Ao longo da história, nós, seres
humanos, temos buscado
maneiras de entender o mundo em que vivemos e lidar com ele. Essas
tentativas
têm produzido uma série de visões, de teorias que pomos em prática em
relação a
nós mesmos, aos que nos são próximos, às sociedades em que vivemos e à
natureza. As maneiras de avaliar se essa ou aquela visão de mundo é
“boa” ou
“má”, “certa” ou “errada”, vêm aos poucos se modificando.
Nos últimos tempos, cada vez mais se
adota em relação a
essas teorias o seguinte critério: não se trata de saber se um conjunto
de
idéias está certo ou errado do ponto de vista teórico. O que importa é
conhecer
quais são os valores em que ele se baseia e quais os resultados de suas
aplicações ao cotidiano. Em outras palavras, que conseqüências éticas
emergem
de sua prática.
Hoje, e cada vez mais, cresce o
número de pessoas que estão
atentas aos resultados não apenas quantitativos, mas aos que se referem
às
relações qualitativas entre as instituições, as organizações e os
grupos
humanos. Trata-se de avaliar as práticas sociais, desde o âmbito
macro-estrutural das interações entre as instituições até o plano
microfísico
dos intercâmbios entre grupos humanos locais.
Dessa maneira, torna-se necessário
examinar os ideários não
apenas como modelos teóricos absolutos, válidos para todos. É
indispensável
investigar também o modo pelo qual eles foram produzidos — qual a
maneira de
pensar que os gerou e as conseqüências éticas de tudo isso. É dentro
desse
espírito que examinarei aqui a competitividade e suas relações com a
violência
estrutural. São dois fenômenos atualíssimos e, como se verá, bem mais
interligados do que parece à primeira vista.
Neste texto, seguindo a orientação do
meu livro As paixões
do ego: complexidade, política e solidariedade, defino a
competitividade como
uma radicalização da competição, o que a torna predatória e portanto
desvantajosa para todos os envolvidos. A ela fomos levados por
circunstâncias
culturais, que não podem ser entendidas de modo adequado pelo modelo
mental
predominante em nossas sociedades. É preciso, pois, buscar outro meios
de
compreensão.
Para que isso possa ser feito com um
mínimo de eficácia, é
necessário um instrumento epistemológico que englobe duas
características
principais: a) clareza; b) verificabilidade nos fenômenos do dia-a-dia.
Esse
modelo não só existe, como vem sendo aplicado com proveito e eficácia
nos
últimos anos. Trata-se do pensamento complexo, proposto por Edgar
Morin1. Para
entendê-lo e aprender a usá-lo, é necessária a introdução que se segue.
Uma
vida dividida
Como se sabe, o ser humano se
caracteriza por dois modos
básicos de vida: um orgânico, animal, e outro cultural. Neste último,
ele
elabora um conjunto de práticas e realizações a que se deu o nome de
técnicas.
Em nosso duplo âmbito de existência, exercemos de um lado a vida
fisiológica do
corpo, que implica a ingestão, a digestão, a excreção, o acasalamento e
a
reprodução. A essas atividades somamos as culturais — as realizações da
ciência
e da técnica. Ao seu conjunto pode-se chamar de vida mecânica. A par
dessa
dimensão, sabemos que a vida humana inclui sentimentos, emoções e um
âmbito
espiritual. A esse outro domínio pode-se dar o nome de vida
não-mecânica.
Esses dois modos básicos de existir
se entrelaçam e se
alimentam mutuamente de modo constante, de maneira que podemos dizer
que são
complementares. Assim, de um lado estão as necessidades mecânicas, que
derivam
de termos um corpo concreto, que vive em interação com um mundo natural
também
concreto. De outra parte, nossa existência inclui dimensões
intangíveis, como
os já mencionados sentimentos, emoções e a espiritualidade.
Se considerados em separado, esses
modos de existir se
revelam necessários mas não suficientes. Isso significa que as práticas
da vida
mecânica são indispensáveis, mas não bastantes em relação à totalidade
do nosso
existir. O mesmo vale para a dimensão não-mecânica do processo vital. A
condição humana exige que elas interajam o tempo todo, em
complementaridade e
sinergia.
Desde o nascimento, nosso cérebro é
programado para lidar
com esses dois modos. Para as necessidades da vida mecânica, ele opera
com a
lógica da causalidade simples — o pensamento linear. Trata-se do modelo
mental
do "ou/ou", do sim/não. É um modo operativo que não admite
meio-termo: ou amigo ou inimigo; ou bem ou mal; ou certo ou errado.
Como é
óbvio, trata-se de um sistema adequado à concretude e às contingências
da
corporeidade. É, por natureza e necessidade, uma lógica de exclusão.
No outro pólo, como mostra a
experiência, a vida com
freqüência nos põe diante de determinadas circunstâncias nas quais o
raciocínio
do sim/não, do "ou/ou", não é satisfatório. É o caso das situações em
que nos vemos às voltas com sentimentos e emoções, muitos dos quais
contraditórios. Nesses momentos torna-se necessário pensar em termos
mais
amplos, em termos de “talvez” e de “e se?”. Torna-se preciso lidar com
valores
e com a aleatoriedade. Chamamos esse padrão mental de pensamento
sistêmico. É,
por natureza e necessidade, um modelo de inclusão.
Ao nascermos, esses dois modos
convivem numa relação
circular, recorrente: o linear influencia o sistêmico, que retroage
sobre ele e
assim por diante. No entanto, à medida que crescemos a educação e a
cultura nos
tornam seres divididos. Acostumamo-nos a raciocinar desta maneira: há
situações
nas quais se deve usar o modelo mental linear: são as relativas à vida
mecânica. E há circunstâncias em que é necessário pensar de modo
sistêmico: são
as da existência não-mecânica.
Achamos que essa separação resolve
tudo e acomoda as coisas,
e na verdade ela não deixa de ser útil para fins didáticos. Mas não nos
limitamos a esse uso: conforme o caso, “desativamos” um sistema de
pensamento e
“ativamos” o outro. Ao reduzir tudo às partes isoladas, praticamos o
reducionismo cartesiano. Ao insistir em ver tudo em termos de
totalidade, pomos
em prática o chamado sistemismo reducionista. Em ambos os casos não
percebemos
que estamos, no fim das contas, usando o modelo linear: ou pensamos de
modo
linear ou pensamos de forma sistêmica. Dessa maneira, mesmo quando
utilizamos o
pensamento sistêmico o fazemos com exclusão do linear e vice-versa.
Acontece, porém, que no mundo natural
as coisas funcionam de
maneira simultânea, e não mudarão só por causa de nossas teorias. Ao
não
permitir que os modelos mentais linear e sistêmico se complementem,
construímos
a base de boa parte de nossos problemas. Apesar de sabermos que a vida
mecânica
e a não-mecânica são inseparáveis e sempre interagem (a vida é uma só:
não
somos máquinas que podem ser ligadas e desligadas à vontade),
continuamos a
viver como se ela fosse um processo de ou inclusão/ ou exclusão.
O modo como o pensamento sistêmico é
utilizado por algumas
consultorias empresariais é um bom exemplo disso. Trata-se de uma
distorção que
surge todas as vezes em que esse modelo é aplicado sem levar em conta a
idéia
de complexidade. Como se sabe, a metodologia de uso desse modo de
pensar foi
formalizada em termos de padrões — os chamados arquétipos do pensamento
sistêmico —, que têm se mostrado eficazes para resolver alguns
problemas
específicos.
Contudo, talvez contra os propósitos
de seus idealizadores,
os arquétipos vêm sendo utilizados de forma esquemática demais, o que
tem
levado a conclusões que tendem a reduzir os fenômenos ao âmbito da
totalidade.
Esse modo de utilização parte da suposição de que um sistema é apenas
um
composto de partes interdependentes e que a soma delas é sempre
superior ao
todo. Todavia, a experiência mostra que esse nem sempre é o caso,
porque o todo
e as partes interagem de forma contínua, e portanto não são mutuamente
redutíveis de modo fixo. As abordagens que ignoram essa condição
revelam
desconhecimento dos três princípios fundamentais do pensamento complexo2,
que
são indispensáveis para evitar o sistemismo reducionista e suas
conseqüências
enganosas, das quais a principal é a confusão entre complexidade e
complicação.
Tal equívoco se deve ao afã de
reduzir tudo ao operacional:
no lugar de uma complexidade a ser entendida e vivida, põe-se uma
complicação a
ser simplificada. Nessas circunstâncias, o pensamento sistêmico acaba
sendo
usado para produzir resultados lineares. Não fosse isso bastante, ele
tem sido
apresentado como “vantagem competitiva” — o que vem ocorrendo com uma
freqüência muito maior do que se imagina. Em suma: em muitos casos, os
arquétipos
são comercializados como “ferramentas de mudança”
mecânico-produtivistas. Isto
é, são utilizados de modo necessário, mas não suficiente.
Isso mostra como o ânimo para a
competição predatória está
bem mais arraigado do que imaginamos. Por que agimos assim? Se nossos
neurônios
estão programados para a interação harmoniosa e simultânea, entre os
modos
linear e sistêmico de pensar — que nos permite adaptar-nos às situações
do
processo vital —, por que nos dividimos em dois sistemas de pensamento
e, pior
ainda, por que fazemos com que um exclua o outro?
O
natural e o cultural
Apesar de a natureza nos ter
preparado para utilizar esses
dois modelos mentais, ao separá-los nossa cultura estabeleceu entre
eles uma
competição. Como resultado, o modelo linear passou a predominar de tal
maneira
que quase excluiu o pensamento sistêmico daquilo que chamamos de “vida
prática”. Em nosso cotidiano eminentemente quantitativo, o modelo
sistêmico foi
relegado a um plano secundário. Preferimos um padrão que exclui a um
que
inclui, quando deveríamos seguir a natureza e aceitar a circularidade
entre um
e o outro. Esse fenômeno em si já é uma violência. De fato, ele
constitui o
fundamento de todas as manifestações violentas que permeiam as nossas
sociedades, e está presente em quase todos os nossos relacionamentos
com o
mundo.
As maneiras como essa situação foi
criada ao longo e nossa
evolução são expostas em detalhe por Gebser3,
Kamenetzky4, Mariotti5 e
Maturana
& Verden-Zöller6, entre vários outros.
Em suma, vivemos em uma cultura
cujos processos mentais são formatados pelo pensamento linear. Dessa
forma —
como é característico dos fenômenos culturais —, esse modo de pensar é
visto
como a única maneira possível de lidar com o mundo, e por isso as
conclusões
dele derivadas são tidas como verdades incontestáveis.
Se a formatação linear de nossa mente
é um processo cultural
e não natural, as práticas daí derivadas são também culturais. Podem
portanto
ser modificadas, desde que haja mudança de cultura. É claro que isso se
aplica
à competitividade, como veremos adiante. Mas trata-se de uma alteração
nada
fácil, porque essa formatação, como mostraram Gimbutas7
e Eisler8, entre
outros, deriva de um processo estabelecido há milênios. Não é apenas,
como
muitos acreditam, o resultado de um “paradigma” que surgiu com o
pensamento de
Newton, desenvolveu-se com Descartes e consolidou-se com o
cientificismo do
século 19.
De todo modo, vivemos em uma cultura
na qual predominam os
valores gerados pela exclusão do modelo mental dominante: ou eu ou o
outro; ou
venço ou sou vencido; ou elimino ou sou eliminado. Eis a essência da
competitividade. Ela é um valor produzido pelos nossos
condicionamentos, e
desse modo é justificável (e justificada) por esses mesmos
condicionamentos.
A competitividade é uma expressão do
embate entre os valores
humanos mecânicos e os não-mecânicos, cujo desfecho foi o predomínio
dos
primeiros. É uma das faces da dissociação que nossa cultura promoveu
entre a
razão e os sentimentos. Segundo o projeto da modernidade, a principal
manifestação da idéia de progresso — a prosperidade material — deveria
ser
acompanhada de uma evolução da inteligência, por meio da qual as
conseqüências
do darwinismo social pudessem ser ao menos atenuadas. Se era inevitável
a
exclusão — pensava-se —, que pelo menos os vencedores possam fazer
alguma coisa
pelos vencidos.
Nos últimos tempos, ao que tudo
indica, aumenta a
consciência da importância dessa posição — mas nem tanto. A noção de
competitividade, que hoje orienta muitas das nossas políticas públicas
e
práticas sociais continua baseada em filosofias como a de Thomas
Hobbes, entre
outros. Pressupõem que a maldade é intrínseca e dominante no ser humano.
Sabemos que economistas clássicos,
como David Ricardo e os
da escola de Manchester, transportaram a idéia da hostilidade básica
entre os
homens para a área econômica: o progresso humano baseia-se na
competição sem
tréguas. Depois deles, essa mesma orientação foi transplantada para a
biologia.
Nessa linha de pensamento, há quem sustente que, ao estimular a
competitividade, o capitalismo nada mais faz do que seguir a natureza
humana.
Tais pontos de vista permeiam a nossa
cultura e vêm sendo
repetidos ao longo do tempo. Para muitos, esse fato torna quase
impossível
acreditar-se em qualquer tipo de mudança. É como se apenas pudéssemos
pensar em
modificações, mas nunca praticá-las: será sempre assim porque sempre
foi assim.
Nessa ordem de idéias, a noção de competitividade continua muito ligada
ao
darwinismo social e à questão da presença do mal no coração do homem.
Três
modos de pensar
Por ser orientada por um modelo
mental excludente, é claro
que a competitividade tende a excluir. Acostumados que estamos a esse
modo de
pensar, e habituados a levá-lo à prática, não percebemos que cedo ou
tarde ele
produzirá a nossa própria exclusão. Ainda assim, é preciso deixar claro
que não
se trata de adotar em relação à competitividade uma atitude maniqueísta
e
condenatória. É importante aprender a pensá-la de outras maneiras, a
fim de
poder avaliar se suas conseqüências éticas (ou seja, seus resultados
práticos)
são as que na verdade desejamos para construir uma vida melhor.
Estamos, pois, diante
da seguinte situação:
a) é inócuo analisar a
competitividade apenas do ponto de
vista linear, porque foi esse modelo mental que a criou e ainda a
alimenta;
b) examinar a competitividade só do
ponto de vista sistêmico
(o que inclui vê-la do ângulo dos sentimentos e emoções) é também uma
postura
improdutiva. No limite, ela levará a conclusões emocionais e por isso
mesmo
tendentes a moralismos, pieguices e condenações sem fundamentos;
c) é preciso, pois, investigá-la de
uma perspectiva não
reducionista — o pensamento complexo.
A complexidade não é um conceito
teórico. Ela corresponde à
multiplicidade e à contínua interação da infinidade de sistemas e
fenômenos que
compõem o mundo natural. Os sistemas complexos estão dentro de nós e a
recíproca é verdadeira. Assim, é preciso conhecê-los. Como já vimos, o
pensamento complexo é um modelo desenvolvido por Edgar Morin para lidar
com a
complexidade. Para explicá-lo, costumo utilizar um exemplo. Imaginemos
um
indivíduo em uma praia. Se lhe perguntarmos se a Terra é plana ou
redonda, ele
responderá que é plana: “Basta ver a areia sob os nossos pés e observar
o
oceano”, dirá.
São dados diretos, que podem ser
quantificados: de onde esse
observador está até o mar a distância é de, digamos, 50 metros; da
costa do
Brasil à cidade do Cabo, na África do Sul, são tantos mil quilômetros;
e assim
por diante. Eis o ponto de vista linear. Baseia-se na relação imediata
entre causa
e efeito. É esse modo de pensar que faz com que o indivíduo do nosso
exemplo
imagine que, se está separado do mar por 50 metros, e da África por
tantos mil
quilômetros, ele não faz parte desses ambientes.
Se lhe mostrarmos uma fotografia da
Terra tirada da Lua, ou
de um satélite artificial em órbita terrestre, e repetirmos a pergunta,
ele
dirá que a Terra é redonda. Intuirá também que ela não só é redonda
como faz
parte de um sistema. Terá então mais facilidade para compreender que na
realidade não está separado desse sistema, como parecia quando estava
na praia.
E agora, com toda probabilidade, verá a si próprio como parte dele. A
esse
segundo modo de raciocinar chamamos de pensamento sistêmico.
Façamos agora a esse mesmo indivíduo
uma terceira pergunta:
afinal de contas, a Terra é plana ou redonda? Com base nas experiências
anteriores, ele responderá que ela é ao mesmo tempo plana e redonda.
São
percepções que não se excluem: elas mantêm entre si uma relação ao
mesmo tempo
antagônica e complementar. O observador já não pode sentir-se excluído
de seu
processo de conhecimento. Eis o pensamento complexo.
No mundo natural não há fenômenos de
causa única. Além
disso, as coisas acontecem de maneira simultânea e não de modo
seqüencial. A
seqüencialidade é uma criação nossa — uma invenção de observadores que
acham
que estão separados dos processos que observam. E assim nos colocamos,
porque
nossa mente condicionada não nos permite uma visão de mundo mais ampla.
É o que
aprendemos, quando utilizamos o pensamento complexo como sistema de
conhecimento.
A complexidade do mundo só pode ser
bem entendida por um
sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível como o complexo.
Ele
configura uma visão que aceita e procura entender as mudanças
constantes do
real e não pretende negar a contradição, a multiplicidade, a
aleatoriedade e a
incerteza, e sim conviver com elas. Em suma, é um modo de pensar que
inclui,
que aglutina. Mas que ao mesmo tempo não perde de vista que essa
aglutinação é
um processo dinâmico, no qual o todo não pode ser reduzido às partes
nem
vice-versa.
Competição
predatória, exclusão e violência
Eis a palavra-chave: inclusão. Para
seres gregários como
nós, ser incluído não é apenas um evento fortuito da vida: é uma
necessidade
fundamental. Um ser humano isolado é algo inconcebível. Mesmo quando um
indivíduo se separa dos demais e vai viver como ermitão, ele só existe
como
ente isolado em relação à comunidade de que decidiu se afastar. É ela
que
confirma o seu isolamento. Necessitamos do outro para que ele confirme
a nossa
existência. Só somos humanos quando existencialmente confirmados.
O outro precisa ser respeitado porque
é o outro, não por ser
rico, erudito, porque é um grande técnico ou tem poder político e
econômico.
Respeitá-lo significa reconhecer em primeiro lugar a sua legitimidade
como ser
humano. Os demais atributos podem ser importantes, mas vêm depois.
Desrespeitar
essa premissa é uma violência.
Martin Heidegger9
escreveu que uma das características
primordiais do ser humano existente — o Dasein — é que por existir no
mundo
precisa preocupar-se com ele, cuidar dele. A esse cuidado o filósofo
chamou de
Sorge. Preocupar-se com o todo, zelar por ele, é uma forma de saber-se
participante, ligado e responsável. A violência fundamental, portanto,
é aquela
que retira do Dasein a noção de pertencer à totalidade. Foi esse
caminho que
nossa cultura escolheu, ao privilegiar as partes, estimular a
fragmentação e
achar que o mundo é um objeto de uso do qual não participamos.
A competição sempre existiu e sempre
existirá. É fácil
lembrar exemplos históricos, e mesmo situações tiradas do mundo
natural, que
mostram que as espécies competem entre si. Mas a competitividade é
diferente:
corresponde à alienação do Dasein, fenômeno que nos levou à competição
predatória, que não visa apenas a sobrevivência, mas sobreviver com
eliminação
do competidor. Sob essa ótica não basta vencer: a vitória tem mais
sabor quando
inclui a destruição do outro. Nos últimos tempos, a prevalência da
competitividade se acentuou por meio da combinação de múltiplos fatores10
que
transformaram a competição em ideologia.
O pensamento linear sustenta que as
causas são imediatamente
anteriores aos efeitos ou estão muito próximas deles, e que essas
relações
ocorrem sempre no mesmo contexto de espaço e tempo. Embora haja autores
que
estudem as relações entre a complexidade, o pensamento sistêmico e a
economia,
não há dúvida de o pensamento linear é o utilizado pela grande maioria
para
lidar com os processos econômicos. Mas é preciso não esquecer que ele
subestima, ou mesmo ignora, as dimensões não-mecânicas da existência
humana. Em
conseqüência, muitas vezes cria cenários nos quais o ser humano é
dividido,
utilizado e por fim excluído.
Trata-se, enfim, de uma
super-simplificação da condição
humana, que pretende resolver problemas complexos por meio de um
instrumento
simplificador. É por meio desse ideário (hoje, convém repetir,
convertido em
ideologia) que nos propomos a buscar uma boa qualidade de vida.
Entretanto, a
observação mostra o que na realidade ocorre: essa qualidade, além de
ser
acessível a poucos, passo a passo se transforma no subproduto de um
processo
muito mais amplo — que começa pela negação do humano e acaba na
exclusão
social, na violência e na morte.
O
mais trágico dessa
violência é que ela atinge a todos. É o que mostra a experiência do
cotidiano.
Se de um lado a massa excluída cresce, do outro, em muitas cidades,
aumenta o
número de pessoas que se entrincheiram atrás de grades, cercas, muros,
que se
confina no universo dos condomínios fechados, dos shopping centers,
etc. É a
massa dos que querem sair com tranqüilidade e não podem.
Como sabemos, em muitos países os
assaltos, os seqüestros,
as invasões de terras e outras ocorrências restringem cada vez mais o
bem-estar
que só a liberdade e a tranqüilidade podem trazer. É muito difícil
entender
considerações como estas por meio do raciocínio linear. A experiência
cotidiana
acabará por nos levar a essa compreensão — mas isso demandará muito
tempo e
terá um custo muito alto. Esse fato é grave, porque enquanto não houver
uma
percepção mais ampla da situação não se pode pensar em soluções
eficazes. É
certo que algum grau de entendimento já existe. Mas ele é superficial
e, no
mais das vezes, mantém-se num plano apenas local.
De todo modo, as pessoas pressentem
que as soluções não
podem ser tão limitadas, embora o tema seja em geral discutido como se
esse
pressentimento não existisse. Para tanto contribui muito a nossa
linguagem,
que, por ser fruto de uma cultura unidimensionalmente formatada, não
consegue
exprimir de modo satisfatório situações sistêmicas e complexas. Cedo ou
tarde,
teremos de reconhecer que é indispensável utilizar um modelo mental que
nos
permita perceber que os valores materiais (os da vida mecânica),
aliados aos
não-materiais (os da vida não-mecânica), compõem um quadro de
referência mais
justo para definir o que é qualidade de vida.
Por
enquanto, porém,
a superficialidade faz com que as questões humanas sejam
super-simplificadas, o
que na prática se traduz por uma abordagem imediatista do viver. Por
essa ótica
fica difícil entender, por exemplo, que a perda progressiva das
liberdades
civis atinge também os que têm emprego, bens e dinheiro. Afinal, não
poder sair
à rua sem medo de ser assaltado, seqüestrado, assediado, etc., é uma
forma de
perda de liberdade. Trata-se de um efeito não contíguo às causas — e
por isso
de difícil compreensão por nossa mente condicionada.
Agora fica mais fácil entender que o
fundamento da violência
estrutural não é a competição — e nem mesmo a competitividade como tal
—, mas
sim a formatação da mente de nossa cultura pelo modelo mental linear.
Em nossa
cultura imediatista e de visão estreita, imaginamos que do pensamento
passamos
à ação e desta aos resultados, isto é, às conseqüências. Não percebemos
que
para que surja o pensamento é necessária a existência de uma estrutura
capaz de
produzi-lo. É ela que está formatada pelo modelo linear, que opera do
seguinte
modo:
Estrutura
(linearmente formatada) -> Pensamento Linear
-> Ação -> Conseqüências.
No padrão linear o pensamento não
coteja seus resultados com
sua estrutura, isto é, não retroage sobre si mesmo, não se
auto-examina, não se
questiona. Desse modo, dificilmente se considerará responsável pelas
conseqüências de sua aplicação prática. Com um modelo como esse, não é
fácil
pensar em termos de responsabilidade social.
Na abordagem complexa essa retroação
existe: o pensamento
questiona a si próprio não apenas depois de formado mas antes mesmo de
se
estruturar, isto é, ainda no plano da intenção. Investiga-se, assim, o
próprio
modelo mental que produz o pensar. Eis por que esse modo epistêmico é
tão
importante para o desenvolvimento da responsabilidade social, entre
outras
tantas aplicações. É o que se pode perceber nos exemplos abaixo:
1.
Pensamento Linear:
Estrutura (linearmente formatada) -> Pensamento linear ->
Competitividade
-> Violência estrutural.
2. Pensamento Sistêmico: ...
Estrutura (linearmente
formatada) -> Pensamento linear -> Competitividade
-> Violência
estrutural -> Estrutura (linearmente formatada) -> ...
É essa retroação, essa autocrítica
circular, que falta à
nossa cultura. Até pouco tempo não tínhamos instrumentos de
conhecimento que
nos permitissem tal abordagem. Mesmo nos dias atuais esse instrumental
ainda
não está disponível para a grande maioria das pessoas, embora em vários
países,
inclusive no Brasil, haja centros empenhados em estudá-lo e utilizá-lo.
Em suma: a violência estrutural
alimenta a si própria,
porque o modelo mental linear predominante em nossa cultura não
retroage sobre
si mesmo, não se auto-investiga. Por isso, enquanto se esgrimem
argumentos
“lógicos” (lineares, em sua maioria) e se trocam acusações (também
baseadas
nessa noção limitada de causa e efeito), nossa situação se agrava a
olhos
vistos.
Neste ponto, pode-se perceber com
clareza que não se trata
de ver a competitividade de maneira moralista e quixotesca. É preciso
examinar
o modelo mental que a constituiu e questioná-lo, na busca de novas
formas de
abordar a questão e seus múltiplos desdobramentos. Já não há dúvidas de
que
isso pode ser feito na prática.
Os exemplos são muitos. Alguns deles
estão descritos por
Mario Kamenetzky11, que estudou as modificações
da consciência coletiva em
relação a transformações econômicas, políticas e sociais. Merecem
especial
menção suas experiências com modificações de consciência coletiva em
Sri Lanka,
país no qual testemunhou mudanças em direção à cooperação em
comunidades nas
quais predominava não apenas a competitividade, mas a violência aberta.
A
indispensabilidade do outro
A noção invariável do outro como
adversário, como inimigo a
exterminar, é uma das marcas da competitividade de nossa cultura. Por
meio dela
vivemos no cotidiano essa paranóia. Trata-se de uma visão de mundo que
exclui a
possibilidade de que o outro possa ser superado pela competência, mas
preservado para se tornar capaz de aprender a vencer, isto é, aprender
a ser
competente. O ideal da competitividade, pelo contrário, é vencer de tal
modo
que o vitorioso seja sempre o primeiro e o único — como se pudéssemos
existir
sem os outros.
No mundo natural não há
competitividade, e sim competência —
a competição que não implica sempre a eliminação do outro. Como observa
Maturana, quando dois animais estão diante do mesmo alimento e apenas
um come,
ele o faz porque naquele momento foi o mais competente para tanto. Mas
isso não
quer dizer que aquele que não comeu seja daí por diante impedido de se
alimentar e morra de fome.
Entretanto, quando as circunstâncias
envolvem a cultura da
competitividade, o ser humano que venceu não se satisfaz por ter
vencido.
Sente-se inseguro da continuidade da sua competência, e por isso
precisa ter
certeza de que aquele que foi derrotado deixe de ser para ele uma
ameaça.
Precisa, portanto, eliminá-lo. Ainda assim, esse fenômeno não se deve à
dimensão cultural em si: ocorre de modo mais visível em uma cultura
como a
nossa, que não sabe como lidar com a totalidade.
Educação
e mudança
Como é fácil perceber, quando usamos
o pensamento complexo
para analisar a competitividade surgem constatações nem sempre
agradáveis, mas
nem por isso menos instrutivas. A primeira delas, como vimos, diz
respeito à
violência estrutural. Pelo prisma do pensamento linear, a
competitividade é
apresentada como algo útil, necessário, algo que deve ser estimulado. O
mesmo
exame, feito por meio do modelo mental complexo, mostra como ela está
ligada a
uma série de distorções que hoje, no mundo inteiro, vêm gerando duas
sérias
conseqüências: a exclusão social e a disseminação do medo.
Nenhuma delas pode ser compreendida
nem trabalhada de modo
eficaz sem que reformulemos nossa atitude habitual para com o outro,
que hoje,
como já sabemos, é em larga escala excludente. Passar a incluí-lo, em
vez de
vê-lo de modo quase invariável como um concorrente a excluir, equivale
a trocar
a competitividade pela competência.
É preciso entender que não se trata
de afastar uma coisa
para substituí-la por outra, como se faz quando se usa o modelo mental
linear.
A competência não exclui a competitividade: ao contrário, ela a inclui
e
ultrapassa. Ao fazer isso, procura corrigir-lhe as impropriedades e a
transforma em fator de busca de uma qualidade de vida mais consistente
com a
realidade da existência humana, e não apenas com as exigências de um
mercado conduzido
por um modelo mental unidimensional.
O diferencial que faz com que surja a
competência (a
competitividade não vista como competição predatória)
é a educação. Não se trata, porém, do modelo
hoje predominante em nossas escolas, na maioria das quais o que na
realidade se
faz é adestrar as pessoas para a competitividade, e não prepará-las
para a
competência. O modelo que buscamos é baseado no pensamento complexo. É
uma
educação que qualifica, habilita, reintegra — enfim, que recupera o que
havia
sido excluído, tanto no campo dos saberes quanto no das interações
humanas.
Trata-se, em suma, de uma estratégia
primária: se produzimos
um determinado bem, é necessário cuidar para não deixar os compradores
sem
capacidade de adquiri-lo. Ou seja, é preciso não excluí-los. É tão
simples
assim. No entanto, é o contrário disso que faz a cultura da
competitividade,
não apenas em relação a indivíduos mas em relação a países inteiros. E
o
discurso econômico ortodoxo, por mais erudito que seja, não consegue
esconder esse
fato.
Por outro lado, a competência faz com
que a competitividade
deixe de ser algo predatório. Competência não significa que não deva
existir
concorrência. Significa apenas que não é indispensável que haja
predatoriedade,
situação na qual no fim das contas não há vencedores, embora a
princípio não
pareça assim. Ser competente não quer dizer evitar o êxito nem deixar
de buscar
um lugar vantajoso no mundo dos negócios. Tudo isso faz parte das
práticas da
vida mecânica e é, portanto, necessário.
Nos últimos tempos, muito se tem
escrito a respeito de como
pôr todas essas idéias em prática. É da maior importância que essa
literatura
seja divulgada entre os homens de empresa, porque hoje é no universo
das
corporações que esse esforço educacional tem melhores condições de se
desenvolver.
Os trabalhos pioneiros de Willis
Harman12 e colaboradores
são exemplos que merecem destaque. Esses textos, bem como as práticas
que deles
emergiram e emergirão, revelam modos de compreender a totalidade e,
portanto,
de lidar com a violência estrutural. Outra área em desenvolvimento nos
últimos
tempos — e aqui se destacam as aplicações ao universo das empresas — é
o
trabalho com os grupos de diálogo13-17.
Todas essas abordagens fazem parte do
grande esforço para a
realização do que Edgar Morin chama de reforma do sistema de pensamento
dominante em nossa cultura. Aqui a educação, a responsabilidade social
e a
ética ocupam lugar de destaque. A este respeito, convém lembrar mais
alguns
itens de uma bibliografia hoje em franco crescimento18-24.
Referências
1. Edgar Morin, La complexité
humaine, Paris, Flammarion,
1994.
2. Humberto Mariotti, Reducionismo, “holismo” e pensamentos
sistêmico e complexo: suas conseqüências na vida cotidiana,
www.geocities.com/pluriversu
3. Jean Gebser,
The ever-present origin, Athens, Ohio, Ohio University Press, 1985.
4. Mario
Kamenetzky, The invisible player: consciousness as the soul of
economic,
social, and political life, Rochester, Vermont, Park Street Press, 1999.
5. Humberto Mariotti, As paixões do ego: complexidade,
política e solidariedade, São Paulo, Palas Athena, 2000.
6. Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller, Amor y juego:
fundamentos olvidados de lo humano, Santiago, Editorial Instituto de
Terapia
Cognitiva, 1997.
7. Marija
Gimbutas, The early civilization of Europe. Los Angeles, University of
California Press, 1980.
8. Riane Eisler, O cálice e a espada: nossa história, nosso
futuro, Rio de Janeiro, Imago, 1989.
9. Martin
Heidegger, Being and time, Nova York, Harper & Row, 1962.
10. Humberto
Mariotti, op. cit., p. 104 e segs.
11. Mário
Kamenetzky, op. cit., p. 239 e segs.
12. Willis
Harman, Why a World Business Academy?, Burlingame, Califórnia, World
Business
Academy, 1990.
13. Daniel
Yankelovich, The magic of dialogue: transforming conflict into
cooperation,
Nova York, Simon & Schuster, 1999.
14. David
Bohm, On dialogue, Londres, Routledge, 1998.
15. Humberto Mariotti e Cistina Zaugy, Diálogo: a
competência do conviver (no prelo).
16. Linda
Ellinor e Glenna Gerard, Dialogue: rediscover the transforming power of
conversation, Nova York, John Wiley & Sons, 1998.
17. William
Isaacs, Dialogue: the art of thinking together, Nova York,
Doubleday/Currency,
1999.
18. Alfie
Kohn, No contest: the case against competition, Boston, Houghton
Mifflin, 1992.
19. Edward
De Bono, Sur/petition: creating value monopolies when eveyone else is merely competing, Nova
York, Harper Collins,
1993.
20. Francisco Varela, Sobre a competência ética, Lisboa,
Edições 70, 1995.
21. Humberto Mariotti, Organizações de aprendizagem:
educação continuada e a empresa do futuro, São Paulo, Atlas, 1999.
22.
Humberto Mariotti, Autopoiesis, culture, and society,
www.oikos.org/maten.htm (1999).
23. Michael
Ray e Alan Rinzler, Eds., The new paradigm in business, Los Angeles,
Jeremy P.
Tarcher, 1993.
24. Robert
Axelrod, The evolution of co-operation. Londres, Penguin Books, 1990.
© Humberto Mariotti, 2000.
* Capítulo do livro O dragão e a
borboleta: sustentabilidade
e responsabildade social nos negócios. São Paulo: Axis Mundi/AMCE,
2000, pp.
265-282.
** Humberto Mariotti é
Professor e Coordenador do Centro de
Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor
em
desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e
internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da
Complexidade da
Business School São Paulo.