Tenho refletido sobre o Brasil apoiando-me em minhas duas vertentes, a de sociólogo e a de analista junguiano. Para entender uma pessoa preciso compreender o meio em que ela vive e só posso entendê-lo se compreender a pessoa. Essas duas dimensões caminham eternamente juntas e da mesma forma como me sinto sempre fascinado para compreender os mecanismos do inconsciente, as idéias de Jung e a fenomenologia do espírito, sinto-me permanentemente atraído a pensar sobre este país. Minha maneira de refletir sobre o Brasil tem sido através da imagem da alma — e quando digo alma, esta palavra tão usada e abusada pelo Catolicismo, digo algo que todo mundo entende. Estou, há muito tempo, em busca da alma brasileira e para isso tenho feito uma reflexão acerca de nossa origem, de nossa História e de nosso drama arquetípico. Num certo momento dessa trajetória senti-me compelido a retroceder no tempo para muito antes de nossa origem européia e foram então tomando forma a idéia e o interesse por algo que passei a chamar de “alma ancestral do Brasil”.
Nós, como povo, temos um grande problema, que é a ausência de um mito de origem. Temos vergonha de nosso passado, que encaramos como se fosse um buraco negro, uma bruma, uma imagem vagamente aterradora ou claramente desprezível. Começamos a contar nossa história de povo a partir de um ato fabuloso chamado Descobrimento — que sabemos ser uma inverdade e o termo correto, Invasão — e construímos um arremedo de identidade a partir de 1500, o ano do encontro de duas parcelas da Humanidade, uma caucasiana e outra autóctone, indígena. Mas não levamos em conta o mito de origem. Tal fato me parece acarretar graves conseqüências no. que diz respeito à estruturação de nossa consciência coletiva e à maneira como individual c coletivamente nos relacionamos com as camadas profundas do inconsciente. Como negamos nossa origem ancestral, nós a deturpamos, nós a transformamos em algo diverso do que é. Enquanto povo, começamos já destruindo aquilo que tínhamos de mais precioso. Acolho essa idéia com bastante interesse, porque acho que ela nos ajuda a entender o subdesenvolvimento, que não nos “aconteceu” no século 20; nós já começamos subdesenvolvidos. Porque a alma ancestral brasileira é de uma riqueza, de uma .importância, de uma profundidade tal que, se não a tivéssemos negado, estaríamos realizando através de nossa história uma grande síntese de duas maneiras de ser humano, a européia e a ameríndia. Mas não foi feita uma síntese histórica de duas polaridades; o que ocorreu historicamente foi a negação de um pólo pela predominância arrasadora de outro.
Seria bom se começássemos a pensar em nós mesmos do seguinte modo: temos atrás de nós um tesouro inestimável, sistematicamente negado e ignorado através dos séculos. Como isso se deu historicamente a partir do século XVI é fácil pesquisar. Mais difícil é reconhecer que essa negação continua até hoje a se repetir no interior de nossa psique e é por essa razão que me sinto motivado a falar sobre esse tema. Geração após geração repete-se na cultura e em cada um a destruição de uma raiz preciosa e jamais reconhecida. Jung nos ensinou claramente: a inconsciência coletiva se auto-perpetua. Nossos filhos continuam a carregar a mesma coisa que nós. Será que a consciência coletiva brasileira vai continuar ignorando e desqualificando sua raiz mais profunda, base e sustentação de sua mais verdadeira individuação?
Quando digo raiz, estou pensando em coisas muito precisas. As evidências atuais da Arqueologia, que é um campo em rápida transformação em nosso meio, indicam que o território ameríndio vinha sendo ocupado por seres humanos não há dois, três ou quatro mil anos, como sempre se supôs, mas há dez, vinte, trinta... talvez cinqüenta mil anos. Essa é uma disputa teórica que envolve interesses acadêmicos pesados, porque se houver o reconhecimento de que o homem entrou, certamente pela Península de Yucatã, na América do Sul há cinqüenta mil anos, isso muda muitas afirmações evolucionistas e muita teoria da Antropologia Física sobre ocupação de territórios, expansão, adaptação, difusão de inventos e periodizações culturais. Há muitos interesses pseudo-científicos em jogo. Mas hoje existe o método de datação pelo carbono 14 e muita coisa ficará esclarecida. Os professores de História do Brasil vão ter que se reciclarem para poderem então dizer às crianças algo do tipo: “imaginem que este solo em que pisamos talvez há cinqüenta mil anos já era habitado...”
Isso significa que as grandes questões da humanidade, as eternas questões do ser humano, já estavam sendo elaboradas e já tinham sido resolvidas por esses povos indígenas há milhares de anos, muito antes do surgimento de Portugal ou da própria civilização européia que veio a ser a matriz de nossa atual consciência. Que questões são essas? São as seguintes: Como se sobrevive e não se morre de fome, de abandono, de ataques violentos? Como se vive em sociedade? Como se procria? Como se organiza o convívio? Como se resolve o problema da cultura material, da produção de bens de uso? Como se dá sentido à vida? O que é o bom, o belo, o justo? O que é cruel, mau, injusto? O que é a morte, e o que há depois dela? O que é a doença, como se promove a cura? Como tudo começou? O que torna a vida bela e nos faz ter vontade de vivê-la? Onde se pode cozinhar uma comida, onde se pode guardar água, onde se pode morar? Como se atravessa um rio, como se mata uma onça?... Essas questões foram todas, sem exceção, resolvidas pelos povos ditos primitivos que habitavam as Américas de Norte a Sul de maneira tal que o resultado acumulado é um saber altamente organizado, profundo, completo, coerente, muito diverso do nosso e ao qual chamo de tesouro (ou de raiz). É um conjunto de observações da natureza que se estruturou e confirmou ao longo de séculos e séculos, produzindo conhecimento sobre a terra, o corpo, a mente, o espírito, o grupo, os outros e os deuses, a flora e a fauna, a metereologia, as águas, o vento e o fogo, a cópula, os sentimentos, a dor, os desejos, a morte e o além, o horror, o encantamento e a eternidade. Isso tudo cria alma.
O nome disso tudo é alma ancestral, que passa a ser o patrimônio humano supremo, transmitido pela educação quando possível e que com. o passar do tempo acaba se incorporando como uma qualidade da cultura e da consciência. O que é um arquétipo? Um arquétipo é uma predisposição, um formato imanente à psique, mas com um ponto de origem no tempo, na História e no espaço. O arquétipo paterno ou o materno nasceram no escuro do passado, nos animais e depois nos seres humanos, através de infinitas repetições, que se cristalizaram em nossa psique como uma prontidão para reagir a atuar em determinadas situações que os evocam. Ora, os arquétipos estavam se formando também no Brasil pré-histórico, nesse passado remoto e negado que imaginamos como não nos pertencendo e que vamos buscar nos livros e nas teorias que o evocam alhures e nunca aqui. Há arquétipos da psique brasileira que estão muito bem datados e localizados no solo ameríndio. Lembremo-nos de Jung, que dizia que a psique tem um solo, a psique não vive no ar. Terra e psique, espírito e matéria são duas faces da mesma realidade e não precisamos ler isso em Mysterium Conjunctionis apenas. Isso está no solo brasileiro, os arquétipos também se fizeram aqui, como em outras partes do planeta. Proponho que olhemos para isso e nos perguntemos quantos deles estão adormecidos no nosso inconsciente profundo e o que pode nos acontecer, enquanto povo e enquanto indivíduos, se soubermos entrar em contato com esse lençol freático através de uma raiz suficientemente funda. Eu queria ver isso acontecer no Brasil no terreno da psique. A tarefa histórica que nos cabe é vitalizar essa raiz e absorver dessa camada profunda a seiva que vai nos tirar do subdesenvolvimento. E nos tornar, a nós que trabalhamos com. isso, junguianos brasileiros — porque estaremos expressando a alma que na verdade nos mantém. Quer reconheçamos ou não, atravessamos a vida montados na energia dessa alma — pois negada ou não (como mandou Jung gravar sobre o portal de sua casa em Küsnacht), ela está sempre presente.
Há mitos em nosso imaginário ancestral — como por exemplo o da proibição de auto-devoração — cujo núcleo deve remontar à época perdida no tempo em que o homem se condicionou a viver de caça e não de carne humana, provavelmente quando estava descendo das árvores, procurando o abrigo das cavernas e inventando as primeiras armas e ferramentas. Ninguém se aventurou ainda a fazer uma tentativa de datação desses mitologemas — mas para quê fazê-la, se a consciência contemporânea não atribui a menor relevância psíquica à incorporação desses fragmentos perdidos de alma ancestral? A proibição do incesto enquanto condição para o nascimento da cultura — tema tão caro a Freud, Jung ou Lévi-Strauss — está decretada nos mitologemas brasileiros coetâneos ou subseqüentes ao aparecimento das primeiras regras de parentesco. O mito segundo o qual a mulher transformada em cobra não se acasala com o irmão, mas engole seu corpo e posteriormente o regurgita coberto de pinturas, é a demonstração brasileira da idéia de que o incesto é proibido porque, se não o fosse, não haveria nem sociedade, nem arte. No aconchego dos ninhos quentes do convívio endogâmico, um rapaz se deixaria ficar para sempre com as mulheres de seu sangue e não sairia jamais em busca de outras, com as quais fundaria novas unidades de parentesco, reprodução e troca econômica. Não haveria circulação de mulheres (para usar a terminologia de Lévi-Strauss), que ao lado da circulação de bens e de palavras constitui uma das estruturas elementares da vida cultural em sociedade. Onde há incesto não há cultura e não há troca, não há humanidade, nem evolução. Nossos mitos sabiam e prescreviam isso. Mas nós não sabemos que nossos mitos já sabiam. Nem que tínhamos mitos.
Ora, essa idéia, que é uma idéia teoricamente trabalhada pela Antropologia, pela Psicanálise ou pela Psicologia Analítica, está muito bem representada na mitologia brasileira. Não seria um motivo de crescimento interno para nós entrarmos em contato com isso — nós, que ficamos voltados para fora sempre, invejando talvez os quatro mil anos do mito de Gilgamesh, o mais antigo da civilização ocidental... mas e os nossos mitos ignorados? Tenho certeza de que se Jung tivesse tido a oportunidade de conhecer a história indígena das Américas ele teria incorporado todo esse riquíssimo material em sua obra, como objeto de estudo per se ou como corpus amplificatório. A tarefa ficou para nós. Proponho justamente uma reflexão sobre tudo isso em termos anímicos.
Nós analistas cuidamos da alma. Temos que perceber quais partes dela estão silenciadas, quais partes estão presas, quanta libido está cristalizada na alma brasileira — porque é fundamentalmente isso que vai nos ajudar a nos tornarmos aquilo que podemos nos tornar e deixarmos de ser sub, isto é, não chegarmos a ser aquilo que potencialmente somos. Esse é o nosso grande drama, essencialmente brasileiro, e o nosso desafio — o desafio do atraso. Ficamos sempre abaixo e aquém — e isso não se resolve nem estudando, nem absorvendo o Primeiro Mundo, nem atribuindo essa tarefa à Política, à Economia, ao Direito Internacional, à Constituição. Essa é uma tarefa psíquica: sairmos da maldição de não podermos ser aquilo que potencialmente somos aprofundando nossa raiz nesse lençol freático subterrâneo onde jaz fossilizada a alma brasileira.
Cada paciente nosso traz dentro de si essa história em miniatura, dizendo sem claramente dizer: “eu podia ser um pouquinho mais aquilo que no fundo sei que sou”. E nós, escutando outras palavras, ouvimos exatamente isso e seja qual for nossa linha de trabalho, tentaremos atingir essa camada não vivida do paciente. E para isso temos que entendê-lo como uma pequena peça de um todo que também espera ser compreendido, e nos entendermos a nós mesmos como instrumento de desvelamento do adormecido.
Esse é o núcleo da reflexão que tenho feito sobre nossa alma ancestral e agora eu gostaria, talvez para equilibrar a argumentação, de dizer algo sobre a alma brasileira que se desenvolve a partir da negação da ancestralidade, historicamente em 1500. Foi aí que anos atrás comecei meu estudo, a partir de uma perspectiva em que se combinam a Psicologia Analítica, a História e a Antropologia. Minha tese de formação no Instituto C.G.Jung de Zurique foi uma análise da correspondência jesuítica. Essas cartas, escritas no decorrer do século XVI, são os primeiros documentos brasileiros, a semente de nossa literatura e de nossa consciência coletiva cristã. A primeira delas é de 1549, na qual o recém-chegado missionário Manoel de Nóbrega inicia um relato, ao qual se juntariam outras vozes, em que é descrita a terra brasileira e seus habitantes. Achei que entender o que vinha exposto nessas cartas me ajudaria a perceber, enquanto analista, qual o conflito original a partir do qual teria começado a se estruturar a alma brasileira.
O ano de 1500, se relembrarmos as considerações que faz Jung em Aion, é um ano marcado arquetipicamente, configurando um dos pontos de inflexão da dualidade que determina a história dos dois mil anos da era de Peixes. Na imagem astrológica, a metade do segundo peixe corresponde ao ano de 1500 e ao Renascimento italiano — e, como sabemos, ao Descobrimento (melhor dizendo, à Invasão) do Brasil pelos portugueses. É portanto o ano da retomada da alma ocidental, da alma latina. Mas Jung não diz, porque essa realidade não lhe era tão presente, que esse é também o ano (arredondemos as datas) do encontro entre brancos e ameríndios. A “descoberta” do Novo Mundo não é apenas uma conseqüência dos progressos da navegação desenvolvida pela escola de Sagres, da expansão mercantil ou do extremado arrojo português constelado nesse período, mas um fato histórico determinado arquetipicamente: o encontro de duas partes da humanidade estruturadas sobre bases distintas. Cada parte envolvida viveu e vive até hoje as conseqüências desse portentoso evento. Para Portugal, foi o apogeu de sua coragem ultramarina, de sua capacidade de penetração e conquista — e o momento de encontrar sua alteridade, seu oposto. Para a nova terra, foi o começo da destruição de sua alma ancestral e de suas populações autóctones. Dois arcos cruzando-se no tempo: um em ascensão, outro em declínio.
Para nós junguianos essa idéia, ou esse fato histórico, pode render muito. Porque o processo de individuação, pessoal ou coletivo, é a busca do Um pelo Outro. Cada um de nós procura um outro desconhecido dentro de si, assim, como este país deve procurar outro, melhor, mais verdadeiro, mais fincado na própria essência, mas oculto pelo país oficial. Nossa consciência busca seu outro, que é o inconsciente, manancial de onde provém, tudo aquilo de que é feita e de onde emana também sua renovação. Nosso ego busca seu outro, que é um ego não apoiado apenas na sombra e na persona, mas um ego sabedor de si e seus limites e portanto servidor do Self. A busca pelo outro é sempre uma busca arquetípica e para nós esse outro é o índio. Literal e simbolicamente. Cada um de nós carrega um índio dentro de si na medida em que carregamos um inconsciente e em que não somos apenas isto que mostramos uns para os outros e para nós mesmos. Há mais. Esse mais eu chamo de índio.
Quando retomamos a idéia de que na história do nosso país o índio é imediatamente catequizado e escravizado e que já em 1500 sua cultura (nossa alma ancestral) começa a ser destruída, vemo-nos diante de dois possíveis objetos de análise: nosso país e nossa psique. Percebemos estão de imediato que nosso trabalho de resgate não vai poder ser feito numa vida, porque a destruição foi calamitosa e atingiu confins ainda não mapeados. Estruturou-se em nós uma consciência que perdeu o acesso a esse índio, ela não tem conceitos nem categorias para tanto e na verdade não sabe como acessá-lo. É preciso então admitir que ao lado desse nosso ser conscientizado e corporificado há uma alma penada, um fantasma de uma essência humana que não tem mais corpo porque não houve síntese. A alquimia só pode ocorrer em nós e como ela não acontece, o pedaço não integrado é um pária na nossa psique e na sua própria terra, é um exilado, uma alma descorporificada que não encontra corpo nunca mais.
Isso é uma perda, uma maldição, em nada menos trágica do que as que se abateram sobre Tebas ou Micenas; é um fator desagregante a operar sem trégua em nossa vida consciente e inconsciente. Está aqui bem ao nosso lado, sobre nosso ombro esquerdo, esse Outro nosso que não temos condições de incorporar. Não porque não queiramos, mas porque não há como. Há na verdade muito trabalho a ser feito até que isso seja psiquicamente possível. O conhecimento da alma ancestral, da cultura indígena e da mitologia precisaria se espalhar pelo Brasil inteiro, para que as novas gerações fossem educadas trazendo em seu imaginário todas as cobras, todas as onças e arco-íris, todos os espíritos da floresta, as maravilhas, os terrores e as metamorfoses que jazem desativados no fundo do inconsciente de todos nós. Quando esse mundo renegado for introduzido no imaginário das crianças, elas começarão a desenvolver naturalmente outros conceitos e outros valores e a partir de um certo ponto começarão a perguntar por que sim e por que não, por que o Brasil é assim, porque se faz uma represa que acaba secando um rio (o Tocantins), por que a floresta está sendo destruída, por que os índios estão acabando — ou seja, que modelo de país é esse que nos subjuga. E esse questionamento todo não será o resultado de um doutrinamento ideológico e político, mas resultará sim do estado em que se encontrar um dia o imaginário da nova geração. Que se nutre de imagens e de nada mais.
Somos portanto possuidores de uma verdadeira Enciclopédia Britânica de imagens brasileiras e elas não estão alimentando nosso imaginário. Para falar com a alma é preciso alma, para falar com o imaginado é preciso imagens. Isso vai demorar. Não chegaremos a ver. Mas temos que fazer o que é possível, aqui e agora — no nosso caso de analistas, me parece, o que podemos fazer é trabalhar e criticar a consciência e mostrar-lhe novas possibilidades. Rever e repensar nossas categorias e nossa pseudo-mitologia. A maneira como a História do Brasil é ensinada é brutalmente anti-psicológica, além de ser falsa em muitos aspectos. É preciso ensinar que o Brasil não foi descoberto mas ocupado; que isto não era terra de ninguém, mas de alguém que permitiu que o invasor entrasse por achar que este que chegava era seu salvador, alguém que viria trazer-lhe o que faltava. Os índios abriram os braços e as pernas para receber o europeu. Que veio e fincou uma cruz na carne da religião indígena, como um punhal a atravessar-lhe a alma. O padrão de Porto Seguro, primeira marca da conquista — equivalente, numa analogia moderna, à bandeira americana plantada no chão poeirento da Lua pelo astronauta tornado herói — é uma pedra que traz esculpidas numa face as armas de Portugal e na outra a cruz de Cristo. Esses são os símbolos do começo de nossa História. O que significa psicologicamente essa união entre cruz e espada? Como olhar para a cena da Primeira Missa celebrada no Brasil, tema ufanista de nossa pintura acadêmica, e não perceber nela o começo do genocídio religioso? Quem é o verdadeiro Sacrificado dessa eucaristia? Não o corpo de Cristo, mas a alma indígena — e é precisamente essa idéia subversivamente nova e incômoda que a consciência coletiva deve agora abrigar em seu centro, já que por séculos a manteve negada e reprimida.
Urge perceber que a hóstia dessa primeira missa e de todas as outras que se seguiram não é porém a alma indígena, como seria de se supor, por ser ela o verdadeiro objeto de sacrifício eucarístico. Transubstanciada, a alma ancestral sacrificada, como a hóstia, seria pela própria coerência simbólica da missa redevolvida perene e fortalecida pela sua junção ao espírito de Cristo. Mas não. Não foi esse o mistério operado pela missa. A missa indígena é o inverso do processo de individuação, é um ritual para desfazer identidades. Na missa que Anchieta verteu para o tupi (Glória), os acólitos índios eram ensinados a pedir a Cristo, cantando:
Ou seja, a missa instaurava como verdade dogmática que o Mal era imanente à essência dos homens da terra e que só a religião do conquistador poderia redimi-los de tal sina perdida. Aí a cruz e a espada se casaram, em perfeita e indissolúvel comunhão de bens.
O que as missas de todo o período colonial de 1549 em diante fizeram descer pela goela abaixo de uma população conquistada não foi a hóstia da valorização da alma, mas a de sua destruição. Foi a hóstia de um catolicismo defensivo, atacado pela Contra-Reforma, que reinstaura sempre o mesmo mecanismo de projeção da sombra. O catolicismo defensivo faz com que o homem ibérico só veja virtudes em si e projete toda a sua sombra sobre o índio, que passa a ser visto como um ser pecaminoso, criado pelo demônio, que não obedece a ninguém, sem lei e sem Deus, um ser inábil para o trabalho, ocioso e preguiçoso, um lascivo incorrigível, portador de todos os pecados, vícios e imperfeições de que é capaz a natureza humana — se é que humanos chegavam a ser. O invasor se sente assim eticamente legitimado a melhorar esse ser ignóbil, dando-lhe uma alma para que ao menos se eleve à categoria de homem. Os missionários jesuítas passarão então a reencenar o mito da Criação, sendo eles obviamente Deus e os índios a argila a ser moldada à imagem e semelhança do criador. Este é o começo de nossa alma civilizada e esta é nossa pseudo-mitologia.
A pedagogia instaurada no Brasil nascente consistia em tomar um aprendente e lhe dizer, como o fez José de Anchieta, o patrono da educação: “esqueça quem você é, tenha vergonha de si mesmo, largue tudo, olhe para mim e queira ser como eu”. Isso ainda está vivo no Brasil, porque quando olhamos para o Primeiro Mundo até hoje fazemos a mesma coisa, especialmente com relação ao pensamento de lá: “esqueça, esqueça, esqueça, olhe para o outro, queira ser igual ao outro, pense como ele pensa”. A pequena escola jesuítica, em torno da qual formavam-se os primeiros núcleos habitacionais e para onde convergiam os índios cristianizados, é considerada o marco inicial da sociedade brasileira: meninos índios ensinados por missionários, casas de taipa, cercas, primeiras ruas. Mas a pedagogia que se praticava nessas escolas — São Paulo começou assim, em 1554, nos campos de Piratininga — era a da negação do ser indígena.
Esses fatos históricos todos precisam ser revistos e interpretados sob um novo prisma que nos ponha no encalço da alma perdida e da individuação abortada. As crianças de hoje precisam ouvir que ao chegar aqui a esquadra descobridora cometeu o primeiro ato anti-ecológico, a derrubada do pau brasil que nos nomeia. Portanto é em 1500 que se origina nosso atual problema de devastação florestal e de destruição da natureza. Uma imagem que expressasse essa idéia deveria aparecer na capa dos livros escolares patrocinados pelo Ministério da Educação até que fosse fixada e lançasse raiz, em substituição a toda uma galeria de imagens alienantes que trazemos no porão da mente e que só nos afastam de nós mesmos por nos manterem na inconsciência. A árvore pau brasil é um símbolo do nosso Self. Começamos derrubando a árvore que nos nomeia. O que isso tem a nos dizer sobre nossas próprias dificuldades de crescimento?
Os portugueses aqui chegaram com uma fantasia de Paraíso na cabeça, uma fantasia de encontrar mulheres nuas, fartas e disponíveis, em tudo diversas da mulher da Contra-Reforma, ambientadas numa natureza dadivosa onde tudo fosse permitido e nada fosse pecado — como aliás já lhes garantira o Papa Alexandre VI ao decretar que não havia pecado ao Sul do Equador, o que equivale a dizer que a sombra aqui podia correr solta. Um bom documento para ser interpretado num curso de formação de analistas seria a carta de Pero Vaz de Caminha, a primeira a descrever a nova terra e sua gente, na qual claramente se percebe a profecia de que este país teria que agüentar sobre as frágeis costas uma descomunal e perigosíssima projeção de Paraíso — que ademais aqui se constituía para gozo e desfrute exclusivos do português, já que o mesmo de sua psique emanava, e jamais da imaginação do habitante da terra, para quem a floresta era sempre (como até hoje se constata) Paraíso, perigo e dureza ao mesmo tempo. O que iria então acontecer? Toda uma obra histórica, absolutamente masculina e fálica, que é a Conquista, será realizada por homens brancos de um lado e mulheres índias, de outro. As mulheres portuguesas nem mesmo nas caravelas embarcaram. Isso já há alguns anos me tem feito pensar no seguinte: a anima estava ausente na formação do Brasil. O português traz consigo uma imagem de mulher que não é a anima, mas uma fantasia que jamais será capaz de integrar, pois para tanto amadurecer era preciso. Porque se em lugar dessa falta de eros e de sentimento estivesse presente a verdadeira anima portuguesa, aquela que se manifesta nos sonetos de Camões, na lírica de Gil Vicente, nas cantigas de amor e de amigo, a maneira como os homens teriam se relacionado com as mulheres teria sido outra e em lugar do mero acasalamento, que foi o que ocorreu, uma junção psíquica poderia ter sido ensaiada. O que se deu entre o homem, e a mulher desses dois mundos foi apenas uma miscigenação a nível biológico, físico e genético, mas não psicológico. Sem absolutamente nada a ver com os refinados sentimentos descritos pelo grande Poeta das navegações lusitanas, sentimentos peninsulares que não chegaram, a atravessar o Atlântico.
Somos portanto um caso histórico de anima ausente. Américo Vespúcio chega aqui e batiza a terra com a forma feminina de seu nome, mas não de sua alma. O nome “América” é sem dúvida uma projeção, mas a projeção de um vazio, de um buraco, que ao se materializar nega e destrói a verdadeira anima que lhe antecedia, porque toda a alma ancestral é feminina em sua própria não-racionalidade. Na hora que o princípio masculino chega aqui — quer dizer, a consciência crescentemente racionalizante do século XVI — ele não se junta ao feminino, mas nega-o ao mesmo tempo em. que sobre ele projeta uma fantasia de feminino. Isso pode ser lindamente percebido nos mapas desenhados nessa época, por exemplo o que estabelece a demarcação da capitanias hereditárias. A linha vertical absolutamente reta do Tratado de Tordesilhas é cortada pelas horizontais igualmente retas que definem os lotes destinados aos primeiros capitães da terra. Aí temos Descartes subitamente implantado sobre a mata Atlântica! Na alma ancestral e feminina não há essa linha reta porque ela não funciona de modo cartesiano. A masculinidade psicológica que aqui desembarca chega para arrasar e o faz indo sempre diretamente ao alvo de sua ilimitada cobiça.
Há uma ausência do feminino contemporâneo dessa racionalidade porque também na Europa da Contra-Reforma (certamente não na cultura renascentista) ele estava reprimido. Portanto o que nos coube foi um. feminino projetado. A. nível sociológico o que vai decorrer disso é a criação de um povo a partir do acasalamento exclusivo de branco com índia. O primeiro híbrido é o primeiro brasileiro. Esses mestiços vão se multiplicando e gravitando em torno das aldeias que iam se formando, das primeiras capelas e escolas jesuíticas em Porto Seguro, no Arraial da Ajuda, em Salvador, Olinda, Vitória, São Vicente, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo de Piratininga. Os índios vão sendo atraídos e catequizados, as mulheres vão gerando filhos híbridos e esses primeiros mestiços circulam por esses arraiais criados pelos jesuítas como cristãos convertidos, selvagens domesticados.
Essa é a proto-célula de nossa sociedade, o começo de nosso povo. E aí começa o drama de nossa identidade. Esse filho não pode se identificar nem com o pai, nem com a mãe. Uma índia que se acasalou com um branco e foi batizada não é mais aceita em sua aldeia de origem, ela saiu e para lá não pode mais voltar. E nem sua língua pode transmitir ao filho, fosse ela de que etnia fosse, porque a língua que seu filho falaria era o tupi, língua geral que se imporia sobre as centenas de línguas que então se falava no Brasil, e o português a seguir. A religião ela certamente não transmitiria ao filho, pois acabava de formalmente renunciar à que tinha quando forçosamente aceitava a do dominador, e se alguma mitologia hipoteticamente tentasse ensinar à nova geração, não seria por certo o que mais ajudaria a esta na impossível tarefa de se descobrir a si mesma no novo ciclo histórico que se inaugurava.
A identificação com a figura materna era portanto inviável. E com o pai tampouco podia esse filho vir a identificar-se, uma vez que na Península Ibérica um mestiço, mameluco e bastardo não tinha lugar na sociedade de estamentos rigidamente delimitados. Se um certo Dom Manuel de Faria resolvesse, depois de trinta anos de Brasil, regressar para Coimbra levando consigo na caravela os filhos que com várias índias tivera, estes não poderiam seguir carreira militar, nem religiosa., nem acadêmica, nem civil, e muito menos casar-se com moças da mesma condição social de seu pai — esses filhos brasileiros seriam párias na terra paterna.
Quem é pois esse homem do Novo Mundo que não pode se identificar nem com pai nem com mãe? Nas palavras de Darcy Ribeiro, que melhor do que ninguém levou adiante esta reflexão, ele é um Zé Ninguém. Portanto a alma brasileira que se plasma a partir do contato entre duas grandes tradições é a alma do anônimo ninguém. Daquele que não sabe quem é e não pode ter uma raiz nem para o lado de cá, nem para o lado de lá, portanto um desarraigado a carregar consigo uma pesada problemática existencialista já no século XVI que nem Heidegger conseguiria equacionar.
No decorrer dos próximos três séculos, a essa crescente massa amorfa junta-se o triste contingente de africanos escravizados, igualmente arrancados de seu contexto e misturados entre si para que se anulassem as diferenças étnicas e culturais de origem. A segunda matriz brasileira, aquela resultante da união entre branco e negra e todas as possíveis demais combinações — mantido evidentemente à parte o ventre branco — gerará os mestiços mulatos que sofrerão a mesma imposição existencial de não poderem saber quem são e de onde vêm. Mas de ventre branco também nasceram bastardos. Preocupados com a devassidão de costumes sexuais que tão cedo se implantava no Brasil, os jesuítas logo se apressaram a solicitar que a Companhia de Jesus em Lisboa despachasse para a Colônia mulheres brancas para que se garantisse um mínimo de eugenia. E eis que em meados do século XVI aporta no litoral a nau das prostitutas, desembarcadas após receberem a bênção a bordo. Com elas veio a sífilis para uma terra que até então desconhecia esse e outros males. E com elas os portugueses acasalarão como alternativa às índias por recomendação expressa dos missionários, que com esse gesto demonstram colocá-las no mesmo plano. Vemos portanto que a fantasia de feminino, que os portugueses traziam em sua mente era mesmo a da puta. E as mulheres da terra tiveram que carregar essa projeção sobre a cabeça.
A Grande Mãe do Brasil é uma índia, esse é o nosso mito e nossa verdade histórica e psicológica. Temos que começar a considerar esse mito, e não apenas o da grande mãe babilônica, grega ou romana, que tanto se estuda nos círculos junguianos. De novo: se Erich Neumann conhecesse a mitologia brasileira, ele sem dúvida a teria incluído em seu trabalho sobre o tema. Já nossa consciência coletiva não reconhece mesmo a existência dessa mãe ancestral, que não aparece em produto algum de nossa cultura ou de nossas especulações pseudo-psicológicas de que escola for.
Mas para não perder o fio: diz Darcy Ribeiro, a meu ver de modo brilhante, que foi preciso, no século XIX, inventar-se um país chamado Brasil para que esse povo de Zé Ninguéns pudesse dizer que pertencia a alguma coisa. Essa é a verdadeira questão por trás da factualidade ostensiva da proclamação da Independência pelo filho rebelde ao monarca português, identificado com a jovem nação que pretendia ser levada a sério. É como se a psique coletiva, atingido aquele ponto de saturação, estivesse a pressionar no plano institucional pela formalização de um mínimo de persona coletiva, para assim assegurar a manutenção do vácuo psíquico interior de que éramos feitos. O povo brasileiro estava finalmente querendo ser dono de seu próprio nada. Ganhamos então um país internacionalmente reconhecido que nos permitia sermos o pouco que éramos. E é preciso olhar para o passado histórico nesses termos, porque só assim se entra em contato com aquela revolta no fundo do estômago que possibilita a recusa do status quo, que permite dizer: “não precisa necessariamente ser assim”.
Contamos hoje com um dos plantéis genéticos mais ricos do planeta e com um dos complexos culturais mais diversificados que se possa conceber no mundo atual. O desafio que nos cabe é: será ou não possível extrair a quintessência alquímica dessa matéria prima? Será que nossa consciência já chegou a esse ponto? A alma ancestral brasileira é hoje uma alma penada; e aquela que se constitui a partir de 1500 sofre de um complexo nacional de inferioridade e está com sua energia criativa reprimida. Não tem sido mais possível sonhar no Brasil, um sonho coletivo compensatório das misérias de uma sociedade injusta que nos dissesse o que o inconsciente espera de nós e o que nos reserva como possibilidade histórica. Esse sonho foi esboçado nos anos 60, mas a repressão militar foi longe demais e traumatizou nossa ousadia onírica.
Gostaria de ir concluindo estas reflexões abordando dois temas: um mito que rapidamente comentarei e alguns sonhos que o grande pajé Kamaiurá Takumã teve em setembro de 1996 durante uma passagem sua por São Paulo (esses sonhos foram registrados pela antropóloga Carmen Junqueira, que em seu contato de muitos anos com o pajé tem estudado a sabedoria ancestral desses índios). Comecemos pelos sonhos. Takumã chega e é inicialmente hospedado numa casa de praia adjacente a uma área de mata onde já haviam sido vistas cobras. Ele foi alertado sobre o perigo, especialmente porque tinha consigo a mulher e dois filhos pequenos. Em sua primeira noite nessa casa ele sonhou: “Uma enorme cobra apareceu e tive medo. Mas fiquei calmo quando ela me disse que era ela quem tomava conta daquela mata, ela era o chefe das cobras. Disse então que eu não precisava ficar preocupado, porque nada de ruim aconteceria para nós”. Eis aí a alma ancestral se manifestando sob forma de cobra, dando-lhe força e proteção para enfrentar cobras literais ou metafóricas de nosso mundo civilizado. Ela é o grande poder do inconsciente. É o verbete mais longo de qualquer dicionário de símbolos. Esta é uma cobra mãe, que comanda o próprio mal, fazendo-se presente de maneira tão viva no sonho de um índio preocupado com a selva dos brancos.
Mas vejamos o último sonho de Takumã imediatamente antes de seu regresso ao Parque Nacional do Xingu: “Um índio bem velho chegou perto de mim e me perguntou se estava tudo bem e se eu tinha conseguido alguma coisa. Respondi não, não consegui nada.” A antropóloga que o hospedava ficou cismada ao ouvir esse sonho e perguntou o que era essa “alguma coisa”. Ele respondeu: “um Fax”. Os Kamaiurá estão organizando uma associação cultural e estão pensando em obter um aparelho desses. Esse sonho, quinze dias depois do da cobra, mostra que o inconsciente de Takumã abarca desde a serpente arquetípica até a tecnologia de ponta. Nós junguianos estamos querendo sonhar mais é com a cobra. Duas linhas se cruzam: alguns de nós queremos entrar um pouco no lado de lá, e os índios no de cá. E a situação agora é de ou vai, ou racha, porque eles estão por um fio de desaparecerem por completo. Hoje há pouco mais de duzentos mil índios no Brasil, quando na época do Descobrimento havia de seis a dez milhões. Havia mais de mil línguas indígenas, tesouros irremediavelmente perdidos. Uma língua leva mais de mil anos para se constituir. Como um milagre, sua estrutura emerge inteira do inconsciente. Centenas de línguas já desapareceram no Brasil sem. terem deixado o menor registro e continuam até hoje a morrer. Algumas são faladas por meia dúzia de pessoas e é provável que lá pela metade do próximo século já não tenha sobrado mais nenhuma. O trabalho dos que estão coletando mitos vivos nas línguas originais é portanto da maior importância, como por exemplo o que vem sendo realizado pela antropóloga Betty Mindlin.
Os índios estão perdendo a terra e a cultura. No final de 1996 os jornais publicaram a notícia de que um cartel internacional especializado na comercialização de genes humanos para pesquisa industrial está oferecendo amostras de sangue Suruí. Essas amostras genéticas serão vendidas por enormes quantias para indústrias farmacêuticas interessadas em pesquisar novas formas de combater a obesidade a partir da manipulação genética. Esse mal, tão difundido nas sociedades de consumo devido ao desequilíbrio das formas de alimentação é inexistente entre as populações indígenas. Se for criado um medicamento eficaz, baseado num princípio novo, certamente os lucros serão consideráveis — mas os Suruí não estarão por certo na lista de distribuição de dividendos. O sangue indígena, capaz de curar males da nossa civilização, continua a ser roubado — eis aí uma imagem absolutamente high-tech e contemporânea que merece nossa atenção. Os novos símbolos que denunciam o contínuo drama de nossa alma ancestral vazam até pelos jornais; mas a consciência coletiva ainda não é sensível o bastante para elaborá-los enquanto tema de auto-conhecimento. Outra versão moderna da pirataria que imperava na época das grandes navegações leva o nome de Plant Medicine Corporation. Esta organização, voltada para assegurar royalties de substâncias curativas do Terceiro Mundo que podem mais uma vez dar lucro ao Primeiro, já patenteou o uso do cipó alucinógeno huasca. O tráfico de especiarias ou de pau-brasil ainda não terminou, ele se renova e se reatualiza a cada década e é como se esse contínuo saque à cultura milenar não tivesse ainda sido compreendido em todas as suas implicações — especialmente as psicológicas. Caso o Brasil, portanto, venha a adotar uma política de efetiva proteção de seus recursos naturais e culturais e decida produzir industrialmente o chá de huasca, que embora ainda não pesquisado em seus potentes efeitos serve de base para a organização de novas religiões (Santo Daime e União do Vegetal) e permite a um crescente número de adeptos a vivência imediata da transcendência do ego, será necessário que nosso governo pague royalties a uma corporação americana pelo uso de uma erva medicinal milenarmente nossa. Nos anos 60, um assunto desses inflamaria a retórica anti-imperialista dos movimentos de esquerda; hoje, já não mobiliza mais ninguém. E no entanto, eis aí, deslavado, mais um símbolo que reflete a degradação de nossa alma ancestral e que sintetiza o estado de inviabilidade histórica que ameaça essa parte cada vez menor de nossa população através da qual nos conectamos às raízes. Os índios ao final perderão suas terras, morrerão de doenças várias, serão assimilados como mão-de-obra não qualificada na camada mais baixa da sociedade brasileira. Não surgiu até hoje uma política indigenista que :minimamente funcionasse e os defendesse em seus direitos mais elementares. Mesmo aqueles que honesta e sinceramente defendem os índios não sabem mais o que fazer em âmbito nacional.
Terminarei esta reflexão com um breve comentário sobre um dos mitos coletados por Betty Mindlin em sua pesquisa de campo. Desde que o ouvi não fiquei mais em paz. Algumas poucas vezes nos reunimos em meu consultório para falar dessas histórias, cada um a partir de seu ponto de vista. Não pretendíamos chegar a interpretações completas, mas antes a tocar o fundo do poço. Ainda não se tem uma metodologia adequada que dê conta de um material tão vasto, com tantas variações, e que permita uma leitura tanto poética quanto antropológica e psicológica. O método junguiano tem aí um enorme desafio à sua frente. Pessoalmente, não me afino com a metodologia de Lévy-Strauss, que só vê nos mitos diagramas cifrados de uma estrutura social abstrata e nunca da alma que os gerou e que portanto pode estar neles espelhada. O mito em questão pode ser intitulado “A cabeça voraz”, “A cabeça voadora” ou ainda “A cabeça que perdeu o corpo” e é narrado em várias tribos. Vou reproduzir, resumidamente, a versão Makurap.
“Marido e mulher vivem em harmonia. Tudo vai bem em sua vida na aldeia. Toda noite eles dormem juntos na rede e toda noite a cabeça da mulher se desprende do pescoço e vai voando em busca de comida em outras aldeias. A cabeça se alimenta durante a noite e antes do dia raiar volta e se encaixa novamente no pescoço. Quando acorda, o marido vê a mulher a seu lado como sempre, mas com uma pequena gota de sangue no pescoço. Ambos ignoram o que a cabeça faz em seu vôo solitário noturno. Um dia, a mãe da moça entra na maloca e surpreende o genro ao lado do corpo decapitado da filha e imediatamente o acusa. O corpo é enterrado e a tribo toda se volta contra o marido, a quem só resta fugir. A cabeça volta e não encontrando mais o corpo que lhe corresponde, pousa no ombro do marido, onde se fixa como uma segunda cabeça. Este fica desorientado, porque quando quer uma coisa, a cabeça quer outra. Esta começa a entrar em decomposição. O homem tenta se livrar dela, mas ela resiste. Finalmente ele a arranca do ombro, foge pela floresta adentro e ela o persegue até que o bacurau acaba levando-a para o reino dos pássaros...”
Creio que as imagens deste mito absolutamente brasileiro e autóctone nos dizem que a busca de conhecimento é arquetipicamente vedada as mulheres. Por algum tempo é possível encontrar alimento novo, mas este não pode ser integrado. O tabu então determina que a mente da mulher deve ficar ali ao pé do fogo onde cozinha, é lá que sua vida transcorre e lá estariam seu sentido e seus limites. Encontrei uma idéia similar no trabalho de Alicia Fernández, uma psicopedagoga argentina que estuda as dificuldades das professoras em desenvolverem um pensamento próprio. Essa autora encontra no Gênesis a origem desse mandato proibitivo: Eva é punida por ter ousado aceitar da serpente o fruto da Árvore do Conhecimento, proibido por Deus. O tema é amplo e pode nos levar longe, mas aqui não se trata apenas de um problema arquetípico da mulher indígena, e sim algo que diz respeito ao princípio feminino como um todo, manifestado tanto nas mulheres como nos homens, na cultura ou na alma.
Mas há também outra possibilidade de leitura. Houve um tempo mítico em que o princípio masculino e o feminino estavam equilibrados e em harmonia, mas a partir de um certo ponto o ultimo não pôde mais se expandir porque não é mais possível integrar qualquer transformação. Nossa alma ancestral é como essa cabeça. Ela perdeu o corpo, que seria a materialização de uma nova síntese — o corpo não existe mais, foi enterrado, desintegrou-se no inconsciente — e busca outro, ao qual no entanto não pode se conectar por uma impossibilidade natural. Não se trata aqui de uma analogia à figura alquímica do andrógino, porque nesta masculino e feminino estão diferenciados mas unidos na base, num corpo que pertence às duas cabeças. No nosso mito a imagem é outra, a situação psíquica é outra. Essa cabeça desencorpada é nossa alma perdida vagando penada pela noite da inconsciência sem poder se encaixar naquele corpo que seria nossa própria realidade humana aqui e agora, uma realidade física, corpórea, psíquica, cultural, social e política. O simulacro de integração do princípio feminino arquetípico — isto é, ancestral e imemorial — justamente por não ser uma verdadeira integração mas algo falso, forçado, postiço, apodrece e cria dissociação, obscuridade, fantasmagoria. A consciência que nos orienta a todos procura então loucamente se livrar daquele encosto maldito, para poder continuar unilateralmente estruturada em sua racionalidade dominante. E aquilo que poderia transformá-la e revitalizá-la desaparece do campo conhecido: dissolve-se no céu do Cruzeiro do Sul, de onde até hoje nunca mais voltou. Vejo portanto nesse mito o drama da separação não redimida dos opostos e é esse o grande problema arquetípico que nos afeta essencialmente a todos.
(Palestra proferida em outubro de 1996 no Moitará, encontro promovido
em Campos de Jordão pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
Foram feitos alguns acréscimos. O autor é analista formado pelo
Instituto C.G.Jung de Zurique, membro da Sociedade Internacional de
Psicologia Analítica e da Sociedade Suíça de Psicologia Analítica. É
sociólogo, advogado e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de
Chicago. Publicou O Espelho índio —Os Jesuítas e a Destruição da Alma
Indígena, Ed. Espaço e Tempo, 1988, e vários artigos.)