações
interpessoais, o
feedback tem um papel essencial. Para que tais relações se mantenham
harmoniosas, é necessário que as pessoas troquem informações entre si.
Esse
intercâmbio define e estabiliza os comportamentos e com eles o clima
grupal. Se
a conduta de alguém fugir ao modelo consensual de convivência, seus
companheiros podem dar-lhe feedbacks sob a forma de críticas,
aconselhamento ou
atitudes semelhantes.
O feedback é um fator de equilíbrio
dinâmico. Quando
negativo, ele é contrário ao modo atual de funcionamento de um
determinado
sistema. Quando é positivo, tende a manter esse funcionamento. Nesse
sentido, o
feedback negativo procura corrigir e o positivo visa a conservar. Neste
último
caso, muitas vezes as coisas tendem a continuar como estão, o que pode
levar à
improdutividade e falta de adaptabilidade do sistema. Em termos de
relações
humanas, na primeira hipótese fica evidente a necessidade de
intervenções
críticas, do debate e do diálogo para a manutenção da circularidade
produtiva.
Para tanto é indispensável manter a pluralidade e a diversidade. Mas é
preciso
evitar que a crítica seja transformada em atitude freqüente demais ou
única,
pois nesses casos ela pode gerar comportamentos defensivos e, assim,
produzir
efeitos opostos aos pretendidos.
Exemplos
1. O funcionamento do cérebro faz
emergir os processos
mentais. Por meio da linguagem e de outras formas de comunicação eles
chegam à
sociedade sob a forma de idéias e ações, e lá interagem com os
processos de
outras mentes. Desse modo constrói-se a mente social, que por sua vez
retroage
sobre as mentes individuais. Estabelece-se uma recursividade, isto é,
uma
circularidade por meio da qual é produzida a cultura. As sociedades, os
indivíduos e as culturas são fenômenos que emergem dessa circularidade.
Mudanças nos indivíduos mudam a sociedade e mudam a cultura. O caminho
inverso
também é verdadeiro.
Se o indivíduo vive numa sociedade ou
trabalha numa empresa
que respeitam as diferenças e a diversidade, o convívio social gerará
comportamentos diferenciados. O debate e o diálogo serão estimulados e
tudo
isso será uma fonte de idéias novas e mudanças positivas. Trata-se de
uma
sociedade ou empresa auto-produtoras. Se o indivíduo vive numa
sociedade ou
trabalha numa empresa autoritária e, portanto, avessas às diferenças e
à
diversidade, o convívio social gerará comportamentos padronizados e o
diálogo
será desestimulado. O resultado será um grande aumento da resistência
natural à
mudança, com a conseqüente diminuição da criatividade e escassez de
idéias
novas. Trata-se de uma sociedade ou
empresa que se limitam a reproduzir modelos prévios. Sua
improdutividade
as condena à desagregação, porque elas não conseguem se auto-organizar.
2. Tomemos o conceito de liderança
desenvolvido por Dave
Ulrich, Jack Zenger e Norm Smallwood.[iv] Esses autores o apresentam
por meio
de uma fórmula:
Liderança eficaz = atributos x
resultados
Segundo essa concepção, os resultados
existem por causa dos
atributos dos líderes. Por sua vez, a existência dos atributos gera os
resultados. Os atributos da liderança produzem resultados e os
resultados
existem por causa dos atributos da liderança. As polaridades
“resultados” e
“atributos” interagem e compõem um círculo virtuoso. Estamos, pois,
diante de
uma recursividade, uma circularidade produtiva.
3. Outro exemplo interessante, que já
havia sido notado por
Douglas McGregor[v] é a relação entre os líderes e os liderados. Ela
não é
linear, no sentido de que o líder só influencia e os liderados só são
influenciados. É circular: os líderes influenciam os liderados e os
liderados
influenciam os líderes. Não se trata de uma relação em que um age e os
outros
recebem passivamente a ação, mas sim de uma circularidade complexa, na
qual
intervêm variáveis que estão num lado, no outro e no ambiente. Pode-se
dizer
que o relacionamento entre líderes e liderados é congruente. O líder se
ajusta
aos liderados, que se ajustam aos líderes.
Cabe então a pergunta: onde ocorre o
fenômeno da liderança?
Para respondê-la, costumo recorrer a um exercício baseado numa idéia do
filósofo irlandês George Berkeley.[vi] O exercício consiste em fazer a
um grupo
a seguinte pergunta: onde está o gosto da maçã, na fruta ou na boca de
quem a
come? A resposta de Berkeley é muito simples, e antecipou em três
séculos uma
das características essenciais da teoria dos sistemas: o gosto não está
na
boca, pois esta por si só não pode ter paladar algum; também não pode
estar na
maçã, pois ela quando isolada também não pode ter sabor algum. O gosto
surge no
contato entre a boca e a maçã. Ele é sentido por quem come, mas é
produzido na
relação. É uma propriedade ou fenômeno emergente.
No entanto, no exercício poucos
participantes conseguem
chegar com facilidade a essa conclusão. Em geral, as pessoas têm essa
dificuldade porque estão mais preocupadas com as partes do sistema (a
boca ou a
maçã) e não pensam na relação entre elas. Do mesmo modo a liderança é
um
fenômeno emergente, que surge da interação de líderes e liderados. Essa
é uma
das principais características de um sistema: a produção de fenômenos
novos (os
fenômenos emergentes) por meio da articulação e da interação de seus
componentes.
4. A idéia de circularidade produtiva
foi aplicada à
pesquisa motivacional nas empresas pelo psicólogo social Rensis
Likert.[vii]
Seu raciocínio pode ser assim descrito: a motivação produz
comportamentos; os
comportamentos produzem variáveis; as variáveis são mensuradas; os
resultados
das mensurações levam à redefinição das condições de trabalho; estas
levam a
melhorias de comportamento, as quais levam a um reforço da motivação.
5. A idéia de circularidade pode
ampliar a noção de
resultados. Vejamos como. Como se sabe, muitas das atividades humanas
podem ser
expressas por meio da seqüência:
Conceitos
->
Técnicas -> Resultados[viii]
Num primeiro instante, o modo linear
como ela é apresentada
nos leva a vê-la como um processo que tem começo, meio e fim. Ou, com
mais
freqüência, leva-nos a considerar seus termos em separado: é como se
conceitos,
técnicas e resultados nada tivessem em comum.
De fato, há os que se preocupam só
com os conceitos. Ao
adotar essa orientação, não levam em conta as técnicas nem os
resultados.
Reduzir tudo a conceitos é limitar-se a uma visão de mundo teórica e
especulativa. Há também quem se limite a utilizar técnicas, sem se
preocupar
com os conceitos que as produziram e sem tomar o cuidado de verificar
seus
resultados. São pessoas operacionais. Em geral, elas não têm a
capacidade
reflexiva que só a familiaridade com as teorias e os conceitos pode
proporcionar. Por outro lado, o desinteresse pelos resultados faz com
que a
execução das técnicas não seja motivadora. Por isso, é pouco provável
que haja
um grau significativo de comprometimento ou responsabilidade em relação
a eles.
Existe ainda um terceiro grupo,
composto por aqueles que só
se interessam pelos resultados. São pessoas para quem os fins
justificam os
meios. Não se pode esperar que elas tenham muitas idéias sobre como
melhorar os
resultados, pois sua excessiva preocupação com os fins faz com que
desconsiderem os conceitos e as técnicas. Isto é: perdem a noção de
começo e de
meio. Costumam imaginar que tudo já vem pronto, e por isso não têm como
avaliar
os esforços dos que participam do processo. Mesmo no caso de pessoas
que se
preocupam com a seqüência inteira, o fato de elas a verem como algo que
tem
começo meio e fim dificulta ou impede que tenham novas idéias sobre
como
melhorá-la. Por isso, limitam-se a repetir sempre a mesma linearidade.
No
entanto, se formarmos um sistema com os seus componentes, as coisas se
modificam muito, como se vê no diagrama abaixo:
Conceitos <=> Técnicas
<=> Resultados
Mas isso não é tudo. Como mostra o
segundo diagrama, já não
estamos diante de uma seqüência linear, mas sim da circularidade e das
conexões
de um sistema. Por isso, torna-se claro que além de intervir na
elaboração dos
conceitos, na execução das técnicas e na obtenção e avaliação dos
resultados,
podemos também intervir nos pontos em que esses três elementos se
articulam. A
experiência mostra que quando se atua nessas interligações o sistema
inteiro
pode ser modificado. Para fazer essas intervenções, é preciso
desenvolver a
habilidade de lidar com a totalidade sem perder de vista as partes, que
é
típica do pensamento complexo. É o que se consegue por meio dos
operadores
cognitivos.
AUTOPRODUÇÃO
Enunciado
“Os
seres vivos produzem, eles próprios, os elementos que os
constituem e se auto-organizam por meio desse processo.”
Apresentação
Os sistemas vivos produzem e
organizam a si próprios. São
portanto autoprodutores e auto-organizadores. De fato, sabe-se que ao
longo da
vida as células de nossos organismos morrem e logo são substituídas por
outras.
É o que se observa de forma espontânea e também na cicatrização de
ferimentos e
na consolidação de fraturas. Por isso, diz-se que somos ao mesmo tempo
produtores e produtos. Esse princípio vale para todos os seres vivos e
seus
ambientes. Os grupos, as organizações e as instituições humanas não são
exceção.
Assim, pode-se dizer que os sistemas
vivos são autônomos. No
entanto, como vimos antes, para manter essa condição eles dependem de
elementos
que estão no meio ambiente: ar, água, alimentos, informação e a
convivência com
mais seres vivos de sua própria espécie e de outras. Em vista disso, é
possível
dizer que o seres vivos são autônomos mas não independentes. De modo
paradoxal,
são ao mesmo tempo autônomos e dependentes. A essa condição, Morin deu
o nome
de paradoxo autonomia-dependência.
Em outros termos, os seres vivos são
autônomos
(autoprodutores, auto-organizadores), mas dependem do ambiente em que
vivem. A
relação entre eles e o ambiente é de dependência mútua. No século 6o.
a. C.,
Heráclito de Éfeso já se referia a esse fenômeno. Lembremos um de seus
fragmentos: “Para os ventos, morte vem a ser água; para a água, morte
vem a ser
terra; mas da terra nasce água, da água vento”.[ix] O filósofo
neoplatônico Plotino,
nascido em 205 d.C., acrescenta que aquilo que os corpos produzem é uma
reprodução de si mesmos.[x] Bem depois de Heráclito e Plotino, a
autoprodução e
a auto-organização surgem nas idéias de vários pensadores importantes
como
Espinosa e Kant.
Assim, a realidade não é uma coisa: é
um processo que se
autoproduz. Com base em observações como essa, já no século 19 Claude
Bernard
havia concluído que as condições da vida não estão nem no organismo nem
no meio
exterior, mas nos dois ao mesmo tempo. O meio produz alterações
contínuas na
estrutura dos sistemas e estes, por sua vez, atuam sobre o meio e o
modificam
também de modo incessante. Trata-se de um caminho de duas vias ou,
melhor
dizendo, de uma relação circular.
Exemplos
1. A convivência dos indivíduos
constitui a sociedade. A
convivência das empresas compõe o mercado. A sociedade e o mercado, por
sua
vez, proporcionam aos indivíduos e às empresas uma série de condições
que lhes
possibilitam viver e produzir. Por outro lado, impõem-lhes restrições,
regras,
regulamentos, que se traduzem na legislação, na cobrança de impostos e
assim
por diante.
O indivíduo depende da sociedade, mas
ela também depende do
indivíduo. As empresas dependem do mercado, mas este também depende das
empresas. Em conseqüência, um excesso de desordem (a escassez ou falta
de
regulamentos, indicadores, regras claras) resultará em baixa
produtividade das
organizações e em também em má qualidade de vida para as pessoas. Por
outro
lado, um excesso de ordem, de regras rígidas e o cerceamento das
liberdades
resultarão em baixa criatividade, pouca produtividade e, por fim,
levarão à
implosão do sistema. Foi o que aconteceu na União Soviética e em outros
sistemas ditatoriais.
2. Na condição de sistemas autônomos,
os seres vivos
determinam o seu comportamento com base em seus referenciais internos,
isto é,
com base em sua estrutura e no modo como interagem com o ambiente. Como
indivíduos autônomos, precisamos competir para manter a nossa
autonomia; como
indivíduos dependentes, é necessário que cooperemos para conservar essa
mesma
autonomia. Como autônomos-dependentes, precisamos competir e cooperar.
Há
momentos em que é necessário competir e momentos em que é necessário
cooperar.
Como as empresas são compostas de pessoas, é claro que esse raciocínio
se
aplica ao âmbito organizacional. Vista dessa maneira, a competitividade
passa a
ser uma manifestação de competência e não de competição predatória.
O
OPERADOR DIALÓGICO
Enunciado
“Há
contradições que não podem ser resolvidas. Isso
significa que existem opostos que são ao mesmo tempo antagônicos e
complementares.”
Apresentação
A palavra “dialética” significa
conversação, diálogo entre
posições contrárias. Para Hegel, toda idéia é uma tese, que provoca o
surgimento de outra que lhe é oposta – uma antítese. Do embate entre as
duas
surge a síntese, que é a resolução da contradição. A síntese é o
resultado da
superação da tensão entre os opostos tese e antítese. Na concepção
hegeliana,
as contradições sempre encontram solução: não são insuperáveis e cedo
ou tarde
se conciliam numa unidade que lhes é superior. As oposições vistas como
insuperáveis (os paradoxos) seriam estados de transição, que cedo ou
tarde se
resolveriam em sínteses.
A palavra “dialógica” significa que
há contradições que não
se resolvem. Nelas, a tensão do antagonismo é persistente. Tais casos
fazem
parte da complexidade natural do mundo e de seus fenômenos. Morin
observa que
nem sempre é possível nem necessário resolver todas as contradições. Há
muitos
casos em que é preciso conviver com elas. São estados paradoxais,
inerentes à
natureza dos sistemas vivos, e tentar resolvê-los por eliminação além
de inútil
seria um desperdício de energia mental. São, enfim, opostos ao mesmo
tempo
antagônicos e complementares..
Um exemplo óbvio é a concorrência.
Como mostra a prática, os
concorrentes que mais nos antagonizam, que mais nos incomodam, são
aqueles que
não devem ser eliminados, pois sua existência é uma fonte constante de
estímulo
e ensinamentos. Afastá-los produziria um desequilíbrio que mais cedo ou
mais
tarde diminuiria nossa criatividade e, portanto, nossa competência.
Pretender
superar as contradições que não podem ser superadas além de ingênuo é
inútil e
pode ser prejudicial. Como diz Morin, nos lugares e momentos em que não
é
possível superar as contradições, vencer os antagonismos e ultrapassar
os
paradoxos, lá é que está a complexidade.
Para reconhecer essas situações e
aprender a lidar com elas,
é necessário usar o modo dialógico de pensar, o operador dialógico. É
claro que
ele não pretende substituir a dialética: seu objetivo é lidar com
contradições
que não podem ser superadas dialeticamente. Em tais circunstâncias, o
operador
dialógico procura trabalhar com posições opostas e inconciliáveis sem
tentar negá-las
ou racionalizá-las. Se há impasses que não podem ser resolvidos após um
número
razoável de tentativas, isso não significa que devamos fingir que eles
não
existem. Compreendê-los e incorporar essa compreensão às nossas
táticas,
estratégias e práticas é antes de mais nada uma demonstração de bom
senso.
Como se sabe, nos grupos,
organizações e instituições
humanos a diversidade, em especial a de opiniões, costuma produzir um
certo
grau de conflituosidade. Seja manifesta ou latente, a diversidade não
deve ser
ocultada ou negada. O entrechoque de idéias, opiniões e comportamentos
é uma
das principais fontes de inspiração para a criatividade e a resolução
dos
problemas de convivência. Esse grau aceitável e desejável de
conflituosidade
nada mais é do que o resultado de oposições que não podem ser
resolvidas em
sínteses. Ele traduz a capacidade que têm os grupos, organizações ou
instituições de buscar soluções para suas dificuldades, sem que para
tanto
necessitem sempre de diretivas vindas de fora.
É óbvio que com isso não quero dizer
que os conflitos não
precisam ser resolvidos. Ao contrário, é justo e necessário solucionar
os que
podem ser solucionados e isso deve ser feito sem demora. Mas o que não
é justo
nem necessário é, sob o pretexto de resolver todos os conflitos,
reprimir
também a conflituosidade criativa. Em geral, a ânsia de resolver tudo
costuma
produzir o medo constante, a insegurança, a desconfiança paranóica, o
desprezo
pelos valores dos outros. Cria-se assim uma atmosfera de simulações,
subterfúgios,
intenções não reveladas que, ironicamente, faz aumentar o número de
desavenças
não-resolvidas.
Vários dos fragmentos deixados pelo
já citado Heráclito são
exemplos do operador dialógico. Lembremos mais um: “O antagonismo em
tensão é
convergente; da divergência dos contrários, surge a mais bela
harmonia”.[xi]
Para Plotino, a alma é ao mesmo tempo divisível e indivísível: é ao
mesmo tempo
una e múltipla.[xii] Assim, as soluções podem vir não apenas da
resolução dos
conflitos, mas da tensão criativa produzida pelas contradições que não
podem
ser solucionadas.
Porém, muito antes de Heráclito e
Plotino já existia uma
noção muito clara do modo dialógico de pensar. Na filosofia taoísta, o
símbolo
yin/yang exprime a dialógica. O yin é o princípio feminino, lunar. O
yang é o
princípio masculino, solar. Os dois estão sempre juntos e sempre em
oposição.
Estão sempre em tensão, mas são inseparáveis. Não há síntese possível
entre
eles, pois a manutenção das características de cada um é indispensável
à
manutenção da ordem natural das coisas e da integridade dos sistemas
vivos. A
simultaneidade do antagonismo e da complementaridade yin/yang traduz o
equilíbrio entre a cooperação e a competição, a harmonia entre a
autonomia e a
dependência.
Exemplos
1. Morin observa que qualquer
sociedade humana é ao mesmo
tempo complementar (isto é, cooperativa) e antagônica (inclui
rivalidades).
Nossas sociedades são comunidades de cooperação: as pessoas se ajudam
mutuamente, colaboram, associam-se. As empresas fazem parcerias, joint
ventures, consórcios. Ao mesmo tempo elas são competitivas: as pessoas
muitas
vezes são rivais, as empresas competem no mercado.
2. O progresso produz ordem, mas
também produz desordem. Não
é possível aumentar a ordem sem aumentar também a possibilidade de
desordem e
vice-versa, uma vez que uma polaridade contém a outra em estado
latente. Um
grande petroleiro transporta o resultado de muitos estudos e pesquisas
que
culminaram com a produção do petróleo. Transporta, portanto, o
progresso e mais
possibilidades dele, pois os derivados do petróleo têm inúmeras
aplicações. Mas
transporta também a possibilidade de acidentes pelo rompimento de seus
tanques,
com a poluição de amplas áreas e grandes prejuízos ao mundo natural.
Para não
falar no efeito-estufa, que ocorre mesmo quando o petróleo chega sem
problemas
às refinarias e é transformado em vários produtos, entre eles
combustíveis a
partir do quais são geradas emissões de gases poluentes. Dessa forma,
ao lado
do progresso, de soluções, de ordem, os petroleiros também transportam
o
retrocesso, os problemas, a desordem.
3. Uma sociedade que fosse só
competitiva se autodestruiria.
Uma sociedade que fosse só cooperativa tenderia a acomodar-se. Não
haveria
diversidade, oposições, debates. Não haveria conflituosidade,
concorrência, e
por isso mesmo não haveria renovação. Não haveria produção, só
reprodução. Não
existiriam diferenças e diversidade, só repetição, mesmice. O resultado
seria a
desagregação.
4. Outro exemplo, também lembrado por
Morin, é a relação entre
o indivíduo e a sociedade, que é ao mesmo tempo complementar e
antagônica. Não
há sociedade sem indivíduos. Do mesmo modo, para realizar a sua
condição
humana, em especial por meio da cultura e da linguagem, o indivíduo
precisa da
sociedade. No entanto, o antagonismo entre a sociedade e o indivíduo é
inevitável. Para se constituir e continuar existindo, a sociedade
precisa
reprimir certos desejos do indivíduo. Para viver em sociedade, o
individuo
precisa respeitar as normas, leis e tabus sociais. Contudo, ao obedecer
a essas
imposições ele colabora para a manutenção da estrutura e da ordem
social.
Portanto, ao querer liberdade para exercer todos os seus desejos, o
indivíduo
antagoniza a sociedade. Mas ao se submeter às normas que restringem
parte desses
desejos ele a complementa. É, portanto, ao mesmo tempo livre e
controlado. Ao
mesmo tempo em que afirma o indivíduo a sociedade o nega. Ou, como diz
o
filósofo Theodor Adorno, “a sociedade é um conjunto de sujeitos e a
negação
deles”.[xiii] Entre a sociedade e o indivíduo existem ao mesmo tempo
antagonismo e complementaridade. Eis a essência do operador dialógico.
5. Os neurocientistas também já
compreenderam a importância
do operador dialógico. O pesquisador V.S. Ramachandran, da Universidade
da
Califórnia, diz que o potencial humano só é visível se levarmos em
consideração
todas as possibilidades e, também, se resistirmos à tentação de ficar
em campos
polarizados (presos à lógica do “ou/ou”) ou de indagar se uma dada
função
cerebral é localizada ou não. Para Ramachandran, há muitas provas de
que no
cérebro existem partes ou módulos especializados em várias capacidades
mentais.
O melhor meio de entender a fisiologia cerebral é não apenas investigar
a
estrutura e a função de cada módulo, mas também descobrir como eles
interagem
uns com os outros para produzir o conjunto a que denominamos de
natureza
humana.[xiv]
A dialógica procura lidar com as
variáveis e as incertezas
que não podem ser eliminadas. Ao ensinar-nos a viver com os paradoxos,
o
operador dialógico nos mostra também como identificar as possibilidades
e as
limitações da objetividade, da lógica linear e da quantificação. Nossa
pretensão de controlar tudo, inclusive o que não é controlável, é uma
tentativa
de diminuir a ansiedade e a insegurança. No entanto, ao querer
controlar o
incontrolável conseguimos apenas negá-lo temporariamente. É como manter
pressionada uma mola. Quanto mais energia gastamos para mantê-la tensa,
mais
cansados ficamos e mais ela se torna difícil de pressionar. Saber
distinguir
quando empregar a dialética e quando usar a dialógica é uma habilidade
de alto
valor estratégico.
O
OPERADOR HOLOGRAMÁTICO
Enunciado
“As
partes estão no todo, mas o todo também está nas
partes.”
Apresentação
Para definir o operador hologramático
Morin usa a metáfora
do holograma, a fotografia obtida pelo processo holográfico. Nesse tipo
de
imagem, cada ponto contém quase a totalidade do objeto reproduzido.
Isto é, as
partes estão contidas no todo, mas o todo também está contido em cada
uma das
partes que o constituem. O pensamento complexo, tal como desenvolvido
por
Morin, conceitua a relação entre o todo e as partes por meio de quatro
princípios: a) o da emergência; b) o da imposição; c) o da complexidade
do todo;
c) o da distinção mas não-separação entre o objeto (ou o ser) de seu
ambiente.
O princípio da imposição diz que o
todo é inferior à soma de
suas partes. Isso significa que as qualidades ou propriedades das
partes,
quando consideradas em separado, diluem-se no sistema. Tornam-se
latentes,
virtuais. É o que ocorre, por exemplo, em um coral. Por mais destacadas
que
sejam as qualidades da voz de um ou de vários de seus participantes,
eles têm
de restringi-las ao que a totalidade do coral exige. Num time de
futebol, por
mais hábil que seja um determinado jogador quase sempre ele precisa
jogar com e
para o conjunto.
O fato de determinadas propriedades
ou qualidades das partes
serem tornadas virtuais em benefício do todo caracteriza uma restrição
ou
inibição deste sobre elas. Esse fenômeno ocorre em toda relação
organizacional:
para que uma empresa possa existir, é preciso que ela se imponha aos
seus
membros, que dessa maneira ficam impedidos de exercer algumas ou várias
de suas
qualidades e potencialidades. Com isso essas qualidades e
potencialidades se
tornam virtualizadas, entram em estado latente. É o que também ocorre
quando os
indivíduos, em troca do acolhimento e proteção da sociedade, se
submetem às
suas regras e normas.
O princípio da complexidade dos
sistemas reconhece que os
dois princípios anteriores são ao mesmo tempo antagônicos e
complementares. Por
isso, ele estabelece que o todo é ao mesmo tempo maior e menor que a
soma de
suas partes, pois a relação entre (a) e (b) é circular e não linear.
O principio da distinção, mas
não-separação entre o objeto
(ou ser) e o seu ambiente diz que o conhecimento de qualquer
organização física
exige o conhecimento das interações dessa organização com o seu
ambiente. Em
termos biológicos, o conhecimento dos seres vivos requer o conhecimento
de suas
interações com seus ecossistemas. Em termos organizacionais, o
conhecimento das
empresas exige o conhecimento de suas interações com o mercado.
A parte pode ser identificada como
parte, mas não pode ser
desligada do todo. O que percebemos por meio dos nossos cinco sentidos
são
coisas separadas, mas na realidade essa separação não significa
desligamento.
Tudo está ligado a tudo. A essa conclusão já haviam chegado vários
grandes
pensadores. Montaigne dizia que “todo homem traz consigo a inteira
humana
condição”. Goethe afirmava: a) “os homens trazem dentro de si não
apenas a sua
individualidade mas a humanidade inteira, com todas as suas
possibilidades”; b)
“o universal e o
particular coincidem: o particular é o universal que se manifesta sob
diversas
condições”.
Na área científica, as percepções e
intuições desses e de
outros pensadores não só se repetiram como foram confirmadas. É o caso
dos
estudos sobre a complexidade e a teoria do caos, que identificaram o
chamado
efeito-borboleta, inferido a partir de pesquisas meteorológicas:
pequenas
variações numa das partes de um sistema complexo podem se avolumar e
levar a
conseqüências de grandes proporções. Na metáfora de Edward Lorenz, o
bater das asas
de uma borboleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas.[xv]
Por sua
vez, o efeito-borboleta relaciona-se com o princípio de Mach, formulado
pelo
físico austríaco Ernst Mach e questionado, mas não invalidado, por
Einstein e
outros. Em essência, ele diz que a inércia de um corpo é determinada em
relação
a todos os outros corpos do universo. Isto é: o global influencia o
local e
vice-versa.[xvi]
O pensamento cartesiano-binário nos
leva a ver tudo sempre
em separado e a achar natural a divisão e a separação, mesmo quando há
evidências que apontam para o contrário. Ver as coisas separadas revela
apenas
a limitação dos nossos meios de percepção. Mas isso não significa que
elas
estejam desligadas. No mundo natural existe afastamento, mas não
desligamento.
Como diz Morin, o indivíduo é o ponto do holograma que contém a
totalidade da
sociedade e da espécie, mas mesmo assim continua singular e não pode
ser
reduzido essa totalidade.
Exemplos
1. A diversidade humana é visível com
facilidade. No
entanto, aquilo que os seres humanos têm em comum (a unidade humana)
não é
perceptível com facilidade. Essa unidade também não pode ser concebida
com
facilidade por nosso modo predominante de pensar que, como já sabemos,
é
fragmentador. Por isso, Morin sugere que é preciso conceber a unidade
múltipla,
a unitas multiplex. Trata-se da unidade que comporta a pluralidade.
Existe
unidade na diversidade humana e diversidade na unidade humana. O mesmo,
é
claro, ocorre em todo o mundo natural.
A esse respeito, há um belo texto de
Ortega y Gasset[xvii]
que também é um exemplo de pensamento complexo. Ortega cita um antigo
provérbio
alemão: a altura das árvores impede a visão do bosque. Se vejo algumas
árvores
do bosque, não consigo vê-lo em sua totalidade. O bosque real é o
conjunto
formado pelas árvores que não posso ver. Se percorro o bosque, também
não o
vejo: tudo o que posso ver são algumas das árvores que o formam. O
bosque está
sempre um pouco mais além de onde estamos, diz Ortega. Ainda assim ele
existe
como possibilidade: é “uma soma de atos nossos”, nós o construímos ao
andar
nele, ao interagir com ele.
As árvores não nos deixam ver o
bosque, mas é por isso mesmo
que ele existe. A missão das árvores que se manifestam, que se tornam
patentes,
é manter latentes (ocultas) as demais. O que se vê esconde mas também
inclui o
que não se vê, assim como a ordem inclui a desordem e vice-versa. O
bosque está
latente nas árvores e estas estão latentes no bosque. A possibilidade
da
existência do bosque está nas árvores e a possibilidade de existência
das
árvores está no bosque. Na metáfora de Morin, os fios possibilitam a
existência
do tapete e este, ao ser desfeito, possibilita a existência dos fios
separados.
“O mundo profundo é tão claro quanto o real, só que exige mais de nós”,
diz
Ortega.
Também é possível entrar no bosque
sem sentir-se parte dele.
Nesse caso ele não terá nada para me mostrar nem terei nada para
mostrar-lhe:
eu o verei como um âmbito ao qual sou estranho e que me é estranho. No
máximo,
será um campo de caça ou um esconderijo. Assim, se me convencer de que
nada me
liga ao bosque, imaginarei que posso destruí-lo sem que isso também me
autodestrua. Como mostra a experiência, esse equívoco é muitas vezes
fatal para
os que nele incorrem.
A unidade é compreensível em termos
abstratos, mas nem
sempre fácil de entender na prática. Já vimos que essa dificuldade se
deve à
nossa incapacidade de perceber interligações. No entanto, é a
existência da
unidade humana que torna possível procedimentos como campanhas de
vacinação,
transfusões de sangue, controle de epidemias com medicamentos de ampla
aplicação e outras ações de medicina de massa, providências políticas e
econômicas de amplo alcance e até a própria existência do marketing.
2. Aqui se inclui, é claro, a
possibilidade de transplantar
órgãos. Esse caso é também um exemplo do operador dialógico: a
diversidade faz
com que, por meio de seu sistema imunológico, os organismos individuais
reajam
aos órgãos transplantados. Mas a unidade humana faz com que seja
possível
aplicar a todos os indivíduos as técnicas dos transplantes e os
medicamentos
que se opõem à rejeição.
Sabemos que a unidade contém a
multiplicidade e vice-versa.
A unidade do organismo humano facilita os transplantes, pois com
exceção das
diferenças genitais todos temos os mesmos órgãos. A diversidade
dificulta os
transplantes, pois facilita a rejeição. Os transplantes de órgãos são
ao mesmo
tempo possíveis e impossíveis, pois pertencer à condição humana os
facilita. Entretanto,
as peculiaridades dos organismos individuais facilitam a rejeição, o
que também
mostra que o indivíduo pode se destacar do todo mas nem por isso perde
a sua
individualidade. Os medicamentos imunossupressores, que diminuem a
possibilidade de rejeição dos órgãos transplantados (a possibilidade de
desordem), facilitam a aceitação desses órgãos pelo organismo receptor
(a
ordem). Ao fazer esse papel, eles atuam na
relação ordem-desordem-organização.
3. Outro exemplo do operador
hologramático é o já mencionado
efeito-borboleta. Na área financeira, sabe-se que fatos localizados
(que muitas
vezes não passam de simples boatos) podem levar a grandes oscilações
nas bolsas
do mundo inteiro. Hoje, com a Internet e a globalização dos mercados,
esse
fenômeno se tornou ainda mais evidente.
4. Na cultura das organizações, os
princípios básicos
elaborados pelos fundadores (as chamadas crenças ou certezas
fundamentais)
sustentam e motivam corporações transnacionais de muitos milhares de
funcionários e um número muitas vezes maior de acionistas e outros
participantes. A missão e a visão de futuro são formas de reforçar as
ligações
entre as pessoas. Ligações geram confiança e o sentimento de pertencer
a uma
totalidade. Pensar de modo fragmentador produz medo e desconfiança. No
primeiro
caso, o resultado é solidariedade, finalidade, sentido. No segundo
caso,
gera-se a competição predatória, o “cada um por si”, o “salve-se quem
puder”.
5. Em cada célula do nosso organismo
está contido, em
potencial, todo o nosso patrimônio genético. Há também o caso das
células-tronco. Elas têm duas características importantes: a) não são
especializadas e produzem a si próprias por meio de divisão; b) podem
ser
levadas a se transformar em células diferenciadas, como as que compõem
o músculo
cardíaco e as do pâncreas que produzem a insulina. Pensava-se que as
células-tronco desaparecessem no adulto. No entanto, hoje se sabe que
elas
permanecem em certos órgãos como a medula óssea, os músculos e o
cérebro.
Nesses tecidos, as células-tronco, ou células-matrizes, podem ser
“despertadas”
e induzidas a produzir outras, que por sua vez podem substituir células
que se
perderam, seja por doença, desgaste normal ou traumatismos. Essa
possibilidade
abre novos e importantes caminhos para a medicina, e também são mais
uma
evidência de que o todo está nas partes e vice-versa.
Por todas essas razões, a noção de
que tudo está ligado a
tudo, embora as aparências pareçam mostrar o contrário, é fundamental.
Essa
idéia deve ser entendida e levada à prática não no sentido mágico ou
místico,
mas sim com o grau de pragmatismo necessário às ações e às mudanças
eficazes.
Não se trata de pensar em termos de uma totalidade à qual nos devemos
submeter,
mas sim em um sistema complexo, do qual fazemos parte e que podemos
influenciar
com nossos comportamentos individuais.
INTERAÇÃO
SUJEITO-OBJETO
Enunciado.
“O
observador faz parte daquilo que observa.”
Apresentação
Para que nossa observação fosse
sempre objetiva, seria
preciso que estivéssemos sempre separados daquilo que observamos. Foi
disso que
o pensamento fragmentador convenceu a muitos de nós: de que observamos
um mundo
do qual não fazemos parte. Estabelecemos fronteiras e não nos vemos
além delas.
A percepção é um fenômeno que
acontece na estrutura dos
organismos vivos. O mundo externo é o mesmo para todos nós, mas o
universo
interno difere de indivíduo para indivíduo. Em termos fisiológicos, a
percepção
ocorre por meio dos cinco sentidos. Como mecanismo, ela é a mesma para
todos os
indivíduos de uma mesma espécie. Mas seus resultados internos,
subjetivos,
dependem das peculiaridades de cada um, isto é, da estrutura
individual, em
especial a do sistema nervoso. Essa estrutura é complexa: em sua
constituição
entram fatores como a educação, a cultura, o contexto histórico-social
e nossas
emoções num dado instante.
Francisco Varela assinalou que
estudos sobre a visão de
cores revelaram fatos importantes. Lembremos alguns: a) os seres
humanos vêem o
mundo em quatro cores; b) os pombos vêem o mundo em cinco cores; c) as
abelhas
vêem o mundo em ultravioleta; d) os morcegos não vêem o mundo:
interagem
espacialmente com ele por meio de um mecanismo semelhante ao sonar.
Cabe,
portanto,a pergunta: afinal de contas, de que cor é o mundo? É razoável
imaginar que ele deve ter uma ou muitas cores. Mas também é razoável
deduzir
que o vemos segundo a nossa estrutura, isto é, de acordo com o modo
como
estamos equipados para vê-lo.
Dessa maneira, o mundo que percebemos
é o que podemos
perceber. Já aprendemos, com o operador hologramático, que há
evidências de que
tudo está ligado a tudo. Distanciamento físico não quer dizer
desligamento
real. O observador não está separado daquilo que observa, embora possa
estar
macroscopicamente distanciado. Portanto, não podemos viver no mundo
como se não
fizéssemos parte dele. Por estar todos no mesmo mundo somos ao mesmo
tempo
sujeitos e objetos, percebedores e percebidos. Se a consciência é
sempre a
consciência de alguma coisa, as coisas são sempre coisas para alguma
consciência.
A realidade é aquilo que percebemos
objetiva e
subjetivamente. É o que observamos e o que sentimos e pensamos em
relação ao
que observamos. A postura objetiva é real, mas a pretensão de que seu
resultado
final seja só objetivo não é real, pois não existe conhecimento em que
não
entrem ao mesmo tempo a objetividade do que se conhece e a
subjetividade do
conhecedor. A percepção é um diálogo, uma transação entre o observador
e o
observado, entre o percebedor e o percebido. Por meio apenas da
objetividade
não se pode conhecer o mundo real. Por meio apenas da subjetividade
também não
se pode conhecê-lo. Para conhecer a realidade, é preciso estabelecer
uma
relação com ela, interagir, trocar, conviver.
É das relações que emergem as
percepções. No encontro do
observador com o observado, a ênfase não pode ser posta apenas no
primeiro nem
só no segundo. Em qualquer das hipóteses, desviaríamos o foco daquilo
que na
realidade conta: o fenômeno da observação, que é uma relação. A ciência
e o
conhecimento não existem apenas na “subjetividade” das teorias dos
cientistas
nem na “objetividade” do mundo. Nasce da relação entre elas. O
conhecimento,
seja o científico, seja o do cotidiano, é um “relato” dessa relação. É
uma
tentativa de “contar a história” dela, de falar sobre as propriedades
novas que
daí emergem.
As ciências e as artes são modos
também válidos de contar a
história dessas propriedades e cada uma o faz a seu modo. A percepção
da
realidade que não incluir a subjetividade será incompleta. Quando
determinadas
ciências negam a subjetividade, com isso estão negando também a
realidade. A
realidade não está só nas partes nem só no todo. Está no relacionamento
entre
as partes e o todo.
Numa determinada sociedade,
“objetivo” é o que se
convencionou chamar de objetivo, isto é, a definição do que é objetivo
resulta
de consensos. Se a objetividade é uma construção cultural, histórica e
intelectual, ela contém a subjetividade, por mais que queira excluí-la.
Portanto, pode-se dizer que existe a atitude objetiva, mas não a
objetividade
em si, vista como um absoluto.
Vivemos numa cultura para a qual os
resultados são
dissociados das pessoas que os produzem. O sujeito é visto como
separado do
objeto. É como se o ser humano não fizesse parte do mundo, de sua
própria vida
e, em conseqüência, de suas ações. Nessa cultura, aquilo que chamamos
de
resultados “práticos” são quase que só os econômicos, e as pessoas
costumam se
associar tanto a eles que muitas perdem suas identidades humanas. Por
isso uma
cultura de resultados é desumanizadora e alienante. As conseqüências
desse
fenômeno em termos de responsabilidade sócio-ambiental são óbvios, pois
levam à
autojustificação de que temos pouco ou nada a ver com as conseqüências
de
nossas ações ou omissões.
Exemplos
1. Se de um lado o ser humano pensa,
lida com conceitos
abstratos, de outra parte ele tem um corpo que está muito ligado ao
mundo
natural. Essa posição pode ser ampliada. Se a mente faz parte do
cérebro, que
faz parte do corpo, que faz parte do mundo, na verdade nem mesmo a
nossa
dimensão mental é separada da natureza.
2. Nossa pretensão de que a percepção
é só objetiva tem
conseqüências práticas, muitas delas desagradáveis. Lembremos duas
delas: a)
muitas vezes, tratamos as pessoas como coisas com as quais nada temos a
ver, e
por isso recebemos delas o mesmo tratamento; b) o hábito de pensar
apenas “para
fora”, de modo objetivo, faz com que tenhamos dificuldades de pensar em
nós
mesmos e também de questionar nossos próprios processos de pensamento.
A falta
ou deficiência de auto-observação dificulta a autocrítica. Se não nos
autocriticamos, julgamo-nos mais capacitados para criticar sempre os
outros e
estes, é claro, nos pagam na mesma moeda.
3. Julgarmo-nos separados daquilo que
observamos traz pelo
menos duas conseqüências problemáticas: a) temos mais dificuldade de
avaliar as
repercussões do que dizemos e fazemos; b) temos mais dificuldade de
responsabilizar-nos pelo que dizemos ou fazemos. Ao dificultar a
assunção de
responsabilidades, a separação sujeito-objeto nos leva a buscar a causa
de
nossos problemas apenas em fatores externos, o que pode significar que
no fundo
não queremos ou não podemos resolvê-los.
4. O observador modifica e é
modificado por aquilo que
observa. Vejamos alguns exemplos corriqueiros.
- A divulgação jornalística e
publicitária de ações e idéias
estimula o aparecimento e a multiplicação de fatos e idéias
semelhantes, como
ocorreu no caso dos seqüestros de mães de jogadores de futebol
ocorridos no
Brasil há algum tempo.
- “Fatos novos” trazidos à luz em meio a crises políticas,
ou mesmo simples boatos, podem influir na economia e em outros setores
da
sociedade.
- Difundir a popularidade de uma de uma pessoa, idéia ou
instituição torna-as ainda mais notórias (ou ainda mais impopulares). É
dessa
maneira que se manipula a mente coletiva e se constroem ou se destroem
“imagens
públicas”. Entre muitos outros, Goebbels, ministro da propaganda de
Hitler,
valeu-se desse artifício.
- Nas campanhas eleitorais, as pesquisas de intenção de voto
muitas vezes são utilizadas para manipular a opinião pública a favor ou
contra
esse ou aquele candidato. Servem também para reverter impressões
favoráveis ou
desfavoráveis, ou como balão de ensaio para o lançamento de produtos,
serviços
e candidaturas políticas.
A tendência de separar e manter
separados o sujeito (observador)
e o objeto (o observado) implica o pressuposto de que o sujeito não faz
parte
do sistema observador/observado. Quanto mais o observador (o sujeito)
insistir
em não participar, menos pensará em si próprio. Em conseqüência, menos
conhecerá a si próprio e menores serão suas possibilidades de
desenvolver suas
habilidades e potencialidades. Se quisermos perceber o mundo real com
um mínimo
de confiabilidade, é importante, antes de examinar uma situação ou
tentar
resolver um problema, verificar nossas pretensas “certezas” em relação
ao que
pretendemos apreciar. Se nossa mente está formatada por um determinado
modo de
pensar, ela só será capaz de perceber o mundo e tentar entendê-lo por
meio
desse padrão. A questão básica, portanto, é esta: com base em que
modelo mental
vou pensar sobre uma dada situação ou problema?
ECOLOGIA
DA AÇÃO
Enunciado
“As
ações com freqüência escapam ao controle de seus autores
e produzem efeitos inesperados e às vezes até opostos aos esperados.”
Apresentação
A ecologia da ação é um fenômeno bem
conhecido. Para a
elaboração desse conceito, Morin partiu de idéias anteriores e as
modificou e
ampliou. É claro que o conceito de ecologia da ação está ligado ao da
ecologia
das idéias. Uma vez desencadeadas, nossas ações e idéias passam a fazer
parte
da aleatoriedade, da incerteza e da imprevisibilidade do ambiente
natural e
cultural. Os poetas e os ficcionistas percebem isso com facilidade. O
escritor
Mario Vargas Llosa, por exemplo, observa que “os efeitos da literatura
são
imprevisíveis e nunca governáveis por quem a escreve”.[xviii] E o poeta
Fernando Pessoa escreveu:
Da
mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste,
Esse é o destino dos versos.
(...)
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?[xix]
O fato de uma ação ou idéia poder
passar por tantas
modificações e desvios faz com que ela possa até mesmo voltar-se contra
o seu
autor. Há muito que a sabedoria popular já havia detectado esse fato:
“O
feitiço virou contra o feiticeiro”. Passado o momento inicial, a ação
deixa de
“pertencer” a seu autor. É como se adquirisse vida própria. Não só pode
antagonizá-lo, conforme já foi dito, como pode tornar-se
incompreensível para
ele. Esse fenômeno decorre de outro, que pode ser assim descrito: uma
ação pode
produzir sinergias; as sinergias produzem outras sinergias, e assim o
número de
variáveis se torna tão grande que leva à imprevisibilidade. Essa é uma
das
múltiplas manifestações da complexidade. Os efeitos retroagem sobre as
causas e
as modificam. Além disso, eles também se influenciam mutuamente e
dessas
múltiplas interações surgem novos efeitos, que retroagem sobre suas
causas e
assim por diante.
Morin propôs dois princípios para a
ecologia da ação, que
Lise Laférière ampliou para três: a) O nível de eficácia ótima de uma
ação se
situa no início do seu desenvolvimento; b) a ação não depende só da
intenção ou
intenções de seu autor: depende também das condições peculiares do
ambiente no
qual ela acontece; c) a longo prazo, os efeitos das ações são
imprevisíveis.
Tudo isso significa que, ao interagir com os múltiplos fatores do
ambiente, uma
ação está sujeita à aleatoriedade, à imprevisibilidade e à incerteza
próprias
desse ambiente. Em outras palavras, ela está sujeita a múltiplas
variáveis.
A ecologia da ação se baseia na
observação de que o curso da
história não é linear. A não-linearidade histórica é uma manifestação
da
complexidade, que inclui a ordem, a desordem e a organização. Isso
significa
que, como observa Morin, toda ação está sujeita ao determinismo mas
também está
sujeita ao acaso. Como disse o historiador Fernand Braudel, os homens
fazem a
Historia, a História os arrasta.
A ecologia da ação inclui riscos,
estes por sua vez
derivados da imprevisibilidade a da aleatoriedade inerentes ao mundo
natural.
Hannah Arendt escreveu que muitas ações implicam “riscos enormes”[xx],
e o
poeta Vinícius de Moraes acrescentou que “é preciso que estejamos
íntegros, e acontece
/ que os perigos são máximos”.[xxi] O risco é tanto maior quando nos
lembramos
de que, como diz Morin, uma ação pode inverter seu propósito sem que
seu autor
tenha consciência desse fenômeno. E isso o faz continuar a agir até
mesmo
contra os seus próprios projetos ou desejos.
Exemplos
1. As leis gerais da ecologia se
aplicam ao
pensamento complexo e, é claro, à ecologia
da ação. Ei-las: a) todas as coisas estão interligadas; b) tudo vai
para algum
lugar; c) todas as escolhas envolvem custos; d) a natureza
revida.[xxii]
Comentemos cada uma. De saída, é importante notar que em todas está
presente de
modo implícito ou explícito um princípio fundamental: a idéia de que
são
importantes não apenas as partes isoladas, mas também as relações entre
elas. No
mundo natural, as coisas, os seres vivos e o ambiente se acolhem
mutuamente e
de modo incessante. Portanto, é crucial
pensar em termos de relações.
“Tudo vai para algum lugar” significa
que, por exemplo, a
embalagem de plástico usada que jogamos na rua ou numa estrada, pela
janela do
carro pensando que assim nos livraremos dela, passa a fazer parte da
complexidade do todo. E faz isso de maneira poluidora: prejudica
equilíbrios
delicados, de tal forma que um dia nós mesmos ou nossos descendentes
sofreremos
as conseqüências dessa agressão.
A terceira lei estabelece que nada é
gratuito: tudo tem um
preço, a ser pago por nós mesmos ou por nossos sucessores. Pois, como
diz com
clareza a quarta lei, a natureza sempre dá o troco, revida às agressões
a que a
submetemos (mas retribui positivamente aos cuidados que lhe
proporcionamos). O
revide às agressões pode acontecer de modo violento, tanto em relação
às
catástrofes naturais quanto às desavenças entre pessoas.
Seja como for, é fundamental não
esquecer o óbvio: ignorar
as conseqüências dos nossos atos não significa que deixaremos de ser
responsáveis por eles. Quer dizer apenas que fugimos a essas
responsabilidades,
que estamos alienados de nós mesmos, dos outros e do mundo. Portanto, é
indispensável que tomemos consciência do como e do porquê dessa
alienação. Esse
é o primeiro passo de qualquer iniciativa de mudança.
2. De acordo com Morin, as idéias,
teorias e mitologias são
criados e nutridos pela mente humana: os deuses são criados pelos
homens e
terminam por ditar-lhes as vontades. De fato, seres míticos criados
pelos
homens adquirem vida própria em todos os setores da experiência humana.
Por
exemplo, Romeu e Julieta e Otelo, de Shakespeare, e Dom Quixote e
Sancho, de
Cervantes, são figuras conhecidas e influentes, mesmo por quem nunca
leu seus
autores. Esse fenômeno é típico da ecologia das idéias. Com muita
freqüência,
as ideologias levam as pessoas ao fanatismo e ao desvario. Vive-se e
morre-se
por causa delas e ao sabor de seus embates com outras ideologias. As
idéias são
o fiel da balança entre a concórdia e a discórdia, a guerra e a paz.
São
possuídas pelas pessoas e as possuem, como diz Morin.
3. Outro exemplo da ecologia da ação
está expresso no
chamado princípio de Pareto: 20% das ações resultam em 80% dos
resultados ou,
ao contrário, 80% dos resultados decorrem de 20% das ações. Isso
significa que
a maioria das ações que foram iniciadas com o objetivo de produzir
determinados
resultados se perdem na aleatoriedade, na imprevisibilidade e na
incerteza do
ambiente. Se assim não fosse, 100% das ações resultariam em 100% de
resultados.
4. Na retórica de muitos dos líderes
da época, a Primeira
Guerra Mundial seria a “guerra que acabaria com todas as guerras”. As
ações da
Perestroika, de Gorbatchev, tinham como objetivo reformar a União
Soviética,
mas levaram à sua implosão. No Brasil, vários “planos econômicos”
tiveram como
objetivo acabar com a inflação, mas fizeram com que ela aumentasse.
4. Muitas vezes, a correção dos
cursos indesejáveis de uma
ação pode ser influenciada pelo excesso de otimismo e pelo voluntarismo
de seu
autor. Essas interferências podem dificultar ou mesmo impedir que o
autor da
ação perceba que ela já se transformou e se desdobrou, e que essas
modificações
por sua vez estão sujeitas à influência de inúmeras variáveis. Como se
sabe,
muitas vezes os líderes, mesmo os mais esclarecidos, são influenciados
por seus
assessores e por outras pessoas, grupos e instituições. Isso acaba
fazendo com
que eles vejam algo diferente do que na realidade acontece. Em casos
assim, a
ecologia da ação se relaciona com outro fenômeno, a que Morin chama de
percepção alucinatória do real.
5. O consultor João Bosco Lodi[xxiii]
faz uma observação que
é um bom exemplo da influência do ambiente sobre as ações das pessoas.
Ao falar
sobre a presidência de empresas ele observa que, à medida que um
presidente
chega perto da solução de um determinado problema, percebe que cada
nova ação
sua cria novos problemas. “Os problemas estão nas soluções”. Ao longo
desse
processo os presidentes, como aliás todos os líderes, aprendem que as
variáveis
do ambiente surgem e atuam sobre suas ações: os recursos disponíveis, o
tempo,
as reações dos que têm seus interesses satisfeitos ou contrariados, a
abundância ou escassez de informações necessárias, as limitações
oriundas de
compromissos antes assumidos e assim por diante. Em suma, eles aprendem
que
toda ação acontece num determinado ambiente e tem de interagir com as
variáveis
desse ambiente. Esse exemplo também deixa claro que a ecologia da ação
é, em
essência, um fator que limita os poderes de um indivíduo, por mais
amplos que
eles sejam.
Tudo isso visto, pode-se concluir
que: a) conhecer a
ecologia da ação e saber lidar com ela ajuda a tomar decisões; b) uma
ação, por
mais simples que seja, não deve ser deixada à sua própria sorte. Uma
vez
iniciada ela se defronta com inúmeros desvios, acidentes, imprevistos e
outras
variáveis, as quais precisam ser corrigidas ou pelo menos atenuadas.
Para
tanto, seu autor deve aprender a reconhecer e acompanhar esses fatores,
e estar
alerta em relação a tudo o que possa interferir de maneira negativa
nesse
reconhecimento e acompanhamento.
Notas
[i] HUMBERTO MARIOTTI. As paixões do
ego:complexidade,
política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena, 2000, pág. 89 e segs.
[ii] EDGAR MORIN. La méthode 6. Éthique. Paris; Seuil, 2004,
pág. 63.
[iii] Id., ibid., págs.
65-66, com modificações.
[iv] DAVE
ULRICH, JACK ZENGER, NORM SMALLWOOD. Results-based leadership. Boston,
Massachusetts: Harvard Business School Press, 1999, pág.3.
[v] DOUGLAS
McGREGOR, Leadership and motivation: essays by Douglas Mc Gregor. Cambridge,
Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology Press, 1966.
[vi] Ver JORGE LUÍS BORGES Esse ofício do verso, São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, pág.12.
[vii]
RENSIS LIKERT. The human organization. New York: McGraw
Hill, 1967.
[viii] Agradeço ao professor Hamilton Villela, da Business
School São Paulo, por me ter sugerido o uso dessa seqüência.
[ix] EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, ed., Heráclito: fragmentos,
origem do pensamento. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, pág. 69.
[x] PLOTINO. Enéadas, III,8/30.
[xi] Id.,
ibid., pág. xx.
[xii] PLOTINO. Enéadas, III,2,2.
[xiii] Ver EDGAR MORIN. La méthode 5. L’humanité de
l’humanité. L’identité humaine. Paris: Seuil, 2001, pág. 155.
[xiv] V.S. RAMACHANDRAN e SANDRA BLAKESLEE. Fantasmas no
cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de
Janeiro:
Record, 2002, pp. 34, 35.
[xv] EDWARD LORENZ. Conferência na reunião anual da
Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, Washington DC,
29/12/1979.
[xvi] Ver
WOLFGANG RINDLER. Essential relativity. Nova York, Springer-Verlag,
1977.
[xvii] JOSÉ ORTEGA Y GASSET. Meditações do Quixote. São
Paulo: Livro Ibero-Americano, 1967, pág. 67 e segs.
[xviii] MARIO VARGAS LLOSA. A verdade das mentiras. São
Paulo: ARX, 2004, pág. 359.
[xix] FERNANDO PESSOA. “O guardador de rebanhos”. In Obra
poética. Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1999, pág. 227.
[xx] HANNAH ARENDT. Condition de l’homme moderne. Paris:
Calmann-Lévy, 1961.
[xxi] VINÍCIUS DE MORAES. Poesia completa e prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1986, pág. 320.
[xxii] ERNEST CALLENBACH, Ecologia: um guia de Bolso, São
Paulo: Peirópolis, 2001 (epígrafe).
[xxiii] JOÃO B. LODI. Governança corporativa. Rio de
Janeiro: Campus/Elsevier, 2000, pág.162.
Este texto corresponde a um dos
capítulos do livro do autor
Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao
desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2007.
© Humberto Mariotti, 2007
*HUMBERTO MARIOTTI. Consultor em
desenvolvimento pessoal e
organizacional. Professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de
Lideranças da Business School São Paulo. Coordenador do Núcleo de
Estudos de
Gestão da Complexidade da Business School São Paulo.