Comecemos com uma breve introdução ao
tema complexidade e
pensamento complexo. A complexidade não é um conceito teórico e sim um
facto.
Corresponde à multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua interação
da
infinidade de sistemas e fenómenos que compõem o mundo natural e as
sociedades
humanas. Os sistemas complexos estão dentro de nós e a recíproca é
verdadeira.
É preciso, pois, que procuremos
entendê-los, porque por mais
que tentemos não conseguiremos reduzir a complexidade a explicações
simplistas,
regras rígidas, fórmulas simplificadoras ou esquemas fechados. Ela só
pode ser
entendida e trabalhada por um sistema de pensamento aberto, abrangente
e
flexível — o pensamento complexo. Trata-se de uma teoria (que hoje já
dispõe de
um conjunto de instrumentos práticos) que aceita e procura compreender
as
muitas faces e as mudanças constantes do real e não pretende negar a
multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza.
Em nossa cultura, existe um modo
hegemónico de pensar que
determina as práticas no dia-a-dia, tanto no plano individual quanto no
social.
Esse modelo é o pensamento linear-cartesiano, que, como se sabe, foi
muito
influenciado por um aspecto importante do pensamento de Aristóteles: a
lógica
do terceiro excluído.
Essa lógica levou à idéia de que se B
vem depois de A com
alguma frequência, B é sempre o efeito e A é sempre a causa
(causalidade
simples). Na prática, essa posição gerou a crença errônea de que entre
causas e
efeitos existe sempre uma contigüidade ou uma proximidade muito
estreita. Essa
concepção é responsável pelo imediatismo, que dificulta e muitas vezes
impede a
compreensão de fenómenos complexos como os de natureza bio-psico-social.
Por esse modelo, A só pode ser igual
a A. Tudo o que não se
ajustar a essa dinâmica fica excluído. É a lógica do "ou/ou", que
praticamente exclui a complementaridade e a diversidade. Desde os
gregos, esse
modelo mental vem servindo de base para os nossos sistemas educacionais
e,
consequentemente, para as nossas práticas quotidianas. Também desde
essa época
ele é questionado. Platão,
por exemplo,
escreveu: “Separar cada coisa de todas as demais é a maneira mais
radical de
reduzir a nada todo o raciocínio. Pois o raciocínio e a conversa
nasceram em
nós pela combinação das formas entre si". (Sofista, 259e).
O modelo mental linear é necessário
para lidar com os
problemas mecânicos (abordáveis pelas ciências ditas exatas e pela
tecnologia).
Mas não é suficiente para resolver problemas humanos em que participem
emoções
e sentimentos (a dimensão psico-social). Por exemplo, o raciocínio
linear
aumenta a produtividade industrial por meio da automação, mas não
consegue
resolver o problema do desemprego e da exclusão social por ela gerados,
porque
essas são questões não-lineares. O mundo financeiro é apenas mecânico,
mas o
universo da economia é mecânico e humano.
O pensamento complexo baseia-se na
obra de vários autores,
cujos trabalhos vêm tendo aplicação à educação, biologia, sociologia,
antropologia social, medicina, aos negócios/administração e ao
desenvolvimento
sustentado. As
considerações que se
seguem representam uma tentativa de mostrar como as chamadas ciências
da
complexidade e o pensamento complexo têm contribuído para as
interacções entre
as pessoas e destas com a sociedade e o meio ambiente. Como não poderia
deixar
de ser, a medicina e as acções de saúde desempenham um papel da maior
relevância nessas interacções.
Dada a amplitude do assunto,
escolhemos para este texto
falar sobre uma de suas muitas facetas. Falemos, por exemplo, sobre
algumas descobertas
recentes da ciência cognitiva e suas aplicações, em especial a questão
da
percepção.
Do ponto de vista ortodoxo, o mundo
exterior ao observador é
considerado «objectivo». Tudo o que nele existe é antecipadamente dado,
isto é,
prévio ao observador. Nessa ordem de idéias, o mundo é visto como um
objecto do
qual o sujeito (observador) está separado. Esse modelo mental constitui
a base
do empirismo, que afirma que a realidade é única e por isso mesmo deve
ser
percebida da mesma forma por todos os homens. A mente é o espelho da
natureza
e, por isso, percebemos o mundo exactamente como ele é.
Nossa percepção é, portanto, uma
representação mental do que
está fora de nós. É o que se denomina de representacionismo. Em
conseqüência
disso, ao relatar a alguém o modo como percebemos o mundo,
«transmitimos» o
resultado de nossas percepções «objectivas». Numa aula, por exemplo, o
professor «transmite» seus conhecimentos aos alunos. É o chamado
instrucionismo. Sob esse ponto de vista metodológico não há
aprendizado, há
instrução.
Repitamos: o representacionismo é a
suposição de que nossa
percepção resulta em representações mentais dos objectos percebidos.
Nessa
linha de raciocínio, o mundo deve ser visto do mesmo modo por todas as
pessoas.
Cada observador deve ser capaz de descrevê-lo da mesma forma, e quem
não tiver
essa capacidade está “com problemas” e deve ser convertido à visão
«correcta»,
isto é, ao modo de ver predominante.
Foi o que se fez, por exemplo, na
China de Mao Tse Tung,
onde os dissidentes ideológicos eram confinados e redoutrinados. Esse
processo
acabou por se estender – e de maneira violenta – a todo o país, por
meio da
conhecida Revolução Cultural. Nesse caso, o mundo «objectivo» a ser
percebido
era o que estava descrito no «Livro vermelho dos pensamentos de Mao».
Na antiga
União Soviética, os dissidentes do Partido Comunista eram enviados a
campos de
concentração ou internados em instituições psiquiátricas. Esses
exemplos são
apenas uma pequena amostra dos milhares disponíveis nos registos
históricos.
Constituem mais um capítulo da volumosa e triste história das
ideologias e dos
fundamentalismos.
Apesar de a experiência quotidiana
nos mostrar a cada passo
que a percepção não ocorre assim, a teoria representacionista – hoje
sob
crescente questionamento – continua a ser amplamente adoptada. Em seu
nome, as
sociedades em que vivemos a todo instante nos pedem que sejamos
«directos» e
«objectivos». No entanto, recentes descobertas da ciência cognitiva e
da
neurociência já revelaram que o mundo externo é percebido de acordo com
a
estrutura cognitiva do observador. Percebemos o mundo segundo o modo
como essa
estrutura está preparada para percebê-lo, e não «exactamente» como ele
é, ou
seja, não «objectivamente».
Já tratei com detalhes desse
particular em outros textos e
não o farei de novo aqui.1,2 De todo modo, convém lembrar alguns pontos.
1. Como acabamos de ver, cada
observador percebe o mundo
externo de acordo com sua estrutura cognitiva, isto é, do modo como ele
está
preparado para percebê-lo.
2. Por outro lado, o mundo externo
também percebe o
observador – e fá-lo segundo sua própria estrutura, ou seja, da maneira
como
está preparado para percebê-lo. Por exemplo, quando caminhamos por uma
praia ao
longo desse passeio percebemos de modo pessoal os diversos detalhes do
caminho
e da paisagem.
Apreciamos ou não determinados aspectos da trajectória ou do
ambiente. Assim, gostamos mais da areia fofa ou da areia endurecida
deixada
pela maré vazante; apreciamos mais ou menos a presença de algas sobre a
areia;
preferimos caminhar sobre o solo mais seco ou molhar os pés à medida
que
avançamos; e assim por diante.
Terminada a caminhada, se olharmos para trás veremos que ao
longo de nossa trajectória deixámos no mundo externo – na praia – as
marcas da
nossa passagem. São as nossas pegadas na areia e, além disso, o modo
como elas
estão impressas: mais ou menos profundamente, de acordo com o nosso
peso; mais
ou menos em linha recta, segundo o nosso modo de andar ou as paradas
que
eventualmente fizémos; mais ou menos regulares e distantes umas das
outras,
segundo o comprimento de nossas pernas e a velocidade com que andamos
ou
corremos.
Todos esses sinais constituem os registos, as evidências de
como a estrutura do mundo externo “percebeu” nossa interação com ele. O
mundo
percebeu e registou a nossa passagem da maneira como pôde fazê-lo.
Mais ainda, ao longo desse nosso passeio na praia, também
fomos percebidos por muitos olhos e ouvidos: os de outras pessoas que,
de perto
ou de longe, notadas ou não, testemunharam a nossa caminhada. E também
por
muitos outros olhos, ouvidos e outras formas e percepção de aves e
outros seres
vivos que, durante o nosso passeio, interagiram connosco. Pouco importa
que não
os tenhamos notado: mesmo assim, as interacções aconteceram em sua
multiplicidade e complexidade.
3. Pode-se concluir, portanto, que a
percepção e as acções
dela decorrentes não são fenómenos de direcção única, do tipo sujeito
->
objecto, observador -> observado.
Ou,
no caso da medicina, que as acções de saúde não são «objectivas» e
unidirecionais, do tipo médico -> paciente. Ao contrário, elas
são uma via
de mão dupla: sujeito D objecto, observador D observado, médico D
paciente. O
sujeito/observador percebe o objecto/observado à sua maneira, e também
é
percebido pelo objecto/observado à maneira peculiar deste.
Em um livro magistral que todo médico
deveria ler – «O
caráter oculto da saúde» –, o filósofo Hans-Georg Gadamer observa: «O
diálogo
promove a humanização da relação entre uma diferença fundamental, a que
há
entre o médico e o paciente. Tais relações desiguais pertencem às mais
difíceis
tarefas entre os seres humanos. O pai e o filho. A mãe e a filha. O
professor,
o jurista, o pastor. Resumindo: o profissional. Mas isso é algo que
qualquer um
de nós conhece bem, o quanto é difícil entendermo-nos!».3
Referências
1. MARIOTTI, Humberto. Autopoiesis,
culture, and society.
Disponível em http://www.oikos.org/mariotti.htm
2. _____. Pensamento complexo: suas
aplicações à liderança,
à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentado. São Paulo: Atlas, 2007.
3. GADAMER, Hans-Georg. O caráter
oculto da saúde.
Petrópolis: Vozes, 2006.
© Humberto Mariotti 2007
* Publicado na Revista Portuguesa de
Clínica Geral (Rev Port
Clin Geral) 23: 727-731, 2007.
Humberto
Mariotti é médico e psicoterapeuta. Professor e
Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business
School São
Paulo. Consultor em desenvolvimento pessoal e organizacional.
Conferencista
nacional e internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da
Complexidade da Business School São Paulo (Brasil).