A noção de autopoiese já ultrapassou
em muito o domínio da
biologia. Hoje, ela é utilizada em campos tão diversos como a
sociologia, a
psicoterapia, a administração, a antropologia, a cultura organizacional
e
muitos outros. Essa circunstância transformou-a num importante
instrumento de
investigação da realidade.
Há tempos, seus criadores, os
cientistas chilenos Humberto
Maturana e Francisco Varela, propuseram a seguinte questão: até que
ponto a
fenomenologia social pode ser considerada uma fenomenologia biológica?
Este
ensaio procura respondê-la, ou pelo menos encaminhá-la. Antes disso,
porém, é
necessário resumir alguns dos conceitos básicos desenvolvidos por esses
dois
autores.
Autopoiese
Poiesis é um termo grego que
significa produção. Autopoiese
quer dizer autoprodução. A palavra surgiu pela primeira vez na
literatura
internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e
Uribe, para
definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si
mesmos.
Esses sistemas são autopoiéticos por definição, porque recompõem, de
maneira
incessante, os seus componentes desgastados. Pode-se concluir,
portanto, que um
sistema autopoiético é ao mesmo tempo produtor e produto.
Para Maturana, o termo "autopoiese"
traduz o que
ele chamou de "centro da dinâmica constitutiva dos seres vivos". Para
exercê-la de modo autônomo, eles precisam recorrer a recursos do meio
ambiente.
Em outros termos, são ao mesmo tempo autônomos e dependentes. Trata-se,
pois,
de um paradoxo. Essa condição paradoxal não pode ser bem entendida pelo
pensamento linear, para o qual tudo se reduz à binariedade do sim/não,
do
ou/ou. Diante de seres vivos, coisas ou eventos, o raciocínio linear
analisa as
partes separadas, sem empenhar-se na busca das relações dinâmicas entre
elas. O
paradoxo autonomia-dependência dos sistemas vivos é melhor compreendido
por um
sistema de pensamento que englobe o raciocínio sistêmico (que examina
as
relações dinâmicas entre as partes) e o linear. Eis o pensamento
complexo,
modelo proposto por Edgar Morin.
Maturana e Varela utilizaram uma
metáfora didática para
falar dos sistemas autopoiéticos que vale a pena reproduzir aqui. Para
eles,
trata-se de máquinas que produzem a si próprias. Nenhuma outra espécie
de
máquina é capaz de fazer isso: todas elas produzem sempre algo
diferente de si
mesmas. Sendo os sistemas autopoiéticos a um só tempo produtores e
produtos,
pode-se também dizer que eles são circulares, ou seja, funcionam em
termos de
circularidade produtiva. Para Maturana, enquanto não entendermos o
caráter
sistêmico da célula, não conseguiremos compreender os organismos.
Reafirmo que esse entendimento só
pode ser bem proporcionado
por meio do pensamento complexo. No entanto, vivemos em uma cultura
formatada
pelo pensamento linear. Esse fato tem resultado em conseqüências
importantes,
algumas delas muito graves, como veremos a seguir.
Estrutura,
organização e determinismo estrutural
Segundo Maturana e Varela, os seres
vivos são determinados
por sua estrutura. O que nos acontece num determinado instante depende
de nossa
estrutura nesse instante. A esse conceito, eles chamam de determinismo
estrutural.
A estrutura de um sistema é a maneira
como seus componentes
interconectados interagem sem que mude a organização. Vejamos um
exemplo
simples, referente a um sistema não-vivo — uma mesa. Ela pode ter seus
pés
encurtados, alongados ou reposicionados e seu tampo mudado de
retangular para
circular, sem que isso interfira na sua configuração. O sistema
continuará
sendo identificado como mesa (isto é, manterá a sua organização),
apesar dessas
modificações estruturais.
No entanto, se desarticularmos os pés
e o tampo e os
afastarmos, o sistema se desorganizará e deixará de ser uma mesa.
Dizemos então
que ele se extinguiu. Da mesma forma, num sistema vivo a estrutura muda
o tempo
todo, o que mostra que ele se adapta às modificações do ambiente, que
também
são contínuas. Mas a perda da organização (a desarticulação) causaria a
sua
morte.
A organização é a determinante de
definição e a estrutura a
determinante operacional. A primeira identifica o sistema, diz como ele
está
configurado. A segunda mostra como as partes interagem para que ele
funcione. O
momento em que um sistema se desorganiza é o limite de sua tolerância
às
mudanças estruturais.
O fato de os sistemas vivos estarem
submetidos ao
determinismo estrutural não significa que eles sejam previsíveis. Em
outras
palavras, eles são determinados, mas isso não quer dizer que sejam
predeterminados. Com efeito, se sua estrutura muda sempre e em
congruência com
as modificações aleatórias do meio, não é possível falar em
predeterminação e
sim em circularidade. Para evitar dúvidas sobre esse ponto, basta ter
sempre em
mente este detalhe: aquilo que acontece em um sistema num dado momento
depende
de sua estrutura nesse momento.
O mundo em que vivemos é o que
construímos a partir de
nossas percepções, e é nossa estrutura que permite essas percepções.
Por
conseguinte, nosso mundo é a nossa visão de mundo. Se a realidade que
percebemos depende da nossa estrutura — que é individual —, existem
tantas
realidades quantas pessoas percebedoras.
Eis por que o chamado conhecimento só
objetivo é inviável: o
observador não é separado dos fenômenos que observa. Se somos
determinados pelo
modo como se interligam e funcionam as partes de que somos feitos (ou
seja,
pela nossa estrutura), o ambiente só desencadeia em nós o que essa
estrutura
permite. Um gato percebe o mundo e interage com ele de acordo com sua
estrutura
de gato, jamais com uma configuração que não tem, como a de um ser
humano, por
exemplo. Não vemos um rato da mesma forma que o vê um gato.
Assim, não podemos afirmar que existe
a objetividade da qual
tanto nos orgulhamos. Para Maturana, quando alguém diz que está sendo
objetivo,
na realidade está afirmando que tem acesso a uma forma privilegiada de
ver o
mundo e que esse privilégio lhe confere alguma autoridade, que
pressupõe a
submissão de quem não é objetivo. Essa é uma das bases da chamada
argumentação
lógica.
Nossos condicionamentos nos levaram a
ver o mundo como um
objeto. Imaginamos que estamos separados dele. E vamos mais longe: por
meio do
ego, achamos que somos observadores afastados até de nós mesmos. Para
que
possamos exercer essa suposta objetividade, é necessário que
estabeleçamos uma
fronteira, uma divisão entre o ego e o mundo e também entre o ego e o
restante
de nossa totalidade. Dessa forma, dividimo-nos. E se nos tornamos
divididos, o
mesmo acontecerá ao nosso conhecimento, que por isso resultará limitado.
Eis o que conseguimos, com nossa
pretensa objetividade: uma
visão de mundo fragmentada e restrita. É a partir dela que nos
imaginamos
autorizados a julgar e condenar a "não-objetividade" e a
"intuitividade" de quem não concorda conosco. Em outras palavras, a
partir de uma visão dividida e limitada, pretendemos chegar à verdade e
mostrá-la aos outros — uma verdade que julgamos ser a mesma para todos.
O
acoplamento estrutural
Maturana e Varela observam que o
sistema vivo e o meio em
que ele vive se modificam de forma congruente. Na sua comparação, o pé
está
sempre se ajustando ao sapato e vice-versa. É uma boa maneira de dizer
que o
meio produz mudanças na estrutura dos sistemas, que por sua vez agem
sobre ele,
alterando-o, numa relação circular. A esse fenômeno, eles deram o nome
de
acoplamento estrutural. Quando um organismo influencia outro, este
replica
influindo sobre o primeiro. Ou seja, desenvolve uma conduta
compensatória. O
primeiro organismo, por sua vez, dá a tréplica, voltando a influenciar
o
segundo, que por seu turno retruca — e assim por diante, enquanto os
dois
continuarem em acoplamento.
Mesmo sabendo que cada sistema vivo é
determinado a partir
de sua estrutura interna, é importante entender que quando um sistema
está em
acoplamento com outro, num dado momento dessa inter-relação a conduta
de um é
sempre fonte de respostas compensatórias por parte do outro. Trata-se,
pois, de
eventos transacionais e recorrentes. Sempre que um sistema influencia
outro,
este passa por uma mudança de estrutura, por uma deformação. Ao
replicar, o
influenciado dá ao primeiro uma interpretação de como percebeu essa
deformação.
Estabelece-se portanto um diálogo. Por outras palavras, forma-se um
contexto
consensual, no qual os organismos acoplados interagem. Esse interagir é
um
domínio lingüístico.
Posto de outra forma, nesse âmbito
transacional o
comportamento de cada organismo corresponde a uma descrição do
comportamento do
outro: cada um "conta" ao outro como recebeu e interpretou a sua
ação. É por isso que se pode dizer que não há competição entre os
sistemas
naturais. O que existe é cooperação. No entanto, quando à natureza se
junta a
cultura — como no caso dos seres humanos —, as coisas mudam.
Reafirmo que não existe competição
(no sentido predatório do
termo) entre os seres vivos não-humanos. Quando o homem chama
determinados
animais de predadores está antropomorfizando-os, ou seja, projetando
neles uma
condição que lhe é peculiar. Como não competem entre si, os sistema
vivos
não-humanos não "ditam" uns aos outros normas de conduta. Mantidas as
condições naturais, entre eles não há comandos autoritários nem
obediência
irrestrita. Os seres vivos são sistemas autônomos, que determinam o seu
comportamento a partir de seus próprios referenciais, isto é, a partir
de como
interpretam as influências que recebem do meio. Se tal não acontecesse,
seriam
sistemas sujeitados, obedientes a determinações vindas de fora.
No caso das sociedades humanas, em
que as condições não são
apenas as da natureza, é isso que o marketing e outros meios de
condicionamento
de massa tentam (e em boa parte dos casos conseguem) fazer com
populações
inteiras. É, portanto, possível a produção em grande escala de
indivíduos
sujeitados, embora para isso os estímulos condicionadores precisem ser
amplos e
ininterruptos.
É o que o psicanalista Félix Guattari
chama de produção de
subjetividade. Com essa noção ele introduz a idéia de uma subjetividade
industrial, fabricada, moldada pelo capitalismo. Trata-se da introdução
de
gigantescos sistemas de formatação e condicionamento, por meio dos
quais o
capital (hoje em sua fase de triunfalismo) constrói e mantém o seu
imenso
mercado de poder. É disso mesmo que se trata: transformar em sujeitado
um
sujeito natural. Ou seja, implantar e levar adiante a violência sobre a
característica mais básica dos sistemas vivos — a autopoiese.
A noção de que os sistemas são
determinados por sua
estrutura é de fundamental importância para muitas áreas da atividade
humana.
Na psicoterapia, por exemplo, a transferência e a contratransferência
podem ser
tomadas como manifestações de acoplamento estrutural, no qual as
modificações
experimentadas pelo cliente são determinadas por sua estrutura. Não
podem,
portanto, ser vistas como causadas ou produzidas pelo terapeuta. Por
isso, é
importante ter sempre em mente que o domínio consensual resultante do
acoplamento de sistemas autopoiéticos é um contexto lingüístico — mas
não no
sentido de mera transmissão de informações de parte a parte.
A
extensão sociocultural
Maturana e Varela observam que a
teoria evolutiva de Darwin
ultrapassou a simples diversidade dos seres vivos e sua origem, e
estendeu-se
até a noção de cultura. Como se sabe, essa proposta teórica põe ênfase
nas
dimensões espécie, aptidão e seleção natural. Essas noções acabaram por
servir
de base ao darwinismo social, que é a utilização das idéias darwinianas
para
justificar a competição predatória entre os homens. Trata-se, portanto,
de uma
interpretação fundamentalista.
Na mesma linha, passou-se a utilizar
a idéia de
transcendência para justificar a exclusão social e outros fenômenos,
como a
escravidão e a dependência político-econômica. Por esse ângulo, o
indivíduo
teria um valor ínfimo em relação à espécie. Em conseqüência, deveria
dar tudo
de si (inclusive a própria vida) para a perpetuação da espécie — mas a
recíproca nem sempre seria verdadeira.
A esse respeito, os dois biólogos
chamam atenção para os
seguintes argumentos, que têm sido aplicados às nossas sociedades: a) o
que
evolui é a humanidade, a espécie humana; b) de acordo com a seleção
natural,
sobrevivem os mais aptos; c) os que não o fazem, em nada contribuem
para a
história da espécie; c) a competição leva à evolução e isso vale também
para o
ser humano. Em suma, o indivíduo deveria deixar que os fenômenos
naturais se
desenrolassem e teria de permanecer passivo: tudo pelo bem comum.
Contudo, os mesmos autores observam
que esses argumentos não
se sustentam quando se trata de justificar a subordinação do indivíduo
à
espécie, porque a fenomenologia biológica se dá no indivíduo e não na
espécie.
Não se sustentam, enfim, porque aqui a fenomenologia biológica é a da
parte,
não a do todo. Se o modo de ser do indivíduo é determinado por sua
organização,
que é autopoiética, não deveriam existir indivíduos descartáveis, seja
em
relação à espécie, à sociedade, à humanidade ou a qualquer outra
instância, por
mais transcendental que a consideremos.
Ordenações,
sociedades e indivíduos
No mundo natural — observam Maturana
e Varela —, há uma
tendência para a constituição de sistemas autopoiéticos de ordem
superior (no
sentido de mais complexos). Isso ocorre a partir do acoplamento de
unidades
autopoiéticas de ordem mais simples para formar organizações mais
complexas.
Nestas, observa-se o princípio da hierarquia dos sistemas: um sistema
está dentro
de outro que lhe é superior; este, por sua vez, está contido em outro
que lhe é
superior; e assim por diante. É o que ocorre nos organismos
multicelulares e,
de acordo com os dois biólogos, talvez na própria célula.
A questão é saber de que modo essa
circunstância pode ser
aplicável às sociedades humanas. Se o conceito de autopoiese dos
indivíduos for
aplicado à organização social, esta pode ser vista como um sistema
autopoiético
de primeira ordem. Nessa linha de raciocínio, a autopoiese das pessoas
seria
subordinada à da sociedade, e assim seria eticamente justificável o
sacrifício
dos indivíduos em favor desta. Nessas circunstâncias — argumentam
Maturana e
Varela —, ficaria muito difícil para os seres humanos atuar sobre a
dinâmica
autopoiética da sociedade da qual fazem parte.
Concordo com esse argumento, e creio
que é possível
reforçá-lo com mais algumas considerações. Para desenvolvê-las,
permanecerei no
âmbito da biologia. Sabemos que um sistema autopoiético se autoproduz
utilizando para isso recursos do ambiente. Para dar continuidade a esse
processo, um organismo humano, por exemplo, vai descartando suas
células mortas
à medida em que se renova, isto é, à medida em que continua o seu
processo de
autopoiese. Enquanto estiver vivo, porém, nenhuma unidade autopoiética
descarta
quaisquer de seus componentes vivos: não há partes prescindíveis em
sistemas
dessa natureza.
Em conseqüência — e sempre mantendo a
argumentação no
contexto biológico —, uma sociedade só poderia ser vista como
autopoiética se satisfizesse
a autopoiese de todos os seus indivíduos. Logo, uma sociedade que
descarta
indivíduos vivos enquanto eles ainda estão vivos, e portanto atual ou
potencialmente produtivos (por meio de expedientes como produção de
subjetividade, exclusão social, guerras, genocídios e outras formas de
violência), é automutiladora e portanto patológica.
Se o homem fosse um ser apenas
natural, sua autopoiese seria
exercida como a dos demais seres vivos. No entanto, o fato de ele ser
também
cultural faz com que a exerça de modo diferente. Diferente e
patológico, porque
autoagressor. A cultura condiciona o indivíduo, que por sua vez a
realimenta
com essa influência. E assim por diante, numa circularidade em que não
é
possível pensar em termos de causalidade linear.
Por que isso acontece? Sabemos que
não há fenômenos de causa
única no mundo natural, e este caso não faz exceção. Ainda assim,
pode-se
afirmar que a principal causa dessa disfunção é o sistema de pensamento
predominante em nossa cultura patriarcal — o pensamento linear. Estamos
condicionados por esse modelo mental, que estimula o imediatismo e
valoriza a
competição predatória e a guerra. Essa é a principal razão pela qual
nossas
sociedades são patológicas.
É importante repetir: o que as torna
assim não é a dimensão
cultural em si, mas a espécie de cultura sob a qual vivemos, na qual
predomina
a crença de que a competição é boa, saudável e eticamente defensável.
Sua
tradução prática é a "competitividade"— a compulsão de não apenas
vencer, mas também de eliminar o outro, de levar às últimas
conseqüências a
agressividade, a implacabilidade e o afã de excluir. Essa distorção
funciona
como motor de todas as demais, que refluem sobre ela, e assim o círculo
se
realimenta de maneira incessante.
Todos nós somos, em grau maior ou
menor, influenciados pela
unidimensionalidade do pensamento linear, que nos leva a pensar que o
lado mais
agradável da vitória é derrotar alguém. É o chamado jogo de soma zero:
uma
interação na qual para que um ganhe o outro tem necessariamente de
perder.
Nesse clima, as pessoas, as coisas e os eventos não podem se
complementar: é
sempre indispensável que algo seja removido e descartado e que seu
lugar seja
reocupado. Essa situação pode até ser inevitável em casos específicos,
mas não
tem a abrangência que imaginamos.
De todo modo, a idéia invariável do
outro como adversário,
como inimigo a exterminar, é uma das marcas fundamentais da
"competitividade" da nossa cultura. Por meio dela — e em especial no
universo dos negócios e das empresas — vivemos no cotidiano essa
paranóia.
Trata-se de uma visão de mundo que exclui a possibilidade de que o
outro possa
ser momentaneamente superado pela competência, mas preservado para ser
capaz de
por sua vez aprender a vencer, isto é, aprender a ser competente. O
ideal da
"competitividade", pelo contrário, é vencer de tal modo que o
vitorioso seja sempre o primeiro e o único — como se pudéssemos existir
sem os
outros e, pior ainda, como se pudéssemos ser os primeiros e únicos sem
ser
também os últimos.
Entretanto, quando as circunstâncias
envolvem a cultura o
que comeu não se satisfaz por ter-se alimentado: precisa assegurar-se
de que o
que não comeu deixe de ser para ele uma ameaça, porque se sente
inseguro de sua
própria competência. Ou seja, não confia em si mesmo como ser vivo.
Portanto, precisa eliminar o outro.
Mesmo assim — insistamos
no que foi dito há pouco —, isso não se deve ao fator cultural em si:
ocorre de
modo mais visível em uma cultura como a nossa, que não sabe como lidar
com a
aleatoriedade, a imprevisibilidade e as mudanças constantes. E estas,
como
sabemos, são a própria essência da vida. Em outras palavras, não
sabemos lidar
com a autopoiese. E por não sabermos precisamos agredi-la e, no limite,
negá-la.
Nada disso, é claro, invalida o
conceito de autopoiese. Pelo
contrário, sua eficácia para ajudar a diagnosticar a autoagressão dos
indivíduos e sociedades humanas apenas o confirma e valoriza. Retomemos
agora a
questão de Maturana e Varela: até que ponto a fenomenologia social pode
ser
considerada uma fenomenologia biológica? As reflexões acima já a
responderam: a
fenomenologia social tal como a vivemos é biológica, sim — mas é
patológica.
Valores
e desvalores
Acrescentemos mais algumas reflexões.
Martin Heidegger,
entre outros, afirma que as pessoas têm a tendência de se alienar para
as
coisas do mundo, o que faz com que se esqueçam do seu Ser. Tal
alienação faz
com que elas se percam nas coisas (ou nos utensílios, na terminologia
do
filósofo). Essa condição as leva a valorizar em excesso os objetos, a
desvalorizar a si próprios e, por extensão, a negar a humanidade de
seus
semelhantes. Em outros termos, as pessoas passam a ver-se umas às
outras como
bens de comércio.
Nessa mesma linha, nossa necessidade
de transcendência é
também desvirtuada. Consideremos a questão da busca de valores
espirituais que
possam orientar e justificar a existência humana. Em sociedades como as
nossas,
em que as pessoas são vistas como coisas, tais valores tendem a ser
idealizados
demais, o que aumenta ainda mais a distância entre eles e o homem
comum.
Em conseqüência, tudo faremos para
preservá-los, inclusive
desprezar cada vez mais a não-transcendentalidade dos nossos
semelhantes.
Estes, por sua vez, respondem na mesma moeda. O psicólogo Emílio Romero
tem uma
frase reveladora a esse respeito: "Não é fácil gostar de seres de carne
e
osso, simples mortais, limitados, contraditórios, oscilantes, como
todos nós. É
mais fácil admirar ídolos distantes, talvez protetores por sua
majestade
inalcançável".
Como mostra a história, essa posição
tem produzido
resultados lamentáveis. Todos conhecemos sociedades em que a acentuada
inclinação para a espiritualidade produziu e produz legiões de
miseráveis. Por
outro lado, sabemos que a excessiva tendência para a materialidade
produziu e
produz as mesmas legiões de despossuídos. Ao que parece, o excesso de
não-linearidade de pensamento é tão nocivo para a autopoiese (isto é,
para
vida) quanto o excesso de linearidade (ou seja, de racionalidade).
Como se nada disso fosse bastante, um
novo fenômeno surgiu e
se consolida a olhos vistos. Falo da superidealização do capital. Como
se sabe,
o dinheiro sempre foi o valor básico da nossa cultura. Nos últimos
tempos,
porém, tornou-se muito fácil idealizá-lo ainda mais. Isso se deve à
ascensão do
chamado "capital volátil", veiculado por cifras intangíveis que
circulam eletronicamente pelos mercados de todo o mundo. Essa
"transcendentalização" aumentada do capital vem acrescentando, de
modo agora vertiginoso, combustível à imensa fogueira na qual são
queimados os
excluídos da sociedade — os chamados "excedentes onerosos da dinâmica
do
mercado".
Essa descartabilidade das pessoas —
que é a manifestação
básica da patologia de nossa cultura — tende a aumentar cada vez mais
com o
passar do tempo. Por isso, uma sociedade autopoiética não pode
coexistir com o
capitalismo de competição predatória e de índole excludente que hoje
predomina
no mundo. O mesmo vale, é claro, para o capitalismo de Estado, pelo
menos o que
se tem posto em prática até agora, em regimes que não primam pelo
respeito à
diversidade de idéias. Se somos determinados a partir de dentro,
qualquer forma
de autoritarismo é e sempre será uma agressão.
Por fim, todas estas reflexões
permitem concluir que:
a. A autopoiese, tal como proposta
por Maturana e Varela, de
fato resolve o problema da fenomenologia biológica e a define com
clareza.
b. Sob esse ponto de vista, a
fenomenologia social pode ser
considerada uma fenomenologia biológica, porque a sociedade é
constituída de
seres vivos.
c. No entanto a idéia de autopoiese,
quando aplicada como
instrumento de análise, permite perceber que as sociedades atuais são
automutiladoras e portanto patológicas.
d. Grande parte dessa patologia se
explica pelo fato de que
a mente de nossa cultura é formatada pelo pensamento linear, que propõe
que as
causas são imediatamente anteriores aos efeitos ou estão muito próximas
deles,
e afirma que essas relações ocorrem sempre no mesmo contexto de espaço
e tempo.
e. Esse modelo mental é necessário
para entender e pôr em
prática as circunstâncias mecânicas da nossa vida (produção material,
ingestão,
processamento, excreção e intercâmbio de bens tangíveis). Mas não é
suficiente
para compreender e lidar com as dimensões que envolvem sentimentos e
emoções.
f. Dessa forma, o modelo mental
linear é adequado para
servir de base à economia dita "de mercado", que subestima ou ignora
as dimensões não-mecânicas da existência humana. Por isso, ela cria
cenários
nos quais o ser humano total (isto é, o homem complexo) é sempre
dividido,
utilizado e por fim e descartado.
g. Trata-se, pois, de uma
super-simplificação da condição
humana, que tem a pretensão de resolver problemas sistêmicos,
multidimensionais, por meio de um modelo de pensamento linear e
unidimensional.
h. A partir daí formam-se sociedades
mórbidas, que insistem
no desrespeito à autopoiese de seus componentes. São comunidades que se
dizem
em busca de uma boa qualidade de vida. No entanto, a observação atenta
mostra o
que na realidade ocorre: essa qualidade, além de ser acessível a
poucos, está
passo a passo se transformando no subproduto de uma indústria muito
maior — que
começa pela negação do humano e acaba na exclusão social e na morte.
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Francisco, THOMPSON, Evan, ROSCH, Eleanor. The embodied mind; cognitive
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Press, 1997.
©
Humberto Mariotti,
1999.
* Humberto
Mariotti é Professor e Coordenador do Centro de
Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor
em
desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e
internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da
Complexidade da
Business School São Paulo.