Complexidade e Pensamento Complexo
(texto introdutório)
Humberto Mariotti
Nenhum homem é uma ilha;
qualquer homem é uma parte do todo.
A morte de qualquer homem me diminui, porque faço parte da humanidade;
assim,
nunca procures saber por quem dobram os sinos: eles dobram por ti.
John
Donne (1572-1631)
No trabalho com grupos, organizações
e instituições, tenho
utilizado o texto abaixo como instrumento de reflexão e mobilização.
Trata-se
de um resumo didático.
O que é complexidade
1. A
complexidade não é um conceito teórico e sim um fato.
Corresponde à multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua interação
da
infinidade de sistemas e fenômenos que compõem o mundo natural. Os
sistemas
complexos estão dentro de nós e a recíproca é verdadeira. É preciso,
pois,
tanto quanto possível entendê-los para melhor conviver com eles.
2.
Não importa o quanto tentemos, não conseguimos reduzir
essa multidimensionalidade a explicações simplistas, regras rígidas,
fórmulas
simplificadoras ou esquemas fechados de idéias. A complexidade só pode
ser
entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível —
o
pensamento complexo. Este configura uma nova visão de mundo, que aceita
e
procura compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar
a
multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas.
3.
Lembremos uma frase de Jean Piaget: "Os fenômenos
humanos são biológicos em suas raízes, sociais em seus fins e mentais
em seus
meios". A experiência humana é um todo bio-psico-social, que não pode
ser
dividido em partes nem reduzido a nenhuma delas. Primeiro, percebemos o
mundo.
Em seguida, as percepções geram sentimentos e emoções. Na seqüência,
estes são
elaborados em forma de pensamentos, que vão determinar o nosso
comportamento no
cotidiano.
4. O
modo como nos tornamos propensos (pela educação e pela
cultura) a pensar é que vai determinar as práticas no dia-a-dia, tanto
no plano
individual quanto no social. Do ponto de vista bio-psico-social, o
principal
problema para a implantação do desenvolvimento sustentado é a
predominância em
nossa cultura do modelo mental linear (ou lógica aristotélica, lógica
binária,
ou lógica do terceiro excluído).
5.
Por esse modelo, A só pode ser igual a A. Tudo o que não
se ajustar a essa dinâmica fica excluído. É a lógica do "ou/ou", que
deixa de lado o "e/e", isto é, exclui a complementaridade e a
diversidade. Desde os gregos esse modelo mental vem servindo de base
para os
nossos sistemas educacionais.
6.
Essa lógica também levou à idéia de que se B vem depois
de A com alguma freqüência, B é o efeito e A é a causa (causalidade
simples).
Na prática, essa posição gerou a crença (errônea) de que entre causas e
efeitos
existe sempre uma contigüidade ou uma proximidade muito estreita. Essa
concepção é responsável pelo imediatismo, que dificulta e muitas vezes
impede a
compreensão de fenômenos complexos, como os de natureza
bio-psico-social.
7. O
modelo mental cartesiano é indispensável para resolver
os problemas humanos mecânicos (abordáveis pelas ciências ditas exatas
e pela
tecnologia). Mas é insuficiente para resolver problemas humanos em que
participam emoções e sentimentos (a dimensão psico-social). Um exemplo:
o
raciocínio linear aumenta a produtividade industrial por meio da
automação, mas
não consegue resolver o problema do desemprego e da exclusão social por
ela
gerados, porque se trata de questões não-lineares. O mundo financeiro é
apenas
mecânico, mas o universo da economia é mecânico e humano.
8.
Desde os primeiros dias de escola (e de vida, dentro da
cultura), nosso cérebro começa a ser formatado pelo modelo linear. Para
ele, o
predomínio de um determinado pensamento com exclusão de quaisquer
outros é
"lógico" e "natural". Essa é a base das ideologias em geral
e do autoritarismo em particular. Desse modo, fenômenos como a exclusão
social
são também vistos como "lógicos", "naturais" e
"inevitáveis".
9. O
modelo mental linear-cartesiano está na base do
empirismo, que diz que existe uma única realidade, que deve ser
percebida da
mesma forma por todos os homens. Hoje, porém, sabe-se que não existe
percepção
totalmente objetiva.
10.
Por isso, nos últimos anos esse modelo de pensamento tem
sido questionado de muitas formas, inclusive pelo pensamento complexo.
Este
permite entender os processos autoprodutores, auto-organizados e
auto-sustentados, dos quais as sociedade humanas constituem um exemplo.
11.
O pensamento complexo baseia-se na obra de vários
autores, cujos trabalhos vêm tendo ampla aplicação em biologia,
sociologia,
antropologia social e desenvolvimento sustentado. Uma de suas
principais linhas
é a biologia da cognição, desenvolvida por Humberto Maturana e
Francisco
Varela, que sustenta que a realidade é percebida por um dado indivíduo
segundo
a estrutura de seu organismo num dado momento. Essa estrutura muda
sempre, de
acordo com a interação do organismo com o meio.
12.
A diversidade de visões não impede (pelo contrário,
sugere) que cheguemos a acordos (consensos sociais) sobre o mundo em
que
vivemos. Esses consensos é que determinarão as práticas sociais. Para
que
possamos chegar a consensos que levem em conta o respeito à diversidade
de
pontos de vista é necessário observar alguns parâmetros básicos:
O que chamamos
de racional é o resultado de nossas
percepções. No início, elas surgem como sentimentos e emoções. Só
depois é que
se transformam em pensamentos, que geram discursos, que por fim são
formalizados como conceitos.
O racional vem
do emocional, não o contrário. Isso não quer
dizer que devamos deixar de ser racionais. Significa apenas que
precisamos
aprender a harmonizar razão e emoção, pensamento linear e pensamento
sistêmico.
Essa é a proposta básica do modelo complexo.
Uma cultura é
uma rede de conversações que define um modo de
viver. Toda cultura é definida pelos discursos que nela predominam.
Estes se
originam nas conversações, que começam entre indivíduos, estendem-se às
comunidades e por fim a todo o âmbito cultural.
Os consensos sociais (que determinam, por exemplo, o que é
permitido e o que não é, o que é real e o que é imaginário numa
determinada
cultura) resultam desses discursos, que por sua vez são oriundos das
redes de
conversação.
Cresce-se numa cultura vivendo nela
como um indivíduo
participante da rede de conversações que a define. Crescer numa cultura
significa, então, adquirir e desenvolver cidadania.
Uma cultura que não desenvolve a
cidadania de seus membros
não cresce, permanece subdesenvolvida. Logo, não pode sequer começar a
pensar
em desenvolvimento sustentado.
Como vimos há pouco, todo sistema
racional começa no
emocional: o que pensamos vem do que sentimos. É por isso que nenhum
argumento
racional pode convencer as pessoas que já não estejam desde o início
convencidas ou propensas a algo.
Os argumentos racionais são úteis
para iniciar conversações.
Mas se eles insistem em permanecer lineares (ou seja, excludentes,
binários,
apegados ao "ou/ou"), isso significa que querem manter-se como os
únicos "verdadeiros", isto é, que não respeitam a diversidade. E
esta, como sabemos, é uma das bases da cidadania.
13. Dessa maneira, não se pode
desenvolver uma compreensão
satisfatória da cidadania e do desenvolvimento sustentado com base
apenas no
pensamento linear.
Por outro lado, o pensamento
sistêmico, quando isolado, é
também insuficiente para as mesmas finalidades.
Há, portanto, necessidade de
complementaridade entre esses
dois modelos mentais. O pensamento linear não se sustenta sem o
sistêmico e
vice-versa. O desenvolvimento sustentado precisa de um modelo de
pensamento que
lhe dê base e estrutura. Este é o pensamento complexo.
Como os processos de pensamento
hegemônicos em nossa cultura
estão unidimensionalizados pelo modelo linear, só um esforço
educacional que
comece na infância terá possibilidades de reverter de modo
significativo esse
quadro. Isso implica pelo menos o prazo de uma geração.
No caso dos adolescentes e adultos de
hoje, é possível
alcançar mudanças substanciais nessa área, desde que eles sejam
educacional e
culturalmente sensibilizados.
Para isso, é fundamental a atuação
das entidades do terceiro
setor (entidades comunitárias), porque por meio delas é possível
questionar a
rigidez institucional e o modelo mental linear-binário que, em geral,
caracteriza as estruturas governamentais.
Pensamentos
linear, sistêmico e complexo
1. Em primeiro lugar, lembremos o
exemplo de Joseph O’Connor
e Ian McDermott. A Terra é plana? É claro que sim: basta olhar o chão
que
pisamos. No entanto, como mostram as fotografias dos satélites e as
viagens
intercontinentais, ela é redonda. Concluímos então que do ponto de
vista do
pensamento linear, de causalidade simples e imediata, a Terra é plana.
Uma
abordagem mais ampla, porém, mostra que ela é redonda e faz parte de um
sistema.
2. Precisamos dessas duas noções para
as práticas do
cotidiano. Mas elas não são suficientes, o que nos leva a ampliar o
exemplo
desses autores e dizer que
a) do ponto de vista do pensamento
linear a Terra é plana;
b) pela perspectiva do pensamento sistêmico ela é redonda;
c) por fim, do ângulo do pensamento complexo — que engloba
os dois anteriores — ela é ao mesmo tempo plana e redonda.
3. Recapitulemos:
O pensamento linear, ou
linear-cartesiano, é a tradução
atual da lógica de Aristóteles. Trata-se de uma abordagem, necessária
(e
indispensável) para as práticas da vida mecânica, mas que não é
suficiente nos
casos que envolvem sentimentos e emoções. Não é capaz de entender e
lidar com a
totalidade da vida.
O pensamento sistêmico é um
instrumento valioso para a
compreensão da complexidade do mundo natural. Porém, quando aplicado de
modo
mecânico, proporciona resultados só operacionais, que não são
suficientes para
compreender e abranger a totalidade do cotidiano das pessoas.
Por outras palavras, o pensamento
sistêmico pode
proporcionar bons resultados no sentido mecânico-produtivista do termo,
mas não
basta para lidar com a complexidade dos sistemas naturais, em especial
os
humanos.
É indispensável ter sempre em mente
que, em que pese a sua
importância, o pensamento sistêmico é apenas um dos componentes do
pensamento
complexo. Por isso, quando utilizado, como tem sido, separado da idéia
de
complexidade, diminuem a sua eficácia e potencialidades.
O pensamento complexo resulta da
complementaridade (do
abraço, como diz Edgar Morin) das visões de mundo linear e sistêmica.
Essa
abrangência possibilita a elaboração de saberes e práticas que permitem
buscar
novas formas de entender a complexidade dos sistemas naturais e lidar
com ela,
o que, é claro, inclui o ser humano e suas culturas. As conseqüências
práticas
dessa visão bem mais ampla são óbvias.
Alguns
princípios do pensamento complexo
- Tudo está
ligado a tudo.
- O mundo natural é constituído de opostos, muitos dos quais
são ao mesmo tempo antagônicos e complementares.
- Toda ação implica um feedback.
- Todo feedback resulta em novas ações.
- Vivemos em círculos sistêmicos e dinâmicos de feedback, e
não em linhas estáticas de causa-efeito imediato.
- Por isso, temos responsabilidade em tudo o que
influenciamos.
- O feedback pode surgir bem longe da ação inicial, em
termos
de tempo e espaço.
- Todo sistema reage segundo a sua estrutura.
- A estrutura de um sistema muda sempre, mas não a sua
organização.
- Os resultados nem sempre são proporcionais aos esforços
iniciais.
- Os sistemas funcionam melhor por meio de suas ligações
mais
frágeis.
- Uma parte só pode ser definida como tal em relação a um
todo.
- Nunca se pode fazer uma coisa isolada.
- Não há fenômenos de causa única no mundo natural.
- As propriedades emergentes de um sistema não são
redutíveis
aos seus componentes.
- É impossível pensar num sistema sem pensar em seu
contexto
(seu ambiente).
- Os sistemas não podem ser reduzidos aos seus ambientes e
vice-versa.
Alguns
benefícios do pensamento complexo
- Facilita a
percepção de que a maioria das situações segue
determinados padrões.
- Facilita a percepção de que é possível diagnosticar esses
padrões (ou arquétipos sistêmicos, ou modelos estruturais) e, assim,
intervir
para modificá-los (no plano individual, no trabalho e em outras
circunstâncias).
- Facilita o desenvolvimento de melhores estratégias de
pensamento.
- Permite não apenas entender melhor e com mais rapidez as
situações, mas também ter a possibilidade de mudar a forma de pensar
que levou
a elas.
- Permite aperfeiçoar a comunicações e as relações
interpessoais.
- Permite perceber e entender as situações com mais
clareza,
extensão e profundidade.
- Por isso, aumenta a capacidade de tomar decisões de
grande
amplitude e longo prazo.
O
que se aprende por meio do pensamento complexo
- Que pequenas ações podem levar a
grandes resultados (efeito
borboleta).
- Que nem sempre aprendemos pela experiência.
- Que só podemos nos autoconhecer com a ajuda dos outros.
- Que soluções imediatistas podem provocar problemas ainda
maiores do que aqueles que estamos tentando resolver.
- Que não existem fenômenos de causa única.
- Que toda ação produz efeitos colaterais.
- Que soluções óbvias em geral causam mais mal do que bem.
- Que é possível (e necessário) pensar em termos de
conexões,
e não de eventos isolados.
- Que os princípios do pensamento sistêmico podem ser
aplicados a qualquer sistema.
- Que os melhores resultados vêm da conversação e do
respeito
à diversidade de opiniões, não do dogmatismo e da unidimensionalidade.
- Que o imediatismo e a inflexibilidade são os primeiros
passos para o subdesenvolvimento, seja ele pessoal, grupal ou cultural.
© Humberto Mariotti, 2000
Este texto, com modificações, faz
parte do livro de
Humberto Mariotti As paixões do ego: complexidade, política e
solidariedade.
São Paulo: Editora Palas Athena, 2000.
Humberto
Mariotti é Professor e Coordenador do Centro de
Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor
em
desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e
internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da
Complexidade da
Business School São Paulo.
ESCOLA DE DIÁLOGO DE SÃO PAULO - CRP 06/4020/J
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