Tradução de João
Wanderley Geraldi
Universidade
Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística
No combate entre
você e o mundo, prefira o mundo.
Franz
Kafka
Costuma-se pensar a
educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a técnica ou,
às vezes,
do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par
ciência/técnica
remete a uma perspectiva positiva e retificadora, o par teoria/prática
remete
sobretudo a uma perspectiva política e crítica. De fato, somente nesta
última
perspectiva tem sentido a palavra “reflexão” e expressões como
“reflexão
crítica”, “reflexão sobre prática ou não prática”, “reflexão
emancipadora” etc.
Se na primeira alternativa as pessoas que trabalham em educação são
concebidas
como sujeitos técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as
diversas
tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas, pelos técnicos e
pelos
especialistas, na segunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem
como
sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias reflexivas, se
comprometem, com maior ou menor êxito, com práticas educativas
concebidas na maioria
das vezes sob uma perspectiva política. Tudo isso é suficientemente
conhecido,
posto que nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado separado
entre os
chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários da
educação como
ciência aplicada e os partidários da educação como práxis política, e
não vou
retomar a discussão.
O que vou
lhes
propor aqui é que exploremos juntos outra possibilidade, digamos que
mais
existencial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser
esteticista), a
saber, pensar a educação a partir do par experiência/sentido. O que vou
fazer
em seguida é sugerir certo significado para estas duas palavras em
distintos
contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes soa. O que vou fazer
é,
simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de compartilhá-las. E
isto a
partir da convicção de que as palavras produzem sentido, criam
realidades e, às
vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no
poder
das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as
palavras
e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam
nosso
pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não
pensamos
a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de
nossas
palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou
“argumentar”,
como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido
ao que
somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo
que tem
a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o
modo
como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do
mundo em
que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. Todo mundo
sabe que
Aristóteles definiu o homem como zôon lógon échon.
A tradução desta
expressão, porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do que
“animal
dotado de razão” ou “animal racional”. Se há uma tradução que realmente
trai,
no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos
por ratio.
E a transformação de zôon, vivente, em animal. O
homem é um vivente com
palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a
linguagem como uma
coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra,
que o
homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se
dá em
palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse
vivente,
que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, atividades
como
considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras,
cuidar das
palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras,
proibir
palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,
não são
mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata
é de
como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como
correlacionamos
as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos
e de
como vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o
que
fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada,
como
práxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não é somente
uma
questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que
fazemos,
o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que
simplesmente
palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo
controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo
silenciamento
ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do
que
simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.
1.
Começarei com a
palavra experiência. Poderíamos dizer, de início,
que a experiência é,
em espanhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a experiência
é “o
que nos acontece”; em francês a experiência seria “ce que nous arrive”;
em
italiano, “quello che nos succede” ou “quello che nos accade”; em
inglês, “that
what is happening to us”; em alemão, “was mir passiert”.
A
experiência é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa,
não o
que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém,
ao
mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa
está
organizado para que nada nos aconteça[2].
Walter
Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que
caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a
experiência é
cada vez mais rara.
Em
primeiro lugar
pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a
informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário
da
experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea
na
informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a
constituir-nos como
sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que
cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação
sabe muitas
coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é
não ter
bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor
informado, porém,
com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no
sentido de
“sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que
nada
lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência
é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer
sobre o saber
de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas,
tal como se
sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está
informado. É a
língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir a uma
aula ou a
uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois
de ter
feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que
sabemos
coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma
coisa;
mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu, que
nada nos
tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além
disso,
seguramente todos já ouvimos que vivemos numa “sociedade de
informação”. E já
nos demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como
sinônima
de “sociedade do conhecimento” ou até mesmo de “sociedade de
aprendizagem”. Não
deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade entre os termos
“informação”,
“conhecimento” e “aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob a
forma de
informação, e como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e
processar informação. E não deixa de ser interessante também que as
velhas metáforas
organicistas do social, que tantos jogos permitiram aos totalitarismos
do
século passado, estejam sendo substituídas por metáforas cognitivistas,
seguramente também totalitárias, ainda que revestidas agora de um look
liberal
democrático. Independentemente de que seja urgente problematizar esse
discurso
que se está instalando sem crítica, a cada dia mais profundamente, e
que pensa
a sociedade como um mecanismo de processamento de informação, o que eu
quero
apontar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação
é uma
sociedade na qual a experiência é impossível.
Em
segundo lugar, a
experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito
moderno é um
sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião
supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente
crítica
sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação.
Para nós, a
opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa
arrogância,
passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos
informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria
sobre o
que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa
que se
lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial.
E pensa
que tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No
entanto, a
obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de
experiência, também
faz com que nada nos aconteça. Benjamin dizia que o periodismo é o
grande
dispositivo moderno para a destruição generalizada da experiência[3].
O
periodismo destrói a experiência, sobre isso não há dúvida, e o
periodismo não
é outra coisa que a aliança perversa entre informação e opinião. O
periodismo é
a fabricação da informação e a fabricação da opinião. E quando a
informação e a
opinião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do acontecer, então
o
sujeito individual não é outra coisa que o suporte informado da opinião
individual, e o sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história
segundo os
velhos marxistas, não é outra coisa que o suporte informado da opinião
pública.
Quer dizer, um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da
informação e da
opinião, um sujeito incapaz de experiência. E o fato de o periodismo
destruir a
experiência é algo mais profundo e mais geral do que aquilo que
derivaria do
efeito dos meios de comunicação de massas sobre a conformação de nossas
consciências.
O par
informação/opinião é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa
idéia de
aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de
“aprendizagem significativa”. Desde pequenos até a universidade, ao
largo de
toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a
um
dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso
informar-se e,
depois, há de opinar, há que dar uma opinião obviamente própria,
crítica e
pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão
“significativa” da assim chamada “aprendizagem significativa”. A
informação
seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação
subjetiva
ao objetivo. Além disso, como reação subjetiva, é uma reação que se
tornou para
nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós
opinamos.
Esse “opinar” se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou
contra.
Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para responder como
Deus
manda as perguntas dos professores que, cada vez mais, se assemelham a
comprovações de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que
você sabe,
diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua
opinião: esse
o dispositivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo
que torna
impossível a experiência.
Em
terceiro lugar,
a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se
passa
passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se
reduz o
estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro
estímulo ou
por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é
dado na
forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência
instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados
os
acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o
mundo
moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem
também a
memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por
outro que
igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio.
O
sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um
consumidor voraz
e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente,
eternamente insatisfeito.
Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio.
Ao
sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o
excita, tudo
o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e
o que
ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas
mortais da
experiência.
Nessa
lógica de
destruição generalizada da experiência, estou cada vez mais convencido
de que
os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de
tornar
impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já disse,
pelo
funcionamento perverso e generalizado do par informação/ opinão, mas
também
pela velocidade. Cada vez estamos mais tempo na escola (e a
universidade e os
cursos de formação do professorado são parte da escola), mas cada vez
temos
menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da
constante
atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como
um valor
ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem
sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de
seguir o
passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso
mesmo, por
essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já
não tem
tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais
numerosos e
cada vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos sempre
acelerados e
nada nos acontece.
Em quarto
lugar, a
experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Esse ponto me
parece importante
porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê
segundo
o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber
que vem
dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o
saber que
vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quando se redige o
currículo,
distingue-se formação acadêmica e experiência de trabalho. Tenho ouvido
falar
de certa tendência aparentemente progressista no campo educacional que,
depois
de criticar o modo como nossa sociedade privilegia as aprendizagens
acadêmicas,
pretende implantar e homologar formas de contagem de créditos para a
experiência e para o saber de experiência adquirido no trabalho. Por
isso estou
muito interessado em distinguir entre experiência e trabalho e, além
disso, em
criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer
conversão
da experiência em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha
tese não é somente
porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais
fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas,
com as
palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal
da
experiência.
O sujeito
moderno,
além de ser um sujeito informado que opina, além de estar
permanentemente
agitado e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer, que pretende
conformar o mundo, tanto o mundo “natural” quanto o mundo “social” e
“humano”,
tanto a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, segundo seu
saber, seu
poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta
pretensão. O
sujeito moderno é animado por portentosa mescla de otimismo, de
progressismo e
de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje
não pode,
algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe
como um
obstáculo à sua onipotência. O sujeito moderno se relaciona com o
acontecimento
do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade. Sempre
está a se
perguntar sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo,
produzir
algo, regular algo. Independentemente de este desejo estar motivado por
uma boa
vontade ou uma má vontade, o sujeito moderno está atravessado por um
afã de mudar
as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os
industrialistas,
os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os
cientistas, os
pedagogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua existência.
Nós somos
sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e
superestimulados, mas
também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque
sempre
estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade,
porque
estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos
parar, nada
nos acontece.
A
experiência, a
possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de
interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até
aqui, a
experiência e a destruição da experiência. Vamos agora ao sujeito da
experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da
opinião, do
trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder,
do
querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é
“o que nos
passa”, o sujeito da experiência seria algo como um território de
passagem,
algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de
algum modo,
produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios,
alguns
efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é “ce que nous
arrive”,
o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam
as
coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá
lugar. E
em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como
“aquilo
que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to us”, o sujeito da
experiência é
sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.
Em
qualquer caso,
seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como
espaço do acontecer,
o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua
passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua
abertura. Trata-se,
porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de
uma
passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma
receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma
abertura
essencial.
O sujeito
da
experiência é um sujeito “ex-posto”. Do ponto de vista da experiência,
o
importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a
“o-posição”
(nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de
impormos), nem
a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa
maneira
de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco.
Por isso
é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou
se
propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem
nada lhe
passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o
toca,
nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos
agora ao
que nos ensina a própria palavra experiência. A
palavra experiência vem
do latim experiri, provar (experimentar). A
experiência é em primeiro
lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se
prova. O
radical é periri, que se encontra também em periculum,
perigo. A
raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona
antes de tudo a idéia
de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos
derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô,
atravessar; pera, mais além; peraô,
passar através, perainô,
ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há
uma bela palavra que
tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês,
pirata. O
sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando
um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando
nele sua
oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior,
de estrangeiro,[4]
de exílio, de estranho[5]
e também
o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a
passagem de um
ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste”
de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão,
experiência é Erfahrung, que contém o fahren
de viajar. E do
antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr,
perigo, e gefährden,
pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra
experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Em
Heidegger
(1987) encontramos uma definição de experiência em que soam muito bem
essa exposição,
essa receptividade, essa abertura, assim como essas duas dimensões de
travessia
e perigo que acabamos de destacar:
[...]
fazer uma experiência
com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera
de nós,
que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso
não significa precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer”
significa aqui:
sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à
medida que
nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto,
deixar-nos
abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e
submetendo-nos a
isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia
para o
outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)
O sujeito
da
experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste
parágrafo, é
um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece
sempre
em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança
aquilo
que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito
definido por
seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus
poderes
precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em
contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor,
padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário,
o
sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte,
impávido,
inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido
por seu
saber, por seu poder e por sua vontade.
Nas duas
últimas
linhas do parágrafo, “Podemos ser assim transformados por tais
experiências, de
um dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode lerse outro
componente
fundamental da experiência: sua capacidade de formação ou de
transformação. É
experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos
acontece, e ao
nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência
está, portanto,
aberto à sua própria transformação.
5. Se a
experiência
é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de
passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a
experiência a
partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre
si
mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de
possibilidade
da ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito
sobre si
mesmo enquanto sujeito passional. E a palavra paixão pode referir- se a
várias
coisas.
Primeiro,
a um
sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém,
tampouco se é
simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente,
mas há na
paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou
suportar,
ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera
passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua
paixão. Às
vezes, inclusive, algo público, ou político, ou social, como um
testemunho
público de algo, ou uma prova pública de algo, ou um martírio público
em nome
de algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita solidão, no
mais
completo anonimato.
“Paixão”
pode
referir-se também a certa heteronomia, ou a certa responsabilidade em
relação
com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade ou a
autonomia.
Ainda que se trate, naturalmente, de outra liberdade e de outra
autonomia
diferente daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A paixão
funda
sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada,
inclusa,
fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está
fora de
mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me
apaixonar.
E
“paixão” pode
referir-se, por fim, a uma experiência do amor, o amor-paixão
ocidental,
cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um
desejo que
permanece desejo e que quer permanecer desejo, pura tensão
insatisfeita, pura
orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito
apaixonado
não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso, o sujeito
apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no
autodomínio, mas
está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado,
alucinado.
Na paixão
se dá uma
tensão entre liberdade e escravidão, no sentido de que o que quer o
sujeito é, precisamente,
permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por
quem está
apaixonado. Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre
felicidade e
sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado encontra sua
felicidade ou
ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe
proporciona. O que o sujeito ama é precisamente sua própria paixão. Mas
ainda:
o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que
não a
paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e
morte.
A paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no
horizonte
da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira
vida, como
a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de
possibilidade
de todo renascimento.
6. Até
aqui vimos
algumas explorações sobre o que poderia ser a experiência e o sujeito
da
experiência. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia e do
perigo, da
abertura e da exposição, da receptividade e da transformação, e da
paixão.
Vamos agora ao saber da experiência. Definir o sujeito da experiência
como
sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento,
de
compromisso ou ação. A experiência funda também uma ordem
epistemológica e uma
ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa
força se
expressa produtivamente em forma de saber e em forma de práxis. O que
ocorre é
que se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da
informação,
e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber
de
experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De
fato, a
experiência é uma espécie de mediação entre ambos. É importante, porém,
ter
presente que, do ponto de vista da experiência, nem “conhecimento” nem
“vida”
significam o que significam habitualmente.
Atualmente,
o
conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo
essencialmente
infinito, que somente pode crescer; algo universal e objetivo, de
alguma forma
impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos
apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver
fundamentalmente com o
útil no seu sentido mais estreitamente pragmático, num sentido
estritamente
instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente,
dinheiro;
tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação
acelerada como o dinheiro. Recordem-se as teorias do capital humano ou
essas retóricas
contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da
aprendizagem,
ou a sociedade da informação.
Em
contrapartida, a
“vida” se reduz à sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades
(geralmente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à
sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Pense-se no que significa
para nós
“qualidade de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse de uma
série de
cacarecos para uso e desfrute.
Nestas
condições, é
claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa
que a
apropriação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como
“conhecimento”
para as necessidades que se nos dão como “vida” e que são completamente
indistintas das necessidades do Capital e do Estado.
Para
entender o que
seja a experiência, é necessário remontar aos tempos anteriores à
ciência
moderna (com sua específica definição do conhecimento objetivo) e à
sociedade
capitalista (na qual se constituiu a definição moderna de vida como
vida
burguesa). Durante séculos, o saber humano havia sido entendido como um
páthei
máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por
aquilo que nos
acontece. Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como
alguém
vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo
como
vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da
experiência
não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do
sem-sentido
do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas
características
essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como
conhecimento.
Se a
experiência é
o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a
elaboração do
sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber
finito,
ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana
particular; ou,
de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao
homem
concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido
ou o
sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por
isso, o saber
da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente,
pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece,
duas
pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma
experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada
qual sua,
singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência
é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem
encarna. Não
está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem
sentido no
modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade
ou, em
definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua
vez uma
ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso,
também o
saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer
dizer,
ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa
experiência
seja de algum modo revivida e tornada própria.
A
primeira nota
sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade
existencial, isto
é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um
existente
singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que
nos
permite apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria,
pessoal,
como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe,
é algo cada
vez mais raro, quase tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos
existência
a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está
determinada
por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem
nenhuma
razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido
se vai
construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que
faz
impossível a experiência faz também impossível a existência.
7. A
ciência
moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais
elaborada em
Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um
elemento do método,
isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio
desse saber
que forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade, mas o
método da
ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o
domínio do
mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental. Mas aí a
experiência
converteu-se em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e
previsível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o
modo como
lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra
sua cara
legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a
verdade
do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é
um páthei
máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a
incerteza que
isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades
objetivas
que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Uma vez vencido e
abandonado o
saber da experiência e uma vez separado o conhecimento da existência
humana,
temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos
objetivos, uma
enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas
formas de
conhecimento que atuavam na vida humana, nela inserindo-se e
transformando- a.
A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já
não é o
saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens,
mas
algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não
pode
encarnar-se.
A segunda
nota
sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência
com
experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas
contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações
metodológicas e
metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é
singular. Se a
lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os
sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e
pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma
heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma
dialogia
que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona
homologicamente.
Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há
algo como
a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a
experiência tem
sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso,
posto que
não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um
objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma
abertura para
o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem
“pré-dizer”.
JORGE
LARROSA
BONDÍA é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha,
onde
atualmente é professor titular de filosofia da educação. Publicou
diversos
artigos em periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o
português: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana
(Autêntica, 1999).
Referências
Bibliográficas
HEIDEGGER,
Martin,
(1987). La esencia del habla. In: . De camino al habla.
Barcelona: Edicionaes del Serbal.
BENJAMIN,
Walter,
(1991). El narrador. In: . Para uma critica de la violencia y
otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss. (Ou, na edição
brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e política;
ensaios
sobre literatura e história da cultura. In: . Obras
escolhidas.
7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I).
[1] Conferência
proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas,
traduzida e
publicada, em julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao
trabalho
pedagógico das
unidades
da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.
A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, responsável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Revista Brasileira de Educação.
[2] Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como “Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se nos passe” (Nota do tradutor).
[3] Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss.
[4] Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
[5]
Em espanhol, extraño. (Nota do
tradutor)